tag:blogger.com,1999:blog-76241303183367021632024-03-05T05:57:23.293-08:00Machos inocentesContosPaulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.comBlogger21125tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-90124889642772577052017-01-27T09:40:00.001-08:002017-02-02T08:12:08.774-08:00NINGUÉM GOSTARIA DE ESTAR ALI<div class="MsoNormal">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgPp_AUU1u9bWjzivHH7iY4bkcjs-Ode5vjlYOaUsAcVU3H-rs9cT9mu1T8YRlVN1K5IfZ-5zbCeRucnI6JpQ4n_PIHxk_QmnH93qnyvDOOh2FDExFcmljQ1aMox3XcLffLrtGpO4XOSj2L/s1600/ansiedade.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="200" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgPp_AUU1u9bWjzivHH7iY4bkcjs-Ode5vjlYOaUsAcVU3H-rs9cT9mu1T8YRlVN1K5IfZ-5zbCeRucnI6JpQ4n_PIHxk_QmnH93qnyvDOOh2FDExFcmljQ1aMox3XcLffLrtGpO4XOSj2L/s320/ansiedade.jpg" width="320" /></a></div>
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman", serif; font-size: 12pt;">Ema
não gostaria de estar ali. Saíra da cidade havia mais de 10 anos e sabe ter
sido este tempo insuficiente para que fossem esquecidas as mágoas de certas
pessoas, principalmente dos parentes do ex-marido Jadiel.</span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Quando
ela pediu o divórcio, a recepção já não fora das mais agradáveis. A sogra e as
duas cunhadas romperam completamente as relações , o que significou sequer
cumprimentá-la ou conviver com seu casal de filhos, sobrinhos e netos delas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
situação tornou-se insustentável quando, três anos depois, casou-se novamente.
A indiferença transformou-se em hostilidade, nem tanto por parte da sogra. Mas
não foram poucas as vezes em que ouviu
desaforos das cunhadas, mesmo em locais públicos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Não
foi à toa, portanto, que resolveu
mudar-se para outra cidade, decisão que exigiu a venda da casa em que
residira desde o primeiro casamento. Quando se separaram, Jadiel concordou em
que ficasse morando ali, com os filhos. Ele não quis a partilha imediata do
bem, o que exigiria a sua venda e divisão do dinheiro. Propôs a permanência
dela na casa até que surgissem condições mais favoráveis para o negócio. O
mercado imobiliário estava em recessão e, além disso, a casa, inacabada (
faltava concluir o segundo pavimento), não teria bom preço, caso decidissem
vendê-la na época.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Ocorre
que a decisão dela de casar-se de novo, sem dúvida, acrescentara um ingrediente
maior ao estado de beligerância permanente em que vivia com os parentes do marido,
refletindo negativamente na vida dela e dos filhos. Jadiel já superara os
traumas do divórcio e passara a cuidar
da própria vida, com pouca interferência na
da ex-esposa. Mudara-se para outro bairro, convivia regularmente com os
filhos, dentro dos limites permitidos pelas regras da separação legal, e
mantinha com a ex-companheira uma convivência tranquila.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Quando
ela lhe falara da venda da casa – a assinatura dele era imprescindível para a
transação- e lhe dissera o principal motivo, não opôs obstáculos. Ema chegou a
observar , nele,certo alívio com a decisão e não foi difícil concluir porquê.
Jadiel sofreria ao ver a ex-mulher
coabitar com outro companheiro no imóvel que construíra com tanta tenacidade e
sacrifícios . <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Paradoxal
que a moradia ficasse sendo, após o divórcio e até sua venda, uma espécie de
elo entre Ema e Jadiel. Porque fora o imóvel uma das fortes razões do desgaste
do relacionamento entre os dois e posterior separação. Construí-la fora uma
obsessão de Jadiel, que não suportava a idéia de morar em uma edícula nos
fundos da casa dos sogros, sua primeira residência logo após o casamento.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Desde
solteiro era proprietário de um terreno
e foi nele que decidiu edificar a casa própria.
E não seria uma casa qualquer. Projetou um sobrado, dois dormitórios por
andar, quarto de empregada, várias salas e saletas, cozinha ampla, despensa,
varandas, garagem, além de outras dependências menores.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Para
realizar seu sonho, passou a fazer horas extras e a trabalhar aos domingos e
feriados na indústria, onde era chefe do setor de operações. Não tirava férias,
preferia recebê-las em dinheiro. Por quatro longos anos não se soube, naquele
lar, o que era um passeio, uma sobra de dinheiro para uma pequena extravagância
. Tudo era investido na casa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Concluídas
as obras estruturais dos dois pavimentos, Jadiel concentrou esforços no
acabamento do térreo, para onde se mudaram tempos depois. Concretizava-se,
assim, seu primeiro propósito: deixar de morar de favor na edícula dos sogros.
O sonho da casa completa demoraria um pouco mais.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Seria
exagero, contudo, dizer que o longo período de sacrifícios em função da casa
nova fora o único fator de desgaste do casamento entre Ema e Jadiel. Anos
atrás, mesmo antes de começar o projeto
imobiliário,intensificara-se nele um hábito que trazia desde os tempos de
solteiro: após o trabalho, parar em um bar, com os colegas da firma, antes de
ir para casa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O
que eram poucos minutos, o suficiente para um trago de cachaça e um copo de
cerveja,destinados a, como dizia, relaxar e, de quebra, abrir o apetite para o
jantar, foi aumentando ,chegando a virar horas. E o estado de Jadiel, ao voltar
para casa, deixou de ser, na maioria dos dias, de relaxamento, para
transformar-se em embriaguez. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Não,
ele não era violento. Embriagado, apenas punha-se a falar mais do que o habitual.Mas, é claro,
nem de longe eram imperceptíveis o cheiro de álcool, tampouco irrelevantes a
gradativa pouca preocupação com a
própria aparência, a falta de asseio pessoal e a quase nenhuma importância que
passou a dar à rotina da casa.Chegar,jantar, dormir: essas foram suas únicas
preocupações por anos, nos fins dos
dias.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">As
implicações de tudo isso na vida conjugal levaram inevitavelmente às
discussões, ao desgaste pleno e a decisão dela de pedir o divórcio, o que o
surpreendeu. Quando Ema fez a primeira menção neste sentido,não deu muita
importância, talvez por estar meio “alto” quando a ouviu.Em uma segunda
oportunidade, irritou-se e não quis falar no assunto. Na terceira,
desculpou-se, disse que ira mudar de comportamento,mas nada aconteceu além da
promessa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Uma
noite, ao chegar em casa, não encontrou ninguém. Ema deixara um recado,
escrito, no qual comunicava sua ida, com as crianças, para a casa da mãe e que,
dali em diante, seus contatos seriam por meio de um advogado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Nas
semanas que se seguiram, Jadiel tentou a
reconciliação, diretamente ou mediante a
interferência de amigos em comum,mas nada a
demoveu.Até que, por fim, conformou-se e a separação foi formalizada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Tudo
isso, para Ema, parecia ter-se esvanecido como neblina ao nascer do sol, dez anos depois e com sua mudança
para outra cidade. Mas agora ela estava
de volta. Contra a sua vontade, pois sabia que antigas feridas seriam
reabertas. No mínimo, passaria por situações de constrangimento. Decididamente, não gostaria de estar ali. Mas
precisava estar. Por causa do ex-marido Jadiel.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Dona
Edite não gostaria de estar ali. Aliás, Dona Edite não gostaria de estar em
lugar nenhum que não fosse sua casa. Sempre fora assim e depois que o marido
morreu, havia 30 anos, ficou pior, fazendo dos muros do quintal os limites do
seu mundo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Ela
sabia que, de um jeito ou de outra, cruzaria com aquela mulher ( ela nunca
pronunciava o nome de Ema) que tanto fizera infeliz o filho Jadiel. Que nunca
dera valor para o homem trabalhador e responsável que ele era, ligado sempre ao bem estar da
família.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Dona
Ester não conseguia imaginar que outra coisa mais uma mulher poderia querer de
um marido, principalmente nestes tempos difíceis, em que todo mundo anseia por
segurança na luta pela sobrevivência. E, afinal, o que ela vira no homem, com quem se casou
depois, que era tão melhor do que em seu
Jadiel?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Ela
sofreu vendo o filho sofrer. Conhecia-o bem; sabia o quanto tinha o coração
mole, era frágil nestas coisas sentimentais.Viu Jadiel, nos primeiros tempos
após a separação,perder aquela energia,aquela disposição, que o fazia lembrar o falecido pai. Não
deixava de ir trabalhar, mas o fazia mecanicamente. Ausentava-se por longos
períodos, coisa incomum antes, quando tinha o hábito de visitar a mãe pelo
menos umas duas vezes por semana.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Dona
Edite não desconhecia a queda de Jadiel por uma cachacinha nos fins do dia de
trabalho e temia que ele se entregasse
ao álcool de uma vez, descontrolando a
própria vida. Não por acaso , quando ele desaparecia por períodos prolongados,
pedia às duas filhas que fossem ao apartamento, onde o filho morava sozinho, ver o que estava acontecendo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Ficou agradavelmente admirada quando elas
informaram que o irmão praticamente não
bebia mais. Menos mal, pensava Dona Edite, que bem lembrava de uns tempos,no início
de seu próprio casamento, em que o marido Joel
andara exagerando nos tragos,
exigindo até umas sessões nos Alcoólicos Anônimos para que a situação
não se agravasse. A conversão ao evangelismo, tempos depois, assegurou a Joel a
sobriedade para o resto da vida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Ao
pedir a separação, aquela mulher trouxera desequilíbrio para a harmonia
familiar, tão cara a Dona Edite , visto que muitos projetos acabaram sendo
abortados. Os netos passaram a conviver
muito pouco com a avó e as tias e, assim mesmo, quando Jadiel encontrava
alguma disposição para levá-los à casa delas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Quando aquela mulher casou-se de novo, suas
duas filhas impregnaram-se de tal raiva que passaram a hostilizar abertamente a
ex-cunhada, provocando um rompimento
total de relações e o afastamento maior das crianças, que tornou-se definitivo
quando a ex-nora e seu novo marido mudaram-se para outra cidade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Ela
não aprovava as hostilidades das filhas, que chegavam a xingar a ex-cunhada
quando cruzavam com ela nas ruas,mas, como não compreender a revolta das irmãs
? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Sentia
saudade dos netos, principalmente da menina Liane, tão bonita, tão inteligente,
tão carinhosa. Dalto, o menino, bem mais novo que a irmã, era pequeno na época
em que ainda moravam na cidade e um pouco arredio. Liane já estaria uma moça hoje.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Dona
Edite tirava, de todas essas reflexões,
apenas uma certeza: não gostaria de estar ali. Mas teria de estar. Por causa do
filho Jadiel.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Liane
não gostaria de estar ali. Isto não tinha relação com o pai, ou os parentes
dele, com os quais nunca se importou muito. O problema era um possível
reencontro com a mãe, a quem não via há anos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Tinha
12 anos quando Ema e Jadiel divorciaram-se e a separação teve um impacto forte
em seu comportamento. Até então, pré-adolescente, não prestara muita atenção no
desgaste gradativo que a relação entre os pais sofria. A vida deles,
afinal, não diferia muito das de outros
casais da vizinhança: homens trabalhando, as mulheres cuidando das coisas da
casa e do controle direto dos filhos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Consumada
a separação,quando o pai teve de sair de casa e ela passou a ouvir da mãe que
Jadiel fora o culpado por tudo, Liane,
de início , ficou confusa. Se o pai trabalhava; sustentava a família, estava sempre por perto, não agredia a
mulher, dava-se bem com a vizinhança, com os colegas de trabalho, era culpado de quê? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Sim,
ela tinha consciência de que a mãe também era mulher de méritos,discreta,
caseira,sempre trabalhando duro, cozinhando,
mantendo a casa limpa, filhos o marido asseados, o que fortalecia a
questão: se ambos honravam seus deveres familiares e para com a sociedade,
porque tiveram de se separar? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Nas visitas semanais do pai, nunca tivera a
oportunidade de falar sobre isso. A postura de Jadiel, jamais tocando no
assunto, impedia tal diálogo. Era como se ele admitisse a versão da
ex-mulher .<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Passados
dois anos, os conflitos da adolescência fizeram-se presentes , tornando-a mais
rebelde. Nos atritos com a mãe, ela não perdia a oportunidade de evocar a
figura do pai. Sempre que o fazia, sentia
que Ema ficava vulnerável. Eliane tornava-se, então, implacável: ameaçava
fugir de casa, ir morar com Jadiel e acusava a mãe de ter sido a causadora da
dissolução do lar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E
quando Ema revelou a existência de um novo homem em sua vida, a revolta de
Liane exacerbou-se. Não o tratava
mal,mas fazia questão de demonstrar desagrado durante sua presença ocasional na residência. Não o
cumprimentava e, com frequência, assim que ele aparecia,saia de casa, batendo
portas. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Quando
a mãe comunicou-lhe a decisão de se casar novamente,explodiu. Como? Não tinha
vergonha de colocar outro homem naquela casa, que seu pai construíra com tanto
sacrifício? E ela e o irmão? Teriam de engolir
um novo pai? Gritou, xingou, trancou-se no quarto, imune aos apelos da
mãe para que se acalmasse e a ouvisse.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Não
lhe passou pela cabeça, então, ir à casa de Jadiel. Há muito tempo desistira de
fazer do pai aliado nas divergências com
a mãe.Sua postura sempre neutra, apaziguadora, dava-lhe a certeza de que jamais
poderia contar com ele.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Viu,
então,só uma escolha: ir embora. E o fez, no dia de seu aniversário de 18 anos,
dois meses após a discussão causada pela anúncio do casamento.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Foi
morar na capital, na casa de uma amiga,
que, também por divergências com os pais,decidira emancipar-se um ano antes.
Arranjou, de início, emprego em uma lanchonete; depois em uma loja, fez cursos
e agora estava estabilizada como secretária de uma construtora, onde conheceu o
companheiro, pondo fim a um período de relacionamentos efêmeros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Nunca
mais vira a mãe, o pai, nem o irmão.Amadurecera estes anos todos. Já entendia
as motivações da Ema para separar-se de Jadiel. Aprendera que a vida de uma
mulher não pode resumir-se a cuidar de filhos e marido, a não ser que ela opte
por isso,o que não pareceu ser o caso da
mãe.Mas não condenava o pai que, a seu ver,
equivocou-se ao concentrar, na busca pela estabilidade material da
família a condição para a estabilidade conjugal. Não sentia mais, portanto, a intensa revolta
anterior contra a mãe, nem a desilusão com o pai, que, na época, achava complacente
demais.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> E por que não retomara suas relações com a
família? Nem ela sabia responder. As
exigências da sobrevivência
absorveram-lhe as atenções e energias no início da vida independente. As
demandas afetivas fizeram o mesmo a seguir. E o tempo encarregou-se de aumentar
as distâncias.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Agora,
Liane prevê um reencontro inevitável e
constrangedor com a mãe, a parte mais difícil do retorno à sua terra de origem. E não sabe como reagirá . Por isso, não
gostaria de estar ali. Só o fará por causa de seu pai, Jadiel.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Jadiel
não gostaria de estar ali. Não por causa da ex-mulher, com quem as coisas já
estavam bem resolvidas há tempos. Não era segredo para ninguém que ele, a não
ser por alguma relutância no começo,o que, nestes casos é até comum, não criou
maiores problemas para o processo do divórcio. E que fora além de suas
responsabilidades legais, cedendo mais do que exigindo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Quem
o conhecia, sabia que muitas decisões dele levaram em conta o bem estar dos
filhos, o que teria de passar, necessariamente, pelo bem estar de Ema. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
questão da casa, por exemplo. Se insistisse na partilha,o imóvel teria de ser
vendido e a parte que caberia à mulher em dinheiro muito provavelmente não seria suficiente para assegurar-lhe, e
aos filhos, e mesmo padrão de moradia.Que eles ficassem na casa, até a situação
do mercado imobiliário melhorar. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Houve
quem achasse que a transigência dele devia-se a um sentimento de culpa pela
separação. Mas isto era algo que não o afligia. Não fizera , a seu ver, nada de
tão grave que justificasse o fim do casamento. Aprendera, desde criança, que um
homem casado deve ser trabalhador, prover o lar, ser fiel, tratar bem a mulher
, dando segurança no presente e preparando o melhor futuro para eles. Não considerara exagerado,
portanto, sua obsessão pela construção da casa, mesmo considerando-se que isso
o afastava do convívio familiar.Mas sendo um assalariado, como ganhar mais sem
fazer horas extras e trabalhar em fins de semana e feriados? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O
que o fez complacente para com as justificativas de Ema para a separação foi
o reconhecimento de que cometera erros de avaliação sobre o que uma
mulher espera de um casamento. Deveria ter previsto que, para ser feliz com um
homem, não bastam a uma mulher
casa,comida e roupa para vestir. Como atenuante para seus equívoco, contudo, recordava-se sempre de que
nunca fora sua intenção manter mulher e filhos
indefinidamente em regime de sacrifícios. Mas tinha por convicção que um
homem deve pensar, antes de mais nada, em garantir um abrigo seguro para si e
sua família. De nada adianta viajar, vestir-se bem, comer lautamente, vivendo
na casa dos outros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A questão da bebida também era debitada por
Jadiel em sua conta de equívocos. Mas abrandava sua consciência lembrar que os
goles depois dos dias de trabalho não o faziam perder dia de serviço, nem o tornavam
um homem agressivo em casa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
filha também não seria razão para Jadiel sentir desprazer em estar ali. Sabia
das mágoas dela por não tê-la apoiado ostensivamente em suas desavenças com a mãe, nem quando ela
decidira sair de casa. Justificara sua neutralidade no fato de que a rebeldia
da filha era decorrência da instabilidade psicológica típica de
adolescentes..Preferiu dar tempo ao tempo e fora surpreendido com sua fuga de
casa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Todas
essas pessoas, ex-mulher, sogra, filha e outras mais, tinham seus motivos para
não gostarem da idéia de estar ali. Ele também. Mas, entre todos, era o único que não poderia evitá-lo. Afinal,
era seu próprio velório.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
</div>
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal; margin-bottom: 0.0001pt;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: normal;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div style="line-height: 150%;">
<br /></div>
</div>
</div>
</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-92208485488445236472016-12-19T06:15:00.004-08:002017-01-04T03:22:14.809-08:00AMPLAS POSSIBILIDADES<div class="MsoNormal">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhm_PZ0zAY801HwJybWDsjdnRX_F7dWdAm1kBWy5OkNkHusQg-uwsU7-_P6koFjVci6KKg5-ift2oQOjmk6GXyxyCGAEOv05uQLARoopsFLXLSwtYfLxgJ9c5hfUf2Sor9gwgrLzuC9fX7y/s1600/deficientevisual-original1.jpeg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="287" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhm_PZ0zAY801HwJybWDsjdnRX_F7dWdAm1kBWy5OkNkHusQg-uwsU7-_P6koFjVci6KKg5-ift2oQOjmk6GXyxyCGAEOv05uQLARoopsFLXLSwtYfLxgJ9c5hfUf2Sor9gwgrLzuC9fX7y/s320/deficientevisual-original1.jpeg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Poucos metros antes do semáforo, notou
a luz vermelha e fechou os vidros do carro. Já conhecia o lugar. Como abelhas
atraídas por mel, homens, mulheres, crianças, logo cercariam o veículo,
oferecendo desde doces a quinquilharias, sem falar nos que começariam a limpar
o para-brisas ou a fazer malabarismos à sua
frente, com laranjas, pedaços de pau, bolas velhas, para depois exigirem
trocados pelo show.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Assim que o veículo parou,ouviu a
batida no vidro a seu lado. Também era prevista. Havia sempre alguém tentando
atrair-lhe a atenção dessa forma. Manteve-se impassível, olhando para frente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Ocorreu, então, a novidade: novas
batidas. Sua impassibilidade, antes, era suficiente para que não repetissem o
gesto. Mas este insistia. Virou-se, irritado, disposto a tornar sonora a
negativa de que não queria nada, quando viu o homem que continuava a bater no vidro, para
lhe oferecer doces: um deficiente visual. Com uma das mãos, segurava sua mercadoria, dropes, com a outra, a identificadora bengala branca, cujo punho usava para bater no
vidro. Óbvio que não poderia ter notado sua indiferença anterior. Cego,
esperava um sim,ou um não,sonoros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Era jovem , mas o único , pelo menos
naquele momento, a seu ver, com justificativa para ter tal alternativa de
sobrevivência. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Arrependeu-se, então, de sua
indiferença. Movimentou-se para abrir o vidro e comprar a mercadoria oferecida,
mas não teve mais tempo. O sinal abriu e , enquanto arrancava , pôde ver, pelo
retrovisor, o homem recuar lentamente , sem dúvida, frustrado, para o meio da
calçada. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">A consciência insistiu em incomodá-lo
enquanto dirigia-se ao Fórum, onde era promotor público. Afinal, não se deixa
de atender um cego. Sempre considerou a cegueira a maior deficiência que a
Criação poderia atribuir a um ser humano. Ninguém, acreditava, é mais
vulnerável do que um homem que não pode ver. Nem mais desprovido da beleza com
que a natureza enfeita a vida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Pensou em fazer um retorno, passar de
novo pela esquina e, desta vez, comprar toda a caixa de dropes que o cego
oferecia, mas já estava em cima da hora. Sua primeira de uma série de
audiências começaria em menos de 15 minutos. Outra hora repararia sua falha. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">A rotina agitada do Fórum fez com que
não voltasse a pensar no episódio por todo o dia. Atuando também na Vara de Menores, na Justiça Eleitoral, era um dos promotores mais
envolvidos em audiências. Além disso, como dirigente da entidade do Ministério Público voltada para
assistência social tinha, pelo menos por
três dias durante a semana, de dispor maior parcela de seu tempo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Não à toa era membro de prestígio no
Judiciário local e, não por coincidência, referência em jornais .<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Alguém certa vez insinuara a
possibilidade de que entrasse para a política, o que repudiou até com
veemência. Primeiro, por razões profissionais: pretendia seguir carreira no
Ministério Público. Depois, a política não combinava com seu jeito retraído, mais propenso à reclusão do que à
exposição aos holofotes, tão cara aos
homens públicos. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Ao final do dia, assim que entrou no
carro, recordou o episódio da manhã. Decidiu , ao ir para casa, seguir pela
mesma avenida, embora tivesse pouca esperança de que o homem ainda estaria
naquela esquina.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";"> Apesar do horário de verão, as sombras da
noite já se faziam presentes. Calculou que o vendedor, a esta hora, já teria
ido embora, abrigar-se, sem dúvida, em
moradia modesta da periferia. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Não errou a previsão. A esquina já estava
vazia dos pedintes de sempre.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">No dia seguinte, sábado, saiu cedo.
Havia planejado deixar o carro em um lava-rápido e cortar o cabelo, ações com
que preencheria a manhã. Uma vez no trânsito, ocorreu-lhe , em impulso repentino, usar a mesma avenida,
passar pela mesma esquina. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">E o homem estava lá. Como fizera com
ele, também aproximava-se dos carros e procurava chamar a atenção dos motoristas
batendo levemente com o cabo da bengala no vidro lateral.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Antes de chegar ao semáforo, entrou em
uma rua transversal e estacionou. Conversaria com o homem na calçada e assim
teria tempo para redimir-se da falha do dia anterior. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">O vendedor surpreendeu-se com seu
toque,no braço.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- Não deve estar lembrado, mas sou o
motorista que, ontem de manhã, acelerou quando você procurava chamar-lhe a atenção.
Não foi por maldade. É que o sinal abriu de repente . Peço que me desculpe.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">-Não precisa. Isso acontece com
freqüência. Muitas vezes eu nem noto quando o carro sai. Vai levar uns dropes
hoje?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- É essa a minha intenção,além de lhe
pedir desculpas. E quero toda a caixa. Assim, você vai para casa mais cedo.
Afinal, hoje é sábado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- Se é só pelo que aconteceu ontem, não
precisa fazer isso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- É também. Mas vou aproveitar e dar uma de Papai Noel para a
garotada que brinca na garagem do meu prédio. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">E, enquanto o homem procurava
desvencilhar-se da mercadoria para lhe entregar, ele o analisou detidamente. Como
notara na primeira vez em que o vira, era jovem,deveria ter no máximo uns 25 anos.A
camiseta e a calça de lycra, um pouco justas, realçavam-lhe músculos do peito , braços e coxas. Sem
dúvida, não fosse a deficiência visual, poderia ter um alternativa de
sobrevivência mais digna e mais produtiva,para ele e a sociedade. Ser um
operário,por exemplo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">O homem agradeceu. Ele pensou em
oferecer-lhe uma carona, mas desistiu da idéia. Havia se redimido, sentia-se
bem, e isso era tudo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Durante a semana que se seguiu, passou
todos os dias pela esquina, onde comprou
pacotinhos de dropes e trocou palavras com o vendedor toda vez que o
tempo do semáforo o permitiu. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Criou-se uma nova rotina na vida deste
homem de 35 anos, figura de destaque da comunidade; respeitado
pelos seus pares do Judiciário,pelas autoridades municipais e vizinhos; motivo
de orgulho dos amigos e da família e de inveja de inimigos e estranhos; bem
sucedido financeiramente, com cargo vitalício, salários muito acima da média;
realizador dos sonhos e anseios da mãe e
do pai, ele, conceituado advogado ; ela,
professora de música e benemérita social.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Tudo isso, entretanto,teve por preço a
sublimação, o recalque, a autorepressão e, por fim, a solidão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">É considerado , hoje,mais do que
nunca, um bom partido.Advogadas e funcionárias forenses estão entre as mulheres que mais tentaram chamar-lhe a atenção. Mas há também
as insinuações casuais de rua; afinal,
pode não ser um galã de telenovelas, mas é um homem de boa aparência, com seus
1,80 metro de altura, cabelos e olhos negros, corpo longilíneo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">A questão é que não são as mulheres o
objeto de seu interesse sexual.Mas a questão, também,é que o objeto de seu
interesse sexual o é apenas platonicamente. Jamais envolveu-se com nenhum
homem. O medo da revelação sobre sua sexualidade ocupou todos os espaços de sua
vontade física, de suas carências afetivas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Inimaginável sequer pensar que algum
dia seu pai tivesse disso conhecimento. Preferia que eles atribuíssem seu pouco
interesse por mulheres ao muito interesse pelos
estudos,pelo trabalho,pela carreira. E, à medida em que o tempo foi
passando, o medo de ser exposto estendeu-se
à sociedade como um todo, impermeável a qualquer tipo de homoafetividade e, sem
dúvida, implacável se ela envolvesse um promotor de Justiça.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Não, não poderia arriscar-se nunca;
jamais ceder às exigências do corpo. Sexo completo exige mais de um; segredos
completos requerem apenas um. Relações afetivas envolvem conflitos. Como evitar
possíveis inconfidências de um amante contrariado? Mesmo a impessoalidade do
amor pago traz riscos maiores: que garantias tem de que jamais seria chantageado
por um garoto de programa?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">O preço do medo foi, assim, a renúncia
à sexualidade, preço cada vez mais caro com o passar dos anos. Como não sentir-se
um ser humano incompleto? Como não ceder às neuroses?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">E então aparece aquele homem cego; e
então ocorre-lhe a idéia, o plano. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- A venda destes doces é sua única
fonte de renda ?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- É. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- Quanto você ganha?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- Em
mês bom,dá para faturar um salário mínimo e meio.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- Deve ser difícil viver com tão
´pouco.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- Fácil não é. Tem mês que , depois de
pagar o aluguel do quarto onde moro, sobra quase nada para o resto.Ainda bem
que sou sozinho.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Agora ele teria de fazer a proposta. A
mais estranha de toda a sua vida e, sem dúvida, a mais estranha jamais apresentada ao homem à sua frente. Achou despropositado
certo nervosismo que começava a sentir antes de fazê-la. Afinal, seu plano não
oferecia o menor risco. Analisara todas as possibilidades e, sem dúvida, o momento
da proposta era o que menor perigo oferecia. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Se o deficiente ficasse indignado, só
poderia demonstrá-lo verbalmente. Jamais saberia com quem conversara. Ele
tivera o cuidado de promover o encontro
em uma pequena lanchonete, distante da
esquina, discreta, para que ninguém os
visse e o identificasse futuramente
como acompanhante do cego em determinado dia e determinada hora.Ficar
incógnito, essa era a condição básica dessa relação, em todas as suas
circunstâncias, atuais e futuras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Então falou. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Confessou-se homossexual e queria, do
cego, que fosse seu amante. Pagar-lhe-ia uma quantia mensal, maior do que sua
renda com a venda de doces, atividade que ele não precisaria abandonar. Aliás,
a condição era que não a abandonasse. Nos dias em que quisesse sua companhia,
ele avisaria meia hora antes, por um telefone celular , cujo número não seria
identificado no aparelho que ele lhe daria. Na mesma ocasião, diria o ponto, a
cada vez diferente, para onde deveria
dirigir-se, onde o pegaria , de carro .O local onde ficariam, é claro,jamais
seria revelado. Era uma pequena casa
que alugara, em um bairro da periferia.
Evitou apartamentos e seus abelhudos vizinhos, zeladores e funcionários. Evitou
bairros centrais, ou da orla, onde pudesse ser
conhecido. E , de tempos em tempos, mudaria de endereço.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">O plano fora pensado meticulosamente,
até mesmo para não dar margem a que o cego pudesse utilizar algum subterfúgio
que o levasse à sua identificação. O homem poderia, por exemplo,combinar com
alguém que os vigiasse à distância e depois lhe passasse as informações. Por
isso,nada de rotinas. O local para onde o cego deveria dirigir-se poderia ser
mudado de repente; o convite poderia ser cancelado minutos depois. Ele também deixara bem claro que apareceria
sempre com disfarces que impediriam sua identificação, a qual tornar-se-ia mais
difícil,ainda pelo fato de os encontros serem
sempre à noite. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Fez questão de apresentar todos estes
detalhes .Era bom que o cego soubesse que estaria sendo vigiado todo o tempo e
que , ao menor motivo para desconfiança , ele simplesmente desapareceria
de sua vida.E, com ele, a generosa quantia que lhe seria paga mensalmente, cujo
valor deixou, de propósito,para revelar ao final da proposta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- Você não precisa me dar nenhuma
resposta agora. Ficará com este celular,
para o qual vou lhe ligar amanhã,neste mesmo horário. Se aceitar a proposta, ótimo; se não, pode ficar
com o aparelho de presente.Nunca mais o
procurarei. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Acabou de falar e esperou a reação do
cego. Claro que sua expressão, como a de toda pessoa com tal deficiência,nada revelou.Ainda mais com a
habitual camuflagem dos óculos escuros. Mas deu para observar, por outros
detalhes,que o impacto não fora pequeno.
O homem apertava com força, com as duas mãos sobrepostas, o apoio da bengala. A perna direita balançava
nervosamente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">A voz, porém, ao responder,não
refletia a mesma agitação:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- Isso foi uma grande surpresa para
mim- disse,pausadamente, a cabeça baixa, como se estivesse a olhar para o chão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">- A quantia que o senhor me oferece
realmente é tentadora e vai me aliviar de muito sofrimento. Mas isso não deixa
de ser uma prostituição, coisa que não me agrada. Estou balançado. Vou pensar e deixar para
responder depois.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Era uma dessas tardes ensolaradas de
abril, de muito sol , temperatura amena, céu azul, sem nuvens. Dirigindo o
carro pela alameda arborizada que o levaria ao prédio de apartamentos de classe
média alta onde residia, o promotor refletia sobre o início da alternativa que
acabara de propiciar à sua vida.. O primeiro passo fora dado com segurança, o que garantiria, acreditava,
que o resto da caminhada, rumo ao prazer e à completude de sua, até então
angustiada existência, ocorreria sem tropeço
algum.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Na estreita viela,entre barracos,que o
conduzia ao pequeno quarto onde morava, o deficiente visual também refletia. Até agora, desde que se conhecia
como gente,fora um pária.Nem tanto por ser pobre,porque esta não era sua
origem. Os pais, se não eram ricos, pelo menos podiam dar-lhe, na infância e
adolescência, uma existência digna , além de lhe propiciar oportunidade de estudo. Ele jogara tudo fora
, levando, desde a adolescência, vida de irresponsabilidade. Foi expulso de
todas as escolas em que o matricularam, por
faltas que iam desde a violência contra colegas e professores, até o
consumo de drogas..<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Tinha pouco mais de 18 anos quando
saiu de casa e ganhou o mundo,
atrás,segundo aspirava, de um jeito de viver bem,sem depender de ninguém
,muito menos do trabalho. Furtou, traficou,mentiu. Precisou mudar-se da cidade
em que residiu desde criança porquie vivia perseguido, tanto pela polícia, como
por companheiros de crime a quem
enganara.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "arial" , "sans-serif";">Agora, ansiava por melhores chances.Sem
perigo,mas sem trabalho. Jamais imaginou,
porém, que suas possibilidades pudessem ser
ampliadas tão rapidamente. Afinal, não fazem nem três meses que decidiu
fingir-se de cego para despertar piedade e, mais facilmente, vender doces pela
cidade. <o:p></o:p></span></div>
</div>
</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-61729243172994275912016-11-25T04:42:00.005-08:002016-11-28T05:31:11.022-08:00BELA JUDITE<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj7AWX08UXihscNVTNHFPeJWKip83uHV_VaxVSbtoL4HLwNuJxssPVf8Q7_OJN2WLBMITgm3EQMyjwCA6MR9bH1e_wYx8fP_q5HPz6IiZrwpQi4ZdMF7MiNr7b7bN1TByu3l4T82XIzzsbG/s1600/bela+mjudite.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj7AWX08UXihscNVTNHFPeJWKip83uHV_VaxVSbtoL4HLwNuJxssPVf8Q7_OJN2WLBMITgm3EQMyjwCA6MR9bH1e_wYx8fP_q5HPz6IiZrwpQi4ZdMF7MiNr7b7bN1TByu3l4T82XIzzsbG/s320/bela+mjudite.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Naquele dia, Maninho, soldado do tráfico de drogas ,voltava para
casa, após cinco anos preso. Era a
segunda vez que fazia este tipo de retorno. Já cumprira, antes, três anos de
pena. Fora encarcerado pela primeira vez aos 18 anos , retornou às celas aos 22. Seu intervalo de liberdade, após
chegar à maioridade, fora de apenas um ano.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Mas este segundo retorno não seria igual. Pelo
menos ele se esforçaria para que não fosse. Poderiam ser iguais a longa avenida por onde o transportara o
ônibus ou as escadarias, que o levariam ao
alto do morro da Vila Cearense ;
mas diferentes eram seu estado de
espírito e disposição para o futuro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
segunda temporada na cadeia tivera influência na mudança radical que pretendia
operar em sua vida. Para isso contribuíra a amizade com Arcano, veterano
presidiário ,cumprindo pena de 25 anos,
por uma verdadeira coleção de crimes. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Arcano
vivia o conformismo, última fase psicológica dos encarcerados de longa data. Sabedor
da importância da manter a esperteza e valentia, necessárias à sobrevivência no
ambiente carcerário, adquirira, entretanto, a serenidade de quem aprendeu o que,
a seu ver, valia pena na vida: a
liberdade e o amor de uma mulher.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E
fora Arcano quem convencera Maninho a
mudar de comportamento para que pudesse manter seu casamento com Judite, assunto de centenas de conversas entre os dois
homens,durante anos. Judite, a bela Judite, como a chamava
Maninho, era a razão de viver do jovem apenado, e o veterano sabia que nada o
desviaria daquele foco obsessivo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Resolva seu problema com a Judite e tudo será resolvido na vida -aconselhou o velho.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Mas
qual era o problema de Maninho com a Judite? A rigor, nenhum. Deram-se bem todo
o tempo em que puderam ficar juntos. A questão não era de relacionamento, mas
de tempo de convivência. Do dia em que optaram por uma vida em comum, apenas recém-saídos
da adolescência, até a data da primeira prisão dele, transcorreram apenas seis
meses. Saiu da cadeia e, um ano depois, estava preso de novo. Em nove anos e
meio, ficaram somente 18 meses juntos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Arcano
estava convicto de seu diagnóstico e conselho: se Maninho pretendia ter Judite
para si, como companheira permanente, deveria, de fato, compartilhar a vida com
ela. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Mulher nenhuma, em sã consciência, consegue viver como viúva de marido vivo-
lembrava-lhe o velho presidiário.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Essa
frase ficou martelando a cabeça de Maninho. Controlar Judite à distância era
inevitável, pela razão óbvia de que, presidiário, não podia estar sempre com
ela. Isso todos os detentos faziam com
suas companheiras.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Mas
isso é convivência que se tenha com a mulher amada? Maninho convenceu-se de que
não. Errara da primeira vez, quando achou que poderia conciliar a vida de
traficante com a conjugal. Fora preso apenas seis meses depois que passaram a
morar juntos. Três anos cumpridos, livre e de volta à casa, repetiu o erro,
sendo preso apenas um ano depois.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Também
na segunda detenção, obteve de Judite a garantia de que aguardaria seu retorno.
Assegurou-se de que a mulher cumpriria a promessa pelos meios já conhecidos da
vigilância externa, feita por companheiros de crime ainda soltos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Agora,
seria tudo diferente. De novo livre, deixaria definitivamente a criminalidade. Arranjaria
um emprego. Comunicara sua decisão a Arcano, que a aprovou, assegurando-lhe que
era isso que sempre pretendia dele. E
aconselhou-o a se mudar, ir para outra cidade ou até outro estado pois, permanecendo
na comunidade, seria sempre assediado pelos antigos cúmplices, impedindo-lhe
que mantivesse, em paz, uma vida honesta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Fazendo tudo isso, terá as duas coisas
mais importantes para o homem: liberdade
e o amor da mulher amada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Tudo
isso passava pela cabeça de Maninho,enquanto ia para a casa da irmã de
Judite,com quem ela voltara a morar, depois que ele fora preso.Inácia era
casada, tinha um filho e Judite residia com ela quando a conheceu. Acácia nunca
lhe demonstrara muita afeição ( e ele entendia os motivos), mas nunca lhe fora
hostil. Davam-se bem. Baixinha e com tendência para engordar, era, fisicamente,
o oposto da irmã.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
beleza de Judite,que tanto fascinava
Maninho, não era em nada semelhante às
das demais jovens da comunidade, mesmo as mais bonitas.Não era feita de
exuberâncias de seios, coxas e bundas, tampouco de roupas coloridas, justas,
curtas; nem de cabelos coloridos e faces
idem. Magra, sem ser esquálida; tinha altura mediana , cabelos na cor castanho
( a mesma dos olhos), lisos e caídos naturalmente, em cachos, sobre os ombros.
O rosto, de linhas suaves, lembrava, a Maninho, os daquelas gravuras de santas que
via, quando garoto, nas revistas religiosas de sua avó. Católica
fervorosa, a mulher o criara, desde que
fora abandonado, ainda bebê, pela mãe,
solteira.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Judite
falava baixo, jamais dizia palavrões e seus gestos eram suaves. Amigos mais
próximos, aqueles de quem Maninho tolerava algumas brincadeiras, referiam-se a
ela como a “ Irmã Judite”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Como é que uma mulher dessas foi gostar de um perdido na vida como você?
dizia-lhe, sempre, Arcano, que a conhecia das visitas semanais ao presídio.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Após a decisão de mudar de vida, que não
comunicara à mulher,por achar que ela não acreditaria, determinara, também, que
não mais o visitasse. Na próxima vez em que se encontrassem, seria fora do
presídio. Não a obrigaria mais a ir àquele ambiente desagradável.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">No
dia em que fora solto, transcorrera mais de um ano após a última vez em que a
vira, o que aumentava mais ainda sua
ansiedade pelo reencontro. Não avisou previamente a hora de sua chegada . Por isso, Acácia mostrou a surpresa ao vê-lo á porta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Nossa! É você? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Com todos os ossos! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Sorria,
um sorriso que não aliviava a tensão interior.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Sua irmã está?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Claro. Entra. Senta. Vou chamá-la.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Sentou.
Na ponta do sofá, mãos cruzadas entre as pernas, o que sentia agora assemelhava-se ao que
sentira mais de uma década atrás,naquela mesma sala, quando fora propor a
Judite que fossem morar juntos: um misto de nervosismo,ansiedade e alegria
contida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Então entrou na sala a mulher. Sim, era
Judite, claro,mas não era Judite. Não aquela gorducha, de cabelos
opacos,amarrados em rabo-de-cavalo, olhar medroso, mãos para trás, como que
algemadas. Não aquela mulher que, ao esboçar um sorriso, mostrou a ausência de
um dente frontal superior.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Não esperava que você chegasse agora, só de noite.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Claro,
sua voz era a mesma, mas tinha algo de estalado e insegurança na entonação.
Onde estava a suavidade ,que antes ele sentia
nos ouvidos como se fosse
carícia?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Vestia
um conjunto de moletom, desbotado, calça ligeiramente apertada, realçando, principalmente na cintura, gorduras
a mais.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Livre de novo. E dessa vez, juro: nunca mais volto para aquele inferno. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
voz lhe saíra sem convicção; priorizara mais comunicar a satisfação com a
reconquista da liberdade do que comemorar o
reencontro com a mulher.Abraçou-a; sentiu que ela aconchegou-se a ele,
mas não a estreitou fortemente, como tanto sonhou que faria quando a
encontrasse . Omitiu também o beijo, que ela tampouco cobrou.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-E
você, como tem passado? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
pergunta soou burocrática, depois de acomodaram-se no sofá . Acácia,
após anunciar que iria fazer um café, retirou-se da sala.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Vou levando. As coisas não têm sido muito fáceis, pois meu cunhado está desempregado
faz tempo e eu peguei umas faxinas em casas do bairro para ajudar nas
despesas.E este ano inteiro sem ver você
só tornou as coisas mais sofridas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Enquanto
ela continuava a falar sobre sua rotina sofrida, bem que ele gostaria de
prestar atenção no relato , consolá-la ,
revelar-lhe sua disposição de mudar de conduta,
acenar-lhe com melhores dias.. Não conseguia. Difícil afastar a sensação
de que não era Judite quem se dirigia a ele . Pelo menos, não a bela
Judite. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Olha, preciso ir agora. Vim direto do presídio para cá e lembrei que preciso
resolver uns assuntos. Depois volto para a gente conversar mais e acertar
melhor as coisas. Avisa à Acácia que o café fica para outro dia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Falava
gaguejando, ao mesmo tempo em que se
levantava. Judite permaneceu sentada enquanto ele dirigia-se à porta, abriu-a e
saia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Quinze
dias passaram, sem notícias dele, até
que Acácia chegasse com a novidade:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Encontrei Maninho hoje, no mercado. Não o tinha visto, ele que me chamou. E
conversamos sobre a situação de vocês dois.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Judite
aproximou-se, lentamente, mas ansiosa. Desde aquele último reencontro após a
saída dele da prisão, nunca mais vira
Maninho,ou soubera qualquer notícia dele. Estes quinze dias de silêncio foram
mais angustiantes do que o ano todo em que ficaram sem qualquer contato, devido
à proibição dele de que o fosse ver na cadeia.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Estes
novos tempos, ela sabia, eram de definição. O clima estranho do último
encontro; o comportamento de Maninho no curto diálogo , a maneira como saíra da
casa, a falta de notícias, nada disso passou-lhe despercebido. Principalmente
pelo contraste entre aquele dia e o dia em que ele chegara em casa, após
cumprir sua primeira pena de prisão, anos atrás.Maninho, então, a abraçara e beijara apaixonadamente, demonstrara em
gestos e palavras o quanto ficara feliz em voltar a vê-la, em voltar a conviver
com ela.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A
irmã interrompeu suas reflexões.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Ele disse que não tem aparecido, nem dado notícias, porque tinha muitas coisas
para fazer. Pensou que ia resolver os problemas pendentes em poucos dias, mas
não deu. Depois, à medida em que o tempo foi passando, ele começou a se sentir constrangido de vir aqui
pessoalmente dizer o que ele pretendia dizer. Então, resolveu transmitir por
mim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Judite
abandonou a atitude passiva recostada no sofá e reclinou-se em direção à irmã,
sem a menor preocupação em esconder a ansiedade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
E o que ele disse?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Que não vai mais viver com você. Pensou bem e , como acha que só lhe trouxe
problemas este tempo todo, não vai mais atrapalhar sua vida. Vai embora. Viaja
na segunda-feira. Deseja-lhe muita sorte e tem certeza de que você terá no
futuro a felicidade que merece.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Então , resumindo, ele acabou nosso casamento?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
E bem acabado , minha irmã. Depois que nos despedimos, atravessou a rua e sabe
quem veio ao encontro dele? A Dileusa. Parece que a morena conseguiu finalmente
o que sempre desejou, pois os dois subiram de mãos dadas, para os lados da
pracinha. Ele não vai embora sozinho,
pode crer. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Judite,
então, abandonou a postura de expectativa. Recostou-se no sofá, pernas e braços estendidos, relaxada.
<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">-
Bem que lhe falei que isso iria acontecer
quando, um ano atrás, você parou de se cuidar, começou a engordar, não
tratou mais dos cabelos, das unhas, não colocou mais a prótese dentária. Virou
essa coisa feia que está aí.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Acácia
sempre a alertara sobre a obsessão de Maninho por sua beleza, uma obsessão que
poderia levar a uma tragédia se ela resolvesse romper com ele.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Mas
agora, Maninho perdera o interesse por ela. Significava que não mais a controlaria, nem a manteria atrelada à sua vida de marginal. Acabava,
finalmente, aquela tensão permanente
representada pelo medo de deixá-lo e, ao mesmo tempo, de viver com ele.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> O plano de sacrificar a própria beleza para
que ele desistisse dela, e não o contrário, dera
certo e era isso que as duas irmãs comemoravam, agora, abraçadas, silenciosamente,
no meio da sala.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> <o:p></o:p></span></div>
</div>
</div>
</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-4198239785795663342016-08-19T07:44:00.004-07:002016-09-08T07:31:03.294-07:00INVISÍVEL<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzkFFXGIQ3GYoOECEf2Ar4-gZt_tX0oNvKdh5zXbvM_uPY8k9kBueFV5MeXQWnjrROET1tYveDxeKwFAMStrcXkNzPNOcdrVPtCfYVXa-EK_lW8cjfVLQ_RRXxkQx2eGBmzkf-uS5BROOu/s1600/invis%25C3%25ADvel.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="320" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgzkFFXGIQ3GYoOECEf2Ar4-gZt_tX0oNvKdh5zXbvM_uPY8k9kBueFV5MeXQWnjrROET1tYveDxeKwFAMStrcXkNzPNOcdrVPtCfYVXa-EK_lW8cjfVLQ_RRXxkQx2eGBmzkf-uS5BROOu/s320/invis%25C3%25ADvel.jpg" width="270" /></a></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Se você tivesse vivido
o que ele viveu, talvez fizesse o que
ele fez. Comecemos dizendo que ele saiu da prisão por volta de seis horas desta manhã. Mania de madrugada da
polícia, pois, quando o prenderam, 15 dias atrás, o sol também mal havia
surgido. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Pelo menos chegará em casa sem que ninguém
o veja. Nem seus pais que, desde o dia em que o encarceraram, saíram do
bairro e foram morar com parentes, em
uma região mais distante da cidade.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Sabe como entrar na
casa, abrindo aquela janelinha da área de serviço . Tomará um banho e trocará de roupa. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">O que viveu para justificar o que fez? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Sua família é composta
pelos pais, irmã e irmão. O irmão tem 26
anos, 10 a mais do que ele; a irmã , 12.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">O irmão não mora com eles . Vive e trabalha em uma cidade vizinha, uns 20 quilômetros dali.
Mas, para a mãe, é como se morasse em outro país. Vive suspirando de saudade e, quando ele vem para casa, em alguma folga,
é como se chegasse o rei.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">A irmã é a jóia da família. Muito mimada, principalmente
pelo pai.Presentinhos, carinhos; quando fica doente, uma gripe que seja, é um
Deus nos acuda.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Não se pode dizer que o
tratam mal. Mas vive sempre com a
impressão de que todo o respeito da
família vai para o mais velho,todo o carinho para a mais nova e , para ele , a
sobra.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"> O pai trabalha o dia todo , a mãe vive
atarefada em casa de manhã à noite, e ele sente-se sempre secundário quando o assunto é atenção para os
filhos. Quem é filho do meio sabe como
funciona isso.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Se há alguma comemoração em casa, Natal, aniversário,essas coisas, e se recebem o pessoal da família, o que acontece? Elogios à
beleza , às boas notas , à boa educação da irmã; demonstrações de saudade, orgulho pelo trabalho e responsabilidade do irmão; quanto a ele, vai bem, obrigado. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Quando era mais novo, ainda procurava atrair a atenção,
mas agora não . Nestas ocasiões, quando
possível, escapa para o quintal ou para seu quarto ( sim, um quarto só dele, o que dividia antes com o
irmão). <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Ano passado, , aniversário da irmã, estava no quarto, chegou a hora dos parabéns e esqueceram de chamá-lo. Teve a
impressão de que , se não tivesse ido
para a sala, alertado pela cantoria e palmas, esqueceriam,também, de seu pedaço de
bolo. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">É por causa de tudo
isso que é calado e esquivo . Inclusive
na escola. Prefere ficar no seu canto;
quanto menos prestarem atenção nele, melhor. Quando estava no primeiro
grau, ficava no fundo da sala e, como
era um dos mais baixos da classe, os professores
viviam ordenando que se sentasse na fila da frente. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Sua vida tem sido de
casa para a escola e da escola para casa, e mais alguma coisa que não possa
evitar, como visitas a parentes ,ou eventos estudantis.Você pode crer que, se ele
tivesse que manifestar desejos para um
gênio da lâmpada, pediria primeiro para
ser invisível. Por enquanto, já se sente
meio invisível, escondendo-se ou
ninguém prestando muita atenção nele. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Então, aconteceu de
conhecer a Cenira. Foi no começo do ano;
ela, nova na cidade , passou a fazer
parte da mesma classe escolar.É de família turca e tem aquele jeito meio
diferente das mulheres de seu país, os cabelos grandes e negros, os olhos também
e bem redondos. Muito simpática, sem ser exibida, logo fez amizades, conversa e
brinca com todo mundo. Não é preciso de dizer que, no caso dele, não
vai além dos cumprimentos. “ Oi!”, “ Alô!”, “ Tchau”! <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">É bem verdade que ele
não dá muita chance para maiores efusões. Sempre no canto, sempre sozinho
e calado, torna difícil aproximações . Também nunca fez muita questão
disso. Mas com Cenira é diferente. Ela
acendeu sabe Deus, que chama dentro dele, fazendo-o suspirar por
algo mais que “ oi”, “ alô” e “ tchau”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Mas por que ela se
aproximaria dele, tendo garotos muito mais
interessantes com quem ter amizades? O
filho do diretor da escola, por exemplo; o sobrinho do prefeito , ou o garoto que toca
violão e canta?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Deve existir alguma coisa
que o faça ser notado também. E foi da incessante busca a uma resposta para tal
questão que surgiu o plano. Que, até
agora, no momento em que se dirige para casa, após aquela temporada na prisão,
transcorre conforme o previsto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">É preciso apressar o
passo e chegar nas residência antes das
seis,sem que ninguém na rua o veja. Poderá tomar um banho,descansar e, perto do maior intervalo entre as aulas,
fazer a grande reaparição na escola .Será memorável,
acredita, porque, depois de sua façanha, já não é mais invisível.É alguém com quem todo
mundo vai querer conversar, fazer perguntas.Aquelas meninas que quase nunca
prestam atenção nele e vivem suspirando pelos bacanas da classe; os
professores; até mesmo, e principalmente , Cenira. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">O que ele fez não é
algo que se faça de uma hora para outra. Exigiu inteligência , paciência e
planejamento. Tudo pensado, em detalhes, coisa não tão difícil para quem na vida sempre
teve pouco com que dividir sua atenção.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">A idéia surgiu com a
notícia de que 10 brasileiros haviam
sido presos acusados de fazerem parte do Estado Islâmico, o grupo terrorista
que quer transformar o mundo em um califado . A Polícia Federal os descobriu monitorando as redes sociais.Os
investigadores tornaram-se mais atentos e precavidos com a proximidade das
Olimpíadas do Rio de Janeiro por causa da possibilidade de brasileiros, recrutados pela
grupo, realizarem massacres durante os jogos . A polícia agiu
rápido: identificou trocas de mensagens suspeitas e prendeu os seus autores. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Estado islâmico nunca
foi um assunto que lhe interessou muito, nem mesmo a possibilidade do grupo ter
representantes no Brasil causa-lhe espanto. O que chamou sua atenção,mesmo, foi
a fama súbita dos brasileiros presos. Era gente comum, absolutamente anônima
e,de repente,tiveram seus nomes e fotos estampadas nos programas de TV, jornais e revistas de todo o mundo.Três deles não eram
conhecidos, antes, nem por seus vizinhos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Claro que nem de longe
passou-lhe pela cabeça virar terrorista para deixar de ser invisível. Não quer fazer
mal a ninguém. Gostaria de usufruir unicamente da fama que um episódio destes
pode dar a seus protagonistas. Mas, como
ganhar notoriedade como jovem terrorista
brasileiro e internacional, sem matar ninguém,
explodir nada, cair na clandestinidade e, menos ainda, ser morto ou preso pelo
resto da vida??<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Sua inteligência,
aguçada por horas e horas recluso no
quarto, diante do computador, trouxe-lhe, rápida, a resposta. Se as investigações
estavam sendo feitas na internet, principalmente nas redes sociais, seria ali o palco de sua atuação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Três meses depois, seis
horas de certa manhã, o primeiro sinal de que o plano daria certo:homens
estranhos apresentaram-se à sua casa como agentes da Polícia Federal. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Assustou-se um pouco
com o aparato da captura.Ante o olhar atônito dos pais, agentes mal encarados e silenciosos algemaram-no
e conduziram-no , sem truculência, mas de maneira firme, para um camburão.Minutos
depois , o veículo, escoltado por outro, logo atrás, entrava no subsolo de um
prédio antigo . Saíram do carro, entraram
em um elevador. Silêncio quebrado apenas pelos ruídos de portas
fechando e abrindo. Deixaram-no só em uma cela.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;"> Pôde, então, analisar melhor a situação.Logo ,
os jornais noticiariam a prisão de mais um terrorista brasileiro.Sua foto e nome, sem dúvida, já estariam rolando nas redes
sociais. O mundo, então, tomaria
conhecimento de sua existência. Não que o mundo lhe importasse. Deliciava-se em
imaginar as reações entre seus colegas de escola.Os bacanas estariam escondendo
sua inveja sob observações sarcásticas a seu respeito, do tipo:“ Sempre
desconfiei daquele maluco”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Mas haveria, também,
reações de medo, talvez até de alguma
histeria: “ Meu Deus,um terrorista entre
nós!” exclamar-se-ia na sala dos professores.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">E quem poderia
negar o fascínio entre as meninas? “ O
esquisitão, quem diria, heim”?<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="text-align: justify;">
<span style="font-family: "times new roman" , "serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">Tiraram-no da cela no
outro dia, bem cedo ( a mania policial da madrugada mostrava-lhe seus primeiros
sinais), para o primeiro interrogatório. Não sentia mêdo, afora inusitada sensação de desamparo ao percorrer longos, escuros e úmidos corredores,
até uma sala pequena, mas não menos
escura e úmida. A meticulosidade de seu plano lhe
garantiria o controle da situação.<o:p></o:p></span></div>
</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-73019355424421465652016-07-05T06:45:00.000-07:002016-07-29T06:42:15.356-07:00TEATRO DE COINCIDÊNCIAS<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6WsL5V0N19bjL4p54r3CbPb6-dJ7dOZMJKvRLKGH_ynH8FfUHPL4a2zGnOTfGt-XLZemCZpR9KL7UFlFExjMg6J5U0ph40rASSmDEaE4ejCt5-ES_MXwuA2SOa1WHwKvc6Hpyo8KOOV9U/s1600/fuma%25C3%25A7a.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="238" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj6WsL5V0N19bjL4p54r3CbPb6-dJ7dOZMJKvRLKGH_ynH8FfUHPL4a2zGnOTfGt-XLZemCZpR9KL7UFlFExjMg6J5U0ph40rASSmDEaE4ejCt5-ES_MXwuA2SOa1WHwKvc6Hpyo8KOOV9U/s320/fuma%25C3%25A7a.jpg" width="320" /></a></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Não se viam há cinco
anos, desde os tempos da faculdade e, agora, encontraram-se naquela lanchonete
no final do expediente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Como estão as coisas? Quais as novidades?]<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Estou aí, na luta. E
você?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E começaram a falar dos
rumos que suas vidas tomaram, após se formarem; lembraram coisas e pessoas da época estudantil, riram; emocionaram-se.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Incrível coincidência
encontrá-lo. É a primeira vez que entro
neste bar.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- De vez em quando
passo por aqui, para tomar um café, comer alguma coisa rápida.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Mesmo assim , acho
uma tremenda coincidência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Se você acha isso
coincidência, o que dizer, então dos ganhadores da megasena,que acertam aqueles
seis números, quando as chances de isso ocorrer são de uma em 52 milhões?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Pensando assim,você tem razão.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- É por isso que não me
surpreendo muito com as coincidências da vida. Presenciei uma aparentemente
incrível no dia do fumacê. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Dia do fumacê?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- É. Quando aquela
nuvem tóxica cobriu todo o centro comercial. Lembra?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- É mesmo. Parecia coisa de ficção científica.
Só faltou aparecerem zumbis canibais. Felizmente, eu estava na orla.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Pois eu estava aqui no
centro, olho do furacão.Mal tive tempo
de me abrigar, antes que a fumaça me envolvesse.Em menos de dez minutos, tudo ficou
coberto pela neblina. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- E a coisa era mesmo
tão perigosa assim?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Ninguém morreu, mas quem esteve exposto à
nuvem ficou com olhos ardendo, ânsia de vômito, dor de cabeça, de barriga. Quem viu de longe, pensou que era
algum incêndio, pois a fumaça começou a aparecer pelos
lados do porto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Um primo meu, que também estava no centro,
disse que foi uma loucura. Em pouco tempo, tudo começou a escurecer e a
correria foi geral. Meio cegos, a garganta queimando, as pessoas
procuravam qualquer local onde se abrigar.Lojas e recepções de prédios
logo ficaram lotadas e começaram a fechar as portas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Eu e mais dois senhores, já idosos, tivemos
sorte de entrar em uma pequena lanchonete. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Ainda bem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Aí aconteceu a
primeira coincidência. A lanchonete não atenderia o público naquele dia por
causa de reforma no equipamento de refrigeração. Mas, justo naquele momento, a
porta estava aberta pela metade porque o gerente esperava os técnicos que
fariam os reparos. Por isso, eu e os dois senhores pudemos entrar. Alertei o gerente sobre a nuvem de fumaça e ele,
imediatamente, baixou a porta.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“ Ficamos, então, nós
quatro, estranhos entre si, confinados na lanchonete, que é dessas pequenas,
parecendo mais um corredor. Um balcão comprido; uma fileira de mesas e
cadeiras, em resumo”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“ Pedi ao gerente para
ligar a TV, a fim de sabermos o que
estava acontecendo lá fora. Se não eram apavorantes, as notícias também não
tranqüilizavam ninguém.O gás não era
mortal para quem se expusesse a ele em áreas livres e por pouco tempo.Mas não
estava se espalhando rapidamente devido à falta de ventos. Por isso as
autoridades não sabiam quando as pessoas poderiam sair de seus abrigos. Sorte
que vivemos a era do celular e quase
todo mundo pôde avisar os parentes e amigos sobre o que estava acontecendo”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- E vocês quatro
tiveram que se enturmar, mesmo sendo estanhos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- No começo, os dois
senhores ficaram calados. Até compreensível. Estavam mais preocupados em ligar
para os parentes. O diálogo inicial foi entre eu e o gerente. Claro que o
assunto era a nuvem tóxica.. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“Procuramos notícias
atualizadas na TV. Uma delas teve especial importância: a de que a fumaça
tóxica foi causada pela reação química entre a água da chuva e uma substância
estocada em um contêiner no porto. A
água entrou por um buraco na caixa de aço. Quando a fumaça saiu, em grandes
rolos, a reação aumentou pelo contato dela com a chuva”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“Por isso, as
autoridades pediam para que as pessoas evitassem colocar lenços umedecidos na
boca ou nariz; ou vedar aberturas das moradias ou lojas com panos molhados, ao
contrário do que se costuma fazer em
situações semelhantes . Para garantir
melhor o cumprimento dessas recomendações,
cortou-se o abastecimento de água para toda a área coberta pela fumaça .”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- E em caso de sede?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Bem, no nosso caso,
havia água no reservatório do prédio.Isso não seria problema.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- De qualquer maneira,
se faltasse água, podiam contar com os refrigerantes da lanchonete, né?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Não.O comerciante
tinha esvaziado o refrigerador e levado todo o estoque de bebidas para casa, a
fim de dar espaço para os técnicos fazerem os reparos. Mas havia em uma
prateleira, em frente do balcão, algumas
garrafas de vinho tinto. Depois de algum
tempo conversando bobagens com o gerente e trocando apenas monossílabos com os
dois senhores,que continuavam caladões, sentados cada um a uma mesa, pedi uma garrafa . Convidei todos a
compartilhar a bebida comigo , mas, de imediato, só o gerente concordou em
beber um cálice”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“ Uns 20 minutos
depois, um dos senhores resolveu tomar um gole. O outro acompanhou-o e, passada
uma hora, o conteúdo de dois litros já tinha ido embora.”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“ Os dois senhores
bebiam pouco, o consumo maior era meu e do gerente Via-se que não eram pessoas
acostumadas à bebida alcoólica .Logo, estavam meio vermelhos, mais agitados e
com a língua solta”.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Primeiro começaram a
falar sobre o acidente , apresentar
teses sobre causas e consequências.
Depois, o diálogo ficou mais pessoal. Foi quando nos apresentamos uns
aos outros.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Um dos senhores, calvo
e magro, era jornalista,aposentado ; o
outro, de mesma altura, porém mais forte e com cabelos completo,era
engenheiro.À proporção que o tempo ia passando,talvez pela identificação
inicial da idade, passaram a ocupar a
mesma mesa e conversar entre si.Tendo o gerente se afastado por uns instantes
para se concentrar no seu refrigerador quebrado,fiquei só e virei assistente e ouvinte de um diálogo que só posso chamar de “ teatro
de coincidências”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E pensar que eu não
vinha para o centro hoje. Vim só para comprar um presente para meu neto,que faz
aniversário.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Você é avô?Também
sou.Meu neto tem quatro anos, e o seu?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Seis. E pediu uma
camisa do Santos FC de presente. O que a gente não faz por um neto, heim?
Eu,corintiano, entrei em uma loja e comprei uma camisa do Santos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Também sou assim. Para
o neto, tudo. Dizem que sou o avô mais babão da Cidade. E olha que ele nem é
meu neto biológico. É filho da minha enteada,que é filha de minha segunda
mulher. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">É o meu caso.Sou casado
pela segunda vez e este meu neto é filho de minha enteada.Mas tenho um neto de
verdade, filho de minha filha biológica, de meu primeiro casamento.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Eu também.Quando me
separei de minha primeira esposa, meu filho,
que na época tinha quatro anos, ficou com ela.Hoje,casado, tem um filho
de três anos.Mas minha relação maior é
com meu neto “postiço”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">É o que acontece
comigo.O filho de minha enteada é como se fosse meu neto de verdade. Com o
outro, não tenho nenhuma convivência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Não sei quanto a
você,mas, no meu caso,isso acontece porque meu filho, depois de meu divórcio,
nunca mais conviveu comigo. Minha ex-mulher casou de novo, saiu da cidade e o
padrasto acabou me substituindo no lugar de pai.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Vivi situação parecida.
Mas minha ex-mulher, depois do seu segundo casamento, continuou vivendo por
aqui, mesmo. Como nossa separação foi muito conflituosa, ela criou muitas
dificuldades para minha convivência com minha filha, que acabou se apegando ao
padrasto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Ou seja: nós dois
acabamos sendo substituídos como pais e avôs.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Pararam de falar
por instantes, interrompidos pelo aviso
de edição extra, na TV,sobre o acidente.A informação era de que os bombeiros,
impossibilitados de retirar o produto químico do contêiner,decidiram jogar água
nele. Procuravam, assim, acelerar a reação química e acabar com o estoque do
produto, dando fim rápido à neblina tóxica..<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> “A notícia não me interessou muito.
Significava, apenas,que iríamos ficar por mais algum tempo confinados.O que me
impressionava mesmo era o conjunto de coincidências envolvendo a vida daqueles
meus dois momentâneos companheiros. Os dois estavam em seus segundos
casamentos; tinham filhos das primeiras uniões. Separaram-se e casaram-se de
novo com mulheres que também tinham filhos de casamentos anteriores. Seus filhos cresceram, casaram e tiveram
filhos. As enteadas, também.Em conseqüência, tanto um, como o outro, tinham
filhos e netos postiços e filhos e netos biológicos.Mas relacionavam-se melhor
com os netos postiços porque conviveram pouco com os filhos legítimos, após os
respectivos divórcios. Estes, por sua vez, apegaram-se mais aos padrastos, que acabaram
ocupando os lugares de pais e avôs.Confuso de explicar, mas nem por isso
incrível, por ser história comum de dois homens unidos por acaso naquele mesmo
lugar”. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“Encerrado o flash
extraordinário de notícias, reataram o diálogo. Aos vapores do vinho, somava-se, agora, como
motivador de mais conversa, a descoberta de tantas coisas em comum em suas
vidas.Que mais coincidências estariam por vir?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Nas poucas vezes em que mantive contato com
minha filha, depois dela adulta, ela disse que fui omisso como pai e que o
padrasto foi sua referência masculina, por isso
ela o tinha como verdadeiro pai.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO-<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E você não tentou
explicar as dificuldades criadas pela mãe dela para relacionar-se normalmente com ela?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Para falar a verdade, nem tentei muito. Acho
que por um certo sentimento de culpa, por não ter lutado com mais contundência
por minha filha, quando houve o divórcio e ela ainda era pequena. Sei lá.
Mesmon quando já era adolescente, eu achava que não adiantaria, porque ela, a meu
ver, não entenderia nada e ainda estava sobre forte influência da mãe. Acreditava
que,quando ficasse adulta, poderíamos
nos entender melhor. Mas parece que a coisa desandou e, agora, ficou
irreversível. Nunca tivermos essa conversa.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Isso é duro. Mas, caso sirva de consolo, acho
que minha situação foi pior.Porque nunca mais falei ou o vi meu filho desde que
ele era pequeno. É constrangedor dizer, mas
se ele passar por aqui, agora, eu não o reconheceria. Nem ele a mim.E
pelo que soube, ele não tem o menor interesse
de conhecer o pai.Como sua filha, ele considera seu verdadeiro pai o padrasto.Como conseqüência disso tudo,também
não conheço meu neto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA-<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Pelo menos conheço a
Belina e ela a mim.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Fez-se curto silêncio
entre os dois. Do lugar em que me encontrava, no extremo do balcão, não pude
ter certeza, mas parecia-me que ambos tinham os olhos marejados.O engenheiro
baixou por instantes a cabeça, a mão direita na fronte, mas levantou-a
rapidamente, e, como que tendo uma
lembrança súbita, perguntou, em voz alta:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Belina? Você disse Belina?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA-<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">É. Belina. Este é o
nome de minha filha. Foi escolhido pela minha ex-mulher. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Mas este é o nome de minha enteada.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Vai me dizer que o nome de sua mulher é Lena?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Isso mesmo!<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Este é o nome de minha ex-mulher.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Você entende, agora,
porque lhe disse que essa era uma história de incríveis coincidências? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- É mesmo. O
engenheiro, então, era o padrasto da filha do jornalista. Só falta, agora, você
me dizer que o jornalista era o padrasto do filho do engenheiro.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Não. Não chegamos a
tanto. Mas você há de convir que é muita coincidência, não?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- E após a revelação, o
que aconteceu?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Você não vai acreditar,
mas ficaram meio catatônicos. Não sei se foi a revelação; ou efeitos do vinho,
mas calaram-se e evitavam fitar-se. Cada um olhou para um lado, como se, agora,
tivessem que medir as próximas palavras. Foi quando a vinheta anunciando notícia extraordinária se
fez ouvir de novo e nossas atenções
voltaram-se para a TV. Informava-se que
a fumaça havia se dispersado e as pessoas já podiam retornar às suas casas.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“ Atraído pelo diálogo
entre os dois homens, eu tinha até esquecido do motivo que levaram nós quatro a ficarmos confinados naquela
lanchonete. E lamentava, intimamente, que
a conversa fosse interrompida após a importante revelação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Os dois homens demonstravam não querer
continuá-la. Levantaram-se, fazendo menção para sair. Não esboçavam qualquer
intenção de despedir-se de mim e do gerente do bar, o que,além de tudo,revelava
ingratidão pela acolhida que ele nos dera.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“ Não me contive. Mesmo
que me considerassem um intrometido,eu precisava opinar sobre o que ouvira.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Desculpem-me, mas
acompanhei toda a conversa de vocês dois.Acho que, além de ter servido como desabafo,
ela pode ter maior utilidade para os dois.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Viraram-se para mim,
interrogações nos olhares, resumindo uma só pergunta: “ Como assim?”<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Sua filha, senhor, jornalista, despreza-o
porque o considera omisso. Ama o padrasto porque ele foi sempre presente na
vida dela. Entretanto, ela não sabe que o filho do padrasto dela faz a mesma
acusação ao pai. Ou seja: o senhor é um mito para sua enteada,, mas é
desprezível para seu filho.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Continuaram olhando-me
com expressão de “E dai?” Continuei:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Então,o senhor
engenheiro poderia explicar à sua enteada que o pai dela fora vítima das mesmas
restrições que ele. Ambos podiam até ter sua parcela de culpa- falta de brios
para reivindicar direitos de pai; excesso de cuidados para não melindrar os
filhos ainda pequenos- mas não podiam ser os principais responsáveis pelo
afastamento deles. Essa culpa teria de ser dividida com as respectivas mães.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Calei-me e os
observei-os por alguns segundos. Olhavam-me, demonstrando compreensão do que eu
havia dito, mas portavam-se como se não tivessem nenhuma energia para tomar alguma atitude a
respeito. Continuei:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- E você, senhor
jornalista, poderia, em contrapartida, procurar o filho do engenheiro e contar
a mesma história.Fazer a comparação entre os dois casos.Mostrar que se ele foi
um excelente padrasto, poderia ser, também, um excelente pai se lhes fossem
dadas as oportunidades de convivência.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“ Timidamente,
parecendo mais querer uma orientação do quer uma resposta, o jornalista rompeu
o silêncio:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- E você acha que,nesta
altura da vida, isso vai resolver alguma coisa? Vai nos tornar amados por nossos filhos como somos amados por
nossos enteados? Sermos amados por nossos netos biológicos, como somos amados
por nossos netos adotados?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Não posso dar certeza
quanto a isso- respondi- mas pelo menos
seus filhos terão novas versões sobre as quais refletir, além daquela que
ouviram a vida toda de suas mães.Claro que não deixarão de amar seus padrastos,
mas terão a chance de retomada de um diálogo que poderá fazer com que possam
abrir seus corações também para vocês.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">“ O vazamento de gás, a convivência temporária naquele salão com desconhecidos; a
revelação sobre a proximidade de suas famílias e, não mais importante, a
quantidade incomum de vinho que tomaram, sem dúvida explicam a reação, pelo
menos para mim inesperada, que tiveram a seguir. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">ENGENHEIRO<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> Obrigado.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">JORNALISTA<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">A gente se vê por aí.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;"> E, lentamente, meio cambaleantes, sem mesmo
olhar um para o outro, saíram do salão. Uma vez na calçada, dirigiram-se paras
lados opostos. A mim restou agradecer ao gerente da lanchonete a acolhida, tentar pagar pelo vinho consumido
( o que ele recusou) e ir embora, também. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Será que eles
voltaram a se encontrar? Que colocaram em prática suas sugestões?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Como saber? Mas esta cidade é pequena e
qualquer dia vão tropeçar um no outro, por aí..E, sem os vapores do vinho, a conversa
poderá ter rumo diferente.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- Bem, hora de ir
embora. Meu carro está na praça.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">- O meu está em um
estacionamento<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">- Sem coincidência, portanto.<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">- Tchau.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 115%;">- Tchau.</span></div>
</div>
</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-25218269642291701142016-01-21T07:31:00.004-08:002023-07-07T15:46:22.805-07:00O QUARTO DAS COISAS QUEBRADAS <div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<div style="line-height: 200%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm; text-align: justify;">
<div style="line-height: 200%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 200%;">
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiOOkPxFgTuiv2_HbGvB1OortDLlMRUkqkNiipHV0mXh2aI8h5QHNJWn6Py455Cg7M8PSTCAklR9TGGWg1IcLWZWjo7pXJ5lgBxw_H8Wq41JhnPBqYO10LcQezOGTsF5BESeymw2a0u4De4/s1600/quadro_bela_e_o_monstro.jpg" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" height="300" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiOOkPxFgTuiv2_HbGvB1OortDLlMRUkqkNiipHV0mXh2aI8h5QHNJWn6Py455Cg7M8PSTCAklR9TGGWg1IcLWZWjo7pXJ5lgBxw_H8Wq41JhnPBqYO10LcQezOGTsF5BESeymw2a0u4De4/s400/quadro_bela_e_o_monstro.jpg" width="400" /></a></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">A FERA</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">O PRÍNCIPE</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;"> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Apaixonaram-se.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">UMA NOITE</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">OUTRA NOITE</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">E a princesa também não estava na cama.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">E OUTRA NOITE</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Natural despertar desconfiança na</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">A CRIADA</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;"> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;"><br /></div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;"> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">PELA JANELA</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><div>Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.</div><div>A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a perfeita mescla entre o mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição, a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.</div><div>A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava seu trato com as demais pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.</div><div>Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.</div><div>A FERA</div><div>Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.</div><div>Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.</div><div>Deveriam, então, os súditos preocupar- se com a existência da fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?</div><div>Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir súditos mais distantes, contudo, os casos foram tão esporádicos que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem. Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.</div><div>Não à toa , devido à isso, a princesa era solitária. A não ser por alguns criados, poucos se aproximavam da jovem. E entre os que o fizeram, dizia-se, ninguém ficou imune ao ataque da besta. </div><div>E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.</div><div>E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.</div><div>Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...</div><div>O PRÍNCIPE</div><div>Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é invulnerável a perigos. Ou talvez por acharem que sempre surgem príncipes dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .</div><div>Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível algoz. Apresentou-se no castelo e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.</div><div> A princesa sorriu e, ao príncipe, pareceu ter nascido o sol entre seus lábios.</div><div>“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que tudo tentam explicar.</div><div>“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ? - indagou o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até arremedos de romances, mas que pouco significaram.</div><div>E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico, com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.</div><div>Apaixonaram-se.</div><div>UMA NOITE</div><div>As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.</div><div>Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo, sons de vozes e de algo sendo jogado ao chão.</div><div>Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor, surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.</div><div>OUTRA NOITE</div><div>Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.</div><div>E a princesa também não estava na cama.</div><div>Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.</div><div>E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.</div><div>Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .</div><div>Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim, entrecruzarem-se as vidas?</div><div>Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também, precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.</div><div>E OUTRA NOITE</div><div>Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada da condição de guardiã de tão terrível ameaça.</div><div>Horas depois, cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um salão amplo , maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.</div><div>O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados; utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. </div><div>Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?</div><div>Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.</div><div>Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.</div><div>Tentou levantar-se, mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .</div><div>Natural despertar desconfiança na</div><div>A CRIADA</div><div>Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão, entre objetos quebrados?</div><div> Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.</div><div><br /></div><div>“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.</div><div>“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.</div><div>E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.</div><div>Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão; sim, visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.</div><div> Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.</div><div>Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo. Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?</div><div>Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.</div><div>Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.</div><div>Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.</div><div>Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.</div><div>A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular. Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.</div><div>Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente, a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la, e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se até ali a fera não a vitimara e tampouco a seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.</div><div>Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.</div><div>PELA JANELA</div><div>Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração. E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. </div><div>Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .</div><div>Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.</div><div>Inevitável sentir o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.</div><div>Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de amar alguém, para não ocorrer de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada no quarto das coisas quebradas.</div><div>Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.</div></div><div><br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
</div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
</div>
<div style="line-height: 200%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
</div>
</div>
</div>
</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-91221092240453446692010-12-23T05:05:00.000-08:002012-09-26T08:47:55.592-07:00O JULGAMENTO<div style="border: currentColor;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidI53UQKJhb0id12frvxaaqbFrFnBYSi69leFY-7uTjIHo_BVRo6ccoyFZ5ZxIlYvBMmanQtpRtRhCsEO641ZFdYQPwsPWGHg_X0LXIVpjFB-Zw7yuteZVXtzvA9wYGDFzQDLlwPnudHU6/s1600/justice.jpg" imageanchor="1" style="clear: right; cssfloat: right; float: right; margin-bottom: 1em; margin-left: 1em;"><img border="0" height="200" n4="true" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEidI53UQKJhb0id12frvxaaqbFrFnBYSi69leFY-7uTjIHo_BVRo6ccoyFZ5ZxIlYvBMmanQtpRtRhCsEO641ZFdYQPwsPWGHg_X0LXIVpjFB-Zw7yuteZVXtzvA9wYGDFzQDLlwPnudHU6/s200/justice.jpg" width="145" /></a></div>
- Desculpe-me.<br />
<br />
- Não.<br />
<br />
Ela fitou-me com seus significativos olhos azuis. Havia uma sombra neles, só perceptível por alguém que acabara de reconhecer a prática de um erro.<br />
<br />
Erro ou esquecimento? Na realidade, uma falha de memória, um telefonema prometido e não dado.<br />
<br />
Eu nunca houvera visto a marca de censura em seus olhos claros. Aliás, as duas íris azuis ao me fitarem , refletiram desde a dúvida ao afeto, mas nunca a reprovação.<br />
<br />
Fiquei assustado. Ou magoado, sei lá. Admitimos a possibilidade do erro, mas não o fato de não sermos perdoados por ele.<br />
<br />
- Desculpe-me.<br />
<br />
- Não.<br />
<br />
Ela sorriu desta vez. Mas seus olhos continuavam com a indefectível sombra. Saiu sorrindo, mas deixando no ar um enigma.O sorriso parecia perdoar-me, mas os olhos condenavam<br />
<br />
Saí e voltei. Na mente,a imagem daquele julgamento estranho. Lá fora, os ruídos das pessoas, conversando ou trabalhando, tornaram-se mais distantes. Reli o poema que escrevera no dia em que deveria ter telefonado:<br />
<br />
<br />
<br />
Não existem pedras <br />
<br />
Em nossos caminhos,<br />
<br />
A não ser que queiramos<br />
<br />
Que existam..<br />
<br />
Já revelamos a essência <br />
<br />
Dos nossos corações<br />
<br />
E nos aproximamos <br />
<br />
Da noção de nossa sensualidade.<br />
<br />
Assim, em momentos<br />
<br />
De intimidade e silêncio,<br />
<br />
O seu corpo será o altar<br />
<br />
Em que depositarei minhas oferendas<br />
<br />
<div style="border: currentColor;">
A linguagem verbal</div>
<div style="border: currentColor;">
<br /></div>
<div style="border: currentColor;">
Será substituída pela comunicação</div>
<div style="border: currentColor;">
<br /></div>
Da pele sobre a pele<br />
<div style="border: currentColor;">
<br /></div>
Sem que, contudo, quebremos<br />
<br />
A redoma de vidro que nos envolve.<br />
<div style="border: currentColor;">
<br /></div>
<br />
<br />
<div style="border: currentColor;">
O telefone tocou. A folha de poema foi ao chão. Não era ela.Fiquei com aquele sentimento com o qual, certamente, nenhum réu ousaria contar.</div>
<div style="border: currentColor;">
<br /></div>
<div style="border: currentColor;">
Nem absolvido, nem condenado.</div>
<div style="border: currentColor;">
<br /></div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-84200230516449537582008-10-17T11:15:00.000-07:002012-09-26T08:51:29.443-07:00O QUE ELES TÊM A DIZER<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyA5jYOleChn0NXU4u77GOwjm3gbDsmrgRqFJOpbWsWtlZgvFc7eIFhU1iO4NUh4HtC_6rR-T-vKpi9ivQ5DK5UWSOh28056wYcMB4Ggfnmgv5pmx64IMFJTZCcmPnQUqWpfThxF6Nsp_W/s1600-h/baloes.png"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5258188583882850978" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjyA5jYOleChn0NXU4u77GOwjm3gbDsmrgRqFJOpbWsWtlZgvFc7eIFhU1iO4NUh4HtC_6rR-T-vKpi9ivQ5DK5UWSOh28056wYcMB4Ggfnmgv5pmx64IMFJTZCcmPnQUqWpfThxF6Nsp_W/s200/baloes.png" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
O que tenho a dizer é que ele sempre foi muito respeitador Quando a gente se conheceu , eu trabalhava na farmácia do centro e ele aparecia lá de duas em duas semanas para vender remédio. Eu cuidava da limpeza e do cafezinho dos funcionários e muitas vezes servia para ele também quando estava no escritório com o gerente. Muito educado, falava sempre que estava bom e agradecia.<br />
Nossa primeira conversa mesmo aconteceu quando, na saída dos serviço, caiu uma chuva forte e eu estava esperando passar para ir embora. Ele estava saindo da farmácia e também ficou esperando estiar, para ir até seu carro,que estava do outro lado da praça. Aí, começou uma conversa sobre o tempo, a chuva não parava e ele decidiu pegar o carro assim mesmo.. Eu disse que morava longe, no começo da zona rural, e por isso ia esperarr o tempo firmar; e ele, então, me ofereceu uma carona. Aceitei.<br />
Foi muito respeitoso durante todo o caminho e depois disso, quando aparecia na farmácia, não mudou seu comportamento, me tratando com educação de sempre. Só que a gente passou a trocar mais palavras quando conversava.<br />
Até que em outro dia de chuva, me ofereceu carona e eu disse que não morava mais no lugar de antes. Estava vivendo uns tempos na casa de uma amiga, no centro. Ele não perguntou por que, já ia se despedindo, quando achei que devia dar uma explicação.<br />
Desde minha vinda do nordeste,uns anos atrás, morava com minha irmã mais velha e meu cunhado, na casinha da chácara. Durante este tempo, não tive problemas, mas aí minha irmã morreu. Achei que não ficava bem morar na mesma casa com meu cunhado, mas como não podia mudar, pois meu salário na farmácia não dá para pagar um aluguel, ficou acertado que eu ocuparia o quartinho de tranqueiras dos fundos do quintal.<br />
Depois da morte de minha irmã, meu cunhado ficou esquisito. Deu para beber. A gente, que já não se dava muito, parou de se falar.Era uma situação difícil, mas como não se vivia debaixo do mesmo teto, ia levando. Até que ele cismou de ter alguma coisa comigo. No começo fui desviando, entendendo que aquilo era coisa de bêbedo, até que uma semana atrás ele tentou arrombar a porta do quartinho. Aí eu vi que não dava mais para viver ali e pedi para essa minha amiga do centro me abrigar até encontrar uma solução para minha vida.<br />
Ele ouviu a história, disse que sentia muito , despediu-se e foi embora.Passou quase um mês, apareceu de novo,na hora de minha saída dos serviço, perguntou como estavam as coisas, eu disse que estava preocupada, porque não dava mais para morar de favor. Foi então que ele fez a proposta.<br />
Gostaria de ter um filho comigo. Não imagina como aquilo me assustou. Mas ele falou de um jeito tão natural e era uma pessoa tão respeitosa, que não tive como me zangar. Fiz foi rir. Como é que íamos ter um filho, se nem casados a gente era? Nem namorados? Ele só podia estar brincando.Mas continuou sério e foi direto ao ponto. . Montaria uma casa para mim, eu teria toda assistência durante a gravidez; ele registraria a criança quando nascesse, pagaria pensão, tudo certinho.A coisa mais espantosa da proposta é que eu não precisaria ter compromisso com ele, namoro, essas coisas. O importante era o filho. Eu não precisava responder nada naquela hora. Tinha uns dias para pensar.<br />
Não demorei muito tempo para decidir. Minha vida estava em uma encruzilhada, sem saber para onde ir. Teria uma casa para morar, sustento e um filho de uma pessoa que era gente de bem.E, aqui entre nós, já era mulher madura, cansada de solidão, ele até que era um homem bem apessoado. Para ter um filho tinha que ter intimidade e isso podia levar a um compromisso mais sério, por que não? Eu também não sou de jogar fora.<br />
No encontro seguinte, disse que aceitava.As coisas depois foram muito rápidas. Saí do emprego, ele me alugou uma casa mobiliada, engravidei um mês depois, e a criança já está com quatro anos. Ele registrou o menino, não deixa faltar nada, aparece a cada 15 dias,é apaixonado pelo filho. É verdade que a intimidade que a gente tinha acabou quando fiquei grávida.Não fez nenhuma proposta de compromisso mais sério depois, mas me trata muito bem. Não posso me queixar e o futuro só Deus sabe.</div>
<br />
<div>
</div>
<br />
<div>
<br />
O que tenho a dizer é que ele era um homem bom.Caseiro,trabalhador, religioso. Nunca deixou de prover a casa e jamais senti falta dos carinhos que uma mulher precisa. Conhecemo-nos na igreja que freqüentávamos. Ele parecia ser uma pessoa carente e , quando me contou sua história,foi fácil entender porquê. Ainda bebê, foi abandonado na porta de uma casa e adotado pela mulher que morava ali, uma solteirona, sem nenhum parente . Quando ele tinha 25 anos, ela faleceu , deixando-o sozinho no mundo outra vez. Se não tinha referências do passado, agora estava sem a única referência do presente. Sua família passou a ser o pessoal da igreja, que, desde garoto, freqüentava , levado pela mãe adotiva. Uma história que me enterneceu. Daí para uma aproximação maior não demorou muito.Apaixonamo-nos e tenho certeza de que nosso casamento representou, para ele, muito mais do que a união entre um homem e uma mulher. Significou a conquista de uma nova família. .<br />
Trabalhava como representante de laboratório, vendendo remédios para farmácias, clínicas e hospitais. Além do salário, ganhava comissões por vendas e isso nos permitia um bom padrão de vida. Tínhamos casa própria, carro, móveis novos, aparelho de dvd, microondas, tv de cristal líquido, computador, essas coisas que dão conforto para um lar Passava a maior parte do tempo viajando, mas, aos sábados e domingos, sua presença em casa era sagrada. Por mim e pela igreja, dizia.<br />
Nossa felicidade estes oito anos só não foi completa porque nunca pude ter filhos. Fiz todo tipo de exame, segui mil conselhos, mas nada adiantou. Nossa religião não permite que a gente utilize métodos antinaturais para a concepção, como a inseminação artificial. A idéia de adotar uma criança sempre foi descartada. Eu, porque nunca gostei mesmo nisso; ele, porque não queria ver repetida, em outra criança, sua própria história . Resignamo-nos a ser um casal sem filhos.<br />
Imagine, então, minha decepção e tristeza ao descobrir que ele tinha outra mulher e que, com ela, tivera um filho.Dor maior só quando minha mãe morreu, cinco anos atrás.Soube da traição por uma amiga, que tinha parentes em uma das cidades para onde ele viajava regularmente, a serviço. A mulher era de lá.. Ele a sustentava, e ao filho.<br />
Quando o interroguei sobre o assunto, na esperança de que negasse pelo menos uma parte da história, ele confirmou tudo. Foi como uma punhalada em meu coração. Minha dor transformou-se em raiva porque, apesar da traição comprovada, da evidência de que não me amava, ele disse que não havia me enganado. Que fora fiel, continuava amando-me como antes e continuaria a me querer sempre. Pode haver maior cinismo? Ou loucura? Impossibilitada de crer em uma coisa dessas, pedi que saísse de casa . Agora, só estou esperando encerrar o processo de divórcio para vender tudo e ir embora daqui. Desde que nos separamos, nunca mais o vi, nem falei com ele. Nossos contatos são apenas por meio dos advogados.</div>
<br />
<div>
</div>
<br />
<div>
</div>
<br />
<div>
O que tenho a dizer é que sempre amei minha esposa, sempre amarei, nunca a traí e nunca a trairei. Zelo por meu amor e cumpro a lei de Deus, que não permite o adultério. Um homem não pode entregar-se por prazer a outra mulher que não seja sua esposa, e eu nunca fiz isso porque sempre vivi e viverei de acordo com as leis de Deus.<br />
E para não me desviar do verdadeiro caminho, das verdades bíblicas que me são palavras de ordem, também não poderia descumprir a determinação do Genesis, crescei e multiplicai-vos. Sou o exemplo vivo de que meus pais, a quem não conheci, cumpriram sua parte. Cabe a mim dar continuidade, de modo natural, à geração que prosseguiu com eles , vinda de seus antepassados, desde o Paraíso de Adão e Eva.<br />
Não pode haver obstáculos para o cumprimento das leis de Deus. Se à sua mulher foi negada o dom da fecundação, nada impede que procure em outra o solo fértil para sua semente. Mas, lembrai-vos: o prazer, que é a fonte da traição, não deve se fazer presente, maculando suas intenções e, o que é pior, transgredindo seus princípios e afetos.<br />
Por isso, o que tenho a dizer é que tudo o que fiz foi cumprir lei de Deus sem trair as leis do meu coração.</div>
<br />
<div>
</div>
<br />
<div>
<br />
O que tenho a dizer é que, depois de termos fechado o motel, onde os clientes eram filmados sem saber, durante as relações sexuais, recolhi dezenas de discos com as gravações. Assisti a todas para depois classificá-las como peças do inquérito policial. Em meio a todas aquelas gravações, repetitivas ( sexo, realmente, não é coisa que tenha muitas variações), algumas chamaram-me a atenção. De tal forma que separei-as das demais e levei-as para casa. Não iam fazer falta na montagem do inquérito e era uma coisa, realmente, muito esquisita.<br />
Essas gravações ocorriam a cada 15 dias, às sextas-feiras, à tarde e com o mesmo casal. Foram feitas três gravações, em que a mesma cena se repetia: a mulher, despida só da cintura para baixo, deitava-se na cama, de pernas abertas. O homem arriava as calças até os jelhos, sentava-se à beira da cama, e começava a se masturbar. De repente, deitava sobre a mulher, quase num pulo, penetrava e gozava, saindo imediatamente . A mulher permanecia alguns minutos deitada, enquanto ele se arrumava. Depois, ela ia ao banheiro, retornava já vestida e os dois iam embora.<br />
Uma relação totalmente desprovida de prazer, é o que eu tenho a dizer. </div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-28381417109577936522008-05-30T07:13:00.000-07:002016-10-05T09:46:10.632-07:00PENTE DE MOTEL<br />
<div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Eu a imagino lá, sentada no sofá , de frente para a
porta de entrada do apartamento, fingindo autocontrole. Ao falar, em tais
ocasiões, força uma voz sussurrada, uma coisa de quem está começando a ficar
rouco.Para mim, que a conheço bem , a falsa calma é denunciada por tiques
nervosos que, nela, só nela- é incrível, meu Deus!- é diferente de todo
mundo.Balançar uma das pernas cruzadas? Não. Retorcer as mãos, dedos
entrelaçados? De forma alguma. Nervosa, tentando aparentar calma, ela faz movimentos
no lado esquerdo do rosto. Um repuxar rápido, apertando o olho, leva-a a subir
o canto do lábio , tudo como a querer, pela esquerda, fazer o queixo tocar a
fronte.O estranho movimento é repetido a cada 30 segundos.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"> Conversamos
várias vezes sobre sua descoberta: o
pente de motel no bolso do paletó cinza. “ Love`s”, o nome ridículo impresso em
vermelho sobre o rosa-leite-com groselha. Descobrira-o em uma revista de
rotina. Não era seu hábito revolver-me bolsos, era zelo quando a roupa ia ser
lavada. E lá estava o pente. Pequeno, de plástico mole. Quem o inventou talvez
ache que negros não vão a motéis. Pentear carapinhas com tal objeto retorcendo
–se ao menor puxão? Há 15 dias, o instrumento de minha tortura. Nada a
convenceria quanto à sua origem.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">- Alguém do escritório colocou-o aí de gozação.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A face esquerda repuxando, o olho esmagado por
pálpebras, o queixo querendo subir; o sussurro:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"> -Você
disse que ninguém lhe faz brincadeiras no escritório, pois é considerado o
chefe mais sério.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">O sussurro.Por que ela não gritava como outra
esposa qualquer? Por que não lhe jogara uma das panelas na cabeça, o colocara
porta afora? Não. Nem na descoberta fatídica fizera isso. Surgira na sala com o
objeto na mão. A face esquerda...etc.E o sussurro.Tudo bem. Então, alguém o colocara
lá. Talvez fosse até eu mesmo. Sem querer pegara em algum lugar<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">- Em algum lugar, onde? Pente de motel só se
encontra em motel.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">E no bolso de meu paletó cinza, é claro.Durante
quinze dias, na saída e na chegada, o mantra:<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">- Já tem uma explicação para mim?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Há três dias, decidiu ela mesma terminar a tortura
diária. Disse que, se eu não tivesse uma
história convincente, não precisava voltar para casa após o trabalho. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">E, enquanto eu me retirava, sentou-se no sofá, o pente
entre as mãos. O insuportável sussurro de pré-rouquidão; o intragável repuxar da face paralisada foram
gestos que conheci e aprendi a odiar por duas semanas porque não conseguia explicar a
presença do maldito objeto no bolso de meu paletó.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Mas agora sei. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<br /></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%;">
<span class="apple-converted-space"><span style="font-family: "Times New Roman", serif;">No dia em que me foi dado o prazo fatal, não sabia.
E, ironia, tive que passar a noite em um motel , situado à margem da estrada que
percorro caminho do trabalho. Karinho`s.
Deus meu , por que nomes de motéis têm de ser tão obviamente idiotas?</span></span><span class="apple-converted-space"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;"><o:p></o:p></span></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span class="apple-converted-space">Recordo de minha primeira
pousada ali, a primeira fora de casa desde meu casamento. Deixei a roupa que
usei durante o dia cuidadosamente dobrada sobre a mesinha da saleta de entrada.Teria
de vesti-la de novo no outro dia, no serviço, e não convinha que estivesse
amarfanhada.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span class="apple-converted-space">Reparei nos
utensílios sobre o gabinete da pia:
toucas de plástico,preservativos,miniaturas de
sabonetes, perfumes, escovas , pasta de dente. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span class="apple-converted-space">E pentes.Com o nome do motel gravado. Propaganda? Mas alguém leva
isso para casa? Casados não o fazem,por motivos óbvios; solteiros também
não,porque são de má qualidade, quebradiços,feios.Qual a utilidade da
propaganda no pente,então? Mistérios de motel.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin: 0cm 0cm 0.0001pt;">
<span class="apple-converted-space">Não telefonei para
casa;mas deixarei o celular ligado. Alimentava a esperança de que ela me
ligasse, levada pelo inusitado de minha primeira ausência noturna após tantos
anos casados.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Não ligou. Confirmava,
assim, a intenção de só aceitar contato
comigo se fosse para obter explicações convincentes. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">De manhã, cheguei
no serviço e dirigi-me diretamente para minha sala.O momento delicado
que vivia, somado à roupa repetida, deixava-me inseguro. Queria evitar ao
máximo contatos pessoais. Felizmente,
não havia reunião agendada, nem entre chefias, nem com funcionários.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Perguntei à secretária se
havia ligações para mim Não. Pedi e trouxeram-me, minutos depois, café com
leite e pão com manteiga, torrado na chapa..Nada de inusitado.Muitas outras
vezes fiz igual desjejum no escritório.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Rotina semelhante repetiu-se
por mais três dias.Continuei no motel. Comprei mais algumas peças de roupa, utensílios pessoais. Nenhum contato por parte
dela. Também resisti e não a procurei. Mas sabia ser uma situação insuportável por muito tempo. Até mesmo por razões
práticas, não dava para continuar vivendo em um motel. Sem falar que ninguém,
no serviço e em meu circulo mais próximo de amizades, conhecia meu novo
cotidiano. Procurava portar-me como se nada de anormal estivesse acontecendo. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">E eis que no quarto
dia,acendeu-se a luz. Foi quando aquele chefe de divisão da empresa entrou em
minha sala. O cinza de seu terno atingiu-me como cor fosforecente.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">A lembrança veio
rápida.Na última reunião de chefias, ocorrida há um mês, vestíamos ternos semelhantes.Fazia calor e
todos colocamos os paletós nos encostos das cadeiras. Meu Deus, como não pensei
nisso antes? Ao sairmos da reunião, pegamos os paletós trocados. O pente de
motel estava no bolso do paletó dele, não no meu.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space"> Contei-lhe toda a história, ele a ouviu com expressão entre divertida, curiosa e
preocupada. Sem dúvida, jamais passou por
sua cabeça que eu um dia lhe faria
tais confidências . Nem pela minha. Mas
tratava-se de minha vida e, nesta hora, o executivo fechado, de poucas
brincadeiras, precisa despir-se da sisudez.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Confirmou a possibilidade
de ser mesmo dele o paletó , com o pente
no bols . Estivera dias antes, com a mesma roupa, em um motel, com uma
de suas várias namoradas. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space"> Entretanto, como essa confirmação iria
ajudar-me? Os paletós são muito
parecidos, em cor e tamanho.Argumentou : mesmo que ele fosse , pessoalmente, contar à minha
mulher o ocorrido, levando o paletó
trocado como prova, como convencê-la de que
aquilo não era apenas parte do álibi entre colegas? Que o verdadeiro paletó ,
depositário da prova do crime, era, mesmo, aquele no armário de casa? <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Pedi para examinar o paletó.E uma luz substituiu o cinza do dia. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Estou aqui,diante
dela,que sussura:<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- E então, tem a
resposta?<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Ao perguntar, não me olha. Fita o embrulho que seguro. Ao
invés de responder, peço que me traga o paletó depositado na gaveta do quarto.Ela
atende. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Quando volta, peço que
examine atentamente .Ela o faz. Sempre
em silêncio. Terminado o exame, fita-me novamente, com uma interrogação no
olhar. Como previ, ela não observou o detalhe. Mostro-lhe o embrulho que trago.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Aqui está o terno de um colega que, há 30
dias, participou comigo de uma reunião de trabalho. Como você vê, é idêntico ao
meu. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Estendo o paletó e peço
que o examine.Ela o revira entre as mãos.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- É igual ao seu. O que
quer dizer tudo isso, afinal?<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Esse é o meu paletó. No
dia da reunião, meu colega pegou-o por engano. E,também sem notar, , peguei o
dele, que tinha o pente no bolso.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Olhou-me incrédula e seu
sussurro, agora,tinha algo de raiva.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Acredita que sou idiota? Você pode muito bem
ter comprado um terno igualzinho ao seu
e inventado essa história.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Então,peço que você
pegue a calça do meu terno lá no quarto.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">-Ela o faz. Sua rapidez mostrava que, agora, a curiosidade move-lhe os
gestos.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Solicito de novo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Veja as etiquetas do
paletó e da calça.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Então ela nota. São
diferentes.Seu olhar traza, agora, algo de perplexidade.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Mostro-lhe as etiquetas
da calça e do terno do meu amigo. Desnecessário dizer que também são
diferentes. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Então, não resisto ao
gesto teatral: destroco as peças, juntando cada uma delas a seu par original.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Este é meu terno. Este
é o terno de meu amigo. Este é meu paletó.Este é o de meu colega.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Olha-me desconfiada. Mas
não se dá por vencida. Pensa por alguns segundos, em busca de alguma explicação
mais condizente com suas teses. Não lhe dou tempo para maiores raciocínios.Preciso
terminar logo com aquilo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Você sabe que eu não
tive condições de trocar as peças no tempo em que estive aqui após o encontro
do pente , pois você trancou o terno na gaveta.Você sabe que estas peças que trouxe
agora me foram dadas realmente por meu colega de trabalho.E, para que não paire
nenhuma dúvida, veja isso aqui.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">E entrego-lhe o extrato de cartão de crédito de
meu colega, mostrando que seu terno fora comprado há seis meses, angtes de
todos estes acontecimentos. Ou seja, eu não poderia ter comprado as peças
agora, para criar um álibi. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Não, ela não se atira em
meus braços pedindo-me perdão. Não, ela
não vai para o quarto chorar, arrependida. Não, ela não ri,mesmo nervosamente,
solicitando-me que esqueçamos episódio tão ridículo.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Ela entrega o terno de
meu amigo e pede-me que o devolva . Recolhe minhas peças e as leva para quarto. E depois, não me dirige mais a
palavra.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<br /></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Amanhece. Como sempre,
acordo antes dela, preparo o café, faço o desjejum e e preparo- me para sair,
antes dela levantar-se. Nada diferente de antes, se não a ouvisse chamar do
quarto. <o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Quero me esclareça uma coisa, mas não precisa ser
agora.Não quero atrasá-lo.Pode ser quando você voltar.<o:p></o:p></span></div>
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">Pergunto o quê. Ela sussurra:<o:p></o:p></span></div>
<br />
<div style="line-height: 150%; margin-bottom: .0001pt; margin: 0cm;">
<span class="apple-converted-space">- Onde você esteve e o
que fez nos três dias em que não dormiu
em casa? <o:p></o:p></span></div>
</div>
</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-32491656689970433102008-05-29T05:38:00.000-07:002012-09-26T08:56:47.699-07:00PROVAS DE AMOR<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6BysqMI3otblzcRO6wFrEC6mJWjJqbmCLG_ZT-u9qZY1TBdkyFwKrlkZeeWtTsnoMI9YacG6PIzMfwKmArJhz5rTw3qgAMnurPcM0ImfpyRz5k2i3yzaei8pluebrwM4ZQu0C_39miZhF/s1600-h/Linda.jpg"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5205779700378729794" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi6BysqMI3otblzcRO6wFrEC6mJWjJqbmCLG_ZT-u9qZY1TBdkyFwKrlkZeeWtTsnoMI9YacG6PIzMfwKmArJhz5rTw3qgAMnurPcM0ImfpyRz5k2i3yzaei8pluebrwM4ZQu0C_39miZhF/s200/Linda.jpg" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
- Vim o mais rápido que pude. Você parecia tão desesperada ao telefone!<br />
- Ele me deixou.Ele não me ama!<br />
- Não acredito<br />
- É isso mesmo que estou falando. Ele me deixou. Ligou de São Paulo, logo<br />
depois do programa de TV, e disse que não vem mais para casa. Eu sabia . Ele não me ama. Nunca me amou. Sequer pensou em me amar!<br />
- Incrível!<br />
- Exatamente. Vivi estes três anos desiludida com suas demonstrações<br />
de amor. Estava sendo enganada o tempo todo.<br />
- Mas, meu Deus, ele sempre foi fiel, sempre esteve ao seu lado e vivia<br />
manifestando, publicamente, o que sentia por você. Como é que, de repente, toma essa decisão?<br />
- Outra mulher. Só pode ser outra mulher. O que poderia ser?<br />
- Melhor você se acalmar. Toma este copo de água, respira fundo. Nestas<br />
horas é preciso ter calma. Alguma explicação tem de haver.<br />
- Você sabe que eu sempre tive insegurança sobre o que ele sentia por mim.<br />
Afinal, demorou muito para largar a primeira mulher e vir morar comigo. Mas , de uma certa forma, tomava atitudes que me tranqüilizavam nos momentos de insegurança.<br />
- Isso é verdade. Como naquela vez em que vocês passaram em frente do banco<br />
onde a ex-mulher dele trabalhava e você pediu para entrar.<br />
- Queria que ele me apresentasse à ex-mulher e dissesse a ela que me<br />
amava. Ele fez isso. A mulher ficou com cara de boba. Só disse “ Ahnn”. E saímos logo a seguir, antes que ela falasse qualquer coisa.<br />
- E você ficou mais tranqüila quanto aos sentimentos dele pela ex-mulher,<br />
não é mesmo?<br />
-Ainda ficou um senãozinho: fui eu que pedi. Seria melhor se tivesse agido<br />
espontaneamente. De qualquer forma, foi uma prova de amor.<br />
- É verdade<br />
-Não esqueço, também, do caso com a família dele.<br />
-Desse eu não sabia.<br />
-Tive uma vez uma briga com a mãe e os irmãos dele. Ele parou de falar com a família. Um dia, cruzamos com a velha na feira e ele nem olhou para ela.<br />
- Realmente, ficou do seu lado.<br />
- Eu tinha falado, depois da briga, que se ele me amasse, jamais falaria<br />
com a mãe e os irmãos novamente. Afinal, a sua família, agora, era eu, não é mesmo? Ele entendeu e rompeu relações.<br />
- Outra forte prova de apreço por você.<br />
- Mas agora vejo que tudo era uma ilusão.Do jeito que ele falou , ao telefone,<br />
gaguejando, voz trêmula, nem parecia o homem que pouco tempo atrás chamou aquele meu antigo chefe de serviço para a briga.<br />
- É mesmo?<br />
- O cara gritou comigo por causa de um problema no trabalho. Me senti muito humilhada e fui para casa mais cedo. Quando ele chegou , expliquei o que tinha acontecido. Disse para eu pedir demissão, afinal a gente nem precisava daquele salário.<br />
- E você pediu?<br />
-Sim, mas não consegui esquecer a humilhação. Um dia, no shopping,<br />
quando cruzamos por acaso com o ex-chefe, não aguentei: pedi para ele tomar satisfações. Você sabe, assim o cara saberia que eu tinha quem me defendesse; não era uma desprotegida da vida.<br />
- Mas ele nunca foi de briga!<br />
- Os dois quase saíram no tapa.Se não fosse a segurança..<br />
- Não consigo imaginá-lo , pacato e tímido do jeito que é, fazendo uma coisa<br />
dessas.<br />
-Acho que, quando um homem ama sua mulher, deve ser o defensor dela. Foi outra demonstração de amor que pedi e ele deu.Lembrando essas coisas, aumenta minha revolta agora<br />
- Também estou surpresa. Lembro que conheci vocês dois quando compraram de mim aquele apartamento na praia. Recebi uma bela comissão.<br />
- Pois é. No começo , dizia que o apartamento era muito caro e lembrei que, se vendêssemos o que a gente morava e aquela ocupado pela tia dele, dava para conseguir uma boa entrada e o financiamento sairia mais barato.Respondeu que não podia fazer isso porque tinha compromisso de deixar a velha morando lá depois que ficou viúva.<br />
- E como isso ficou resolvido?<br />
-Do jeito que deveria ser resolvido, né?A tia foi viver com a mãe dele, que é irmã dela. Afinal, morava no apartamento há muito tempo, desde que ele era solteiro, quando o comprou. Antes, nunca precisamos do imóvel, mas, agora, surgia uma necessidade. Foi isso que expliquei quando ficou indeciso. Acharia muito estranho se ele deixasse de pensar em nós nessa circunstância. Seria uma prova de desamor<br />
- Parece que, mais uma vez, deixou claro que você estava acima de tudo.<br />
-Me senti segura.<br />
-E agora tem essa história do programa de TV. Todo mundo comentou. Que coisa incrível!<br />
- Pois é.Tudo começou naquele dia, no aniversário, quando o pessoal falava<br />
sobre televisão.<br />
-Lembro..Criticávamos os programas de calouros e as situações ridículas em que as pessoas sem talento ficavam.<br />
-Então. Aí, voltávamos para casa, e, não sei por que, tocamos no assunto. Perguntei se ele seria capaz de ir a um programa de calouros.<br />
-Claro que respondeu não! Não sabe cantar e, mesmo que soubesse, tímido<br />
do jeito que é, nem chegaria na porta da emissora para se inscrever.<br />
-Isso mesmo. Mas, desafiei: seria capaz de se apresentar no programa só para demonstrar amor por mim?<br />
-Pediu isso?<br />
-Veja bem. Não pedi para ir lá cantar, pois sei que ele não sabe. Seria só um pretexto para, diante das câmeras, em rede nacional, dizer que me amava. Uma coisa legal, né?Argumentei que seria o momento mais feliz da minha vida. Ele foi e fez. Queria muito ver a cara da ex-mulher dele naquela hora.<br />
- Até o apresentador ficou surpreso. Depois que ele desafinou e foi gongado, correu para diante da câmera, gritou teu nome bem alto e completou: te amo!<br />
- Pois é. E, meia hora depois, telefonou dizendo que não vinha mais para casa. Dá para entender um absurdo desses? Só pode ter outra mulher na história. Ele não me ama, nunca me amou.<br />
-Calma. Não adianta se descontrolar. Mas foi só isso que ele falou,mesmo?<br />
-Bem, na verdade, não disse que não ficaria mais comigo. Disse que não<br />
voltaria para cá. Iria permanecer uns dias na casa de um amigo, na capital, enquanto providenciava nossa mudança. Alugaria um escritório e um apartamento lá e, em pouco tempo, a gente mudava de uma vez. Ja viu coisa mais ridícula?Por que ele não pode mais voltar?<br />
- Você sabe, ele sempre foi muito acanhado e, fazer o que fez, na TV, deve ter sido difícil. Deve ter pensado o quanto seria constrangedor voltar a conviver , agora, com os amigos, conhecidos e, principalmente, no fórum, com os colegas advogados, juízes, promotores, funcionários, clientes...<br />
- Quer dizer que ele está com vergonha de ter declarado por mim mim?<br />
-Não é bem assim...<br />
-Além disso, como pode querer que eu mude para São Paulo? Não gosto de lá, vivi sempre aqui na Baixada. Minha família , meus amigos, minhas recordações de infância, os locais onde faço compras, meu cabeleireiro, estão todos aqui. Como pede que eu mude minha vida de uma hora para outra ?<br />
- Sim, mas...<br />
- Ele não me ama. É só isso, e nada mais.</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-40251830537464440902008-05-28T05:37:00.001-07:002012-09-26T08:59:08.045-07:00O FILHO<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjUK7Jq6Mkmx9vCxqTsB3g5HfE_eTVQEhG0niYNg4F7JXXtZDj6CjgsCKEQjr7aPbSLPiup-DWdV7hHVFRLfw9vIevAk1RW_Itki2oRumZll_8NROBfm6Kwb28Zv9DVNASRKtzGArBqtUb7/s1600-h/331reg_idosos.jpg"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5205410011068726578" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjUK7Jq6Mkmx9vCxqTsB3g5HfE_eTVQEhG0niYNg4F7JXXtZDj6CjgsCKEQjr7aPbSLPiup-DWdV7hHVFRLfw9vIevAk1RW_Itki2oRumZll_8NROBfm6Kwb28Zv9DVNASRKtzGArBqtUb7/s200/331reg_idosos.jpg" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
- Sou seu filho!<br />
De aparência mais velha do que a idade , o homem que falara não parecia acumular os anos que sugeriam a calvície , a boca desprovida dos dentes frontais superiores e os sulcos rugosos de testa e pálpebras. Mãos de dorsos venosos, dedos finos e longos, unhas enegrecidas de tabaco : marcas mais de sofrimento,pobreza ou desleixo do que do passar do tempo<br />
- Sou seu filho.<br />
- Não entendi!, retrucou.<br />
- Exatamente isso: sou seu filho, você é meu pai e esse é o assunto sobre o qual estou tentando lhe falar há duas semanas , mas você nunca me atende.<br />
“E não deveria tê-lo feito nunca. Esse cara é maluco”, pensou, enquanto examinava melhor o outro, sentado à sua frente, no escritório.A roupa era coerente com a degradação física: paletó e calças amarfanhados, a camisa com uma lembrança amarelada de brancura, sapatos foscos, sem meias. Se estivesse de chapéu e gravata, estes seriam amarfanhados também, impossível imaginar o contrário.<br />
- Sou seu filho.<br />
Sentido faria se dissesse “ sou seu pai”, igualmente um absurdo, já que ele completara 65 anos. É claro que a aparência indicava bem menos que isso. Ginástica, massagens, alimentação balanceada, austeridade de hábitos, exames médicos preventivos,cirurgias plásticas e uma década de redução da carga de trabalho explicavam tudo.Sem falar que nunca se casara, o que, sem dúvida, lhe agregara mais uns toques de juventude.<br />
E conhecera o pai, com quem tivera uma convivência de pelo menos meio século até a morte dele, sem nenhuma dúvida quanto à filiação. Se o sujeito dissesse “ sou seu irmão” teria muito mais lógica, sabe-se lá os roteiros da história do velho . Mas, “seu filho”?<br />
Precisava livrar-se do maluco o mais rápido possível.<br />
A estratégia inicial seria não contrariá-lo. Não se contrariam doidos.Pediu licença, com um gesto que lhe pareceu de cumplicidade e foi até a antesala, onde a secretaria, ar preocupado e ansioso, o atendeu.<br />
-Como é que você deixa um sujeito desses entrar aqui para falar comigo?<br />
- Mas eu não sabia que ele era assim.<br />
- Você não falou com ele antes?<br />
- Não. Falei com o advogado dele, com quem marquei a audiência.<br />
- Advogado dele?<br />
- É. Confirmei os dados . Por isso é que demorou quase um mês para acertar o dia e horário Só não sabia que era esse o cliente e que ele vinha sozinho, com um cartão do doutor.<br />
- Mas você não perguntou qual era o assunto?<br />
- O advogado disse que era sigiloso. Só anotei os nomes. Ademais,quando aprovou a agenda , o senhor não fez nenhuma pergunta e eu achei que já sabia do caso.<br />
- Não lembro direito nem o que comi ontem. Ando preocupado demais com a pré-produção daquela maldita novela. Precisamos nos livrar do cara. O truque de sempre.<br />
Há milhões de truques na vida em sociedade.O da secretária, para livrarem-no dos indesejáveis, era simples: avisava-o de que estava atrasado para “aquela reunião importante”.<br />
Voltou à sala.O velho o esperava, na mesma posição de antes, sentado na ponta da cadeira; corpo curvado .<br />
- Quer dizer, então, que é meu filho? Quantos anos o senhor tem?<br />
- Cinquenta e três.<br />
“ Aparenta 70” pensou, atenção atraída agora para entrada da secretária<br />
- O sr. já está atrasado para aquela reunião.<br />
- Ah, sim, a reunião! Muito importante. O senhor me desculpa. A gente pode conversar outro dia. Marca a data com a dona Selma. Precisamos esclarecer alguns pontos. Afinal, o senhor há de convir que, para ser seu pai, precisaria ter transado com sua mãe quando eu tinha 12 anos.<br />
Sem esperar resposta, seguiu o ritual do truque: levantar-se rápido, vestir o paletó, dar a mão para o visitante, deslocar-se a passos largos para a sala de reuniões, enquanto a secretária , eficiente, já se adiantava e conduzia o velho à de recepção.<br />
Rapidez insuficiente para impedir o homem de falar e ele ouvir:<br />
- Mas foi isso mesmo o que aconteceu!<br />
- O quê?<br />
- Você tinha 12 anos quando transou com minha mãe.</div>
<div>
<br />
<em>Prezado sr. Objetiva esta desculpar-me pelo episódio de ontem, do qual foi protagonista meu cliente. Escrevo do hospital, onde internei-me às pressas por causa de uma crise de rins. Avisei o cliente de que não poderia ir à reunião que marcara no escritório de V.Sa. , expliquei os motivos e fiquei de informá-lo sobre uma nova data. Não poderia imaginar que ele iria sozinho naquele mesmo dia.<br />
Semanas atrás, ele apareceu em meu escritório dizendo-se filho não reconhecido de um famoso produtor e diretor de tv, teatro, cinema e queria provar isso na Justiça. De início, fiquei cético: não era a primeira vez que alguém se dizia filho de uma celebridade. À primeira vista , tudo soava muito frágil , a começar pelo fato do filho parecer mais velho que o suposto pai.<br />
Porém, veja: moça de 18 anos, empregada doméstica, seduz o garoto da casa,de 12 anos, engravida e é expulsa pelo patrão. Havia algo de crível na história, por isso peguei o caso. Mais esclarecimentos darei pessoalmente na audiência do Fórum. Atenciosamente, Dr. B. </em></div>
<br />
<div>
<em><br />
</em></div>
Processo findo,paternidade confirmada, a hora, enfim, da conversa entre pai e filho .Fez questão de que ocorresse na casa do filho, onde satisfaria de vez todas as curiosidades. <br />
Primeira surpresa: não era um casebre em favela, como supunha. Apartamento modesto, em bairro regular. Segunda surpresa: morava sozinho . Terceira :estante cheia de livros na sala.<br />
- Agora, o que o senhor quer de mim?<br />
- Nada.<br />
A resposta foi a maior das surpresas.<br />
- Como assim,nada?<br />
- Só isso: nada. Já tenho tudo de que preciso: casa própria, aposentadoria, nada de filhos criados ou por criar, nem netos. Minha única parente viva era minha mãe. E você, é claro.<br />
- Sua mãe morreu?<br />
- Há 10 anos, no nordeste. Eu não a via há 20, desde que vim para o Rio de Janeiro trabalhar.Durante os anos em que vivi com ela, a única coisa que soube sobre você é que tinha me abandonado quando ela estava grávida. Jamais me revelou sua identidade.<br />
- E como o senhor soube da história toda?<br />
- Por uma amiga dela,a quem fez confidências uma semana antes de morrer. Anos depois,essa amiga soube onde eu morava e mandou-me uma carta, contando tudo. Antes desta revelação, passei a vida inteira remoendo mágoas do pai que me abandonara.<br />
- Meu Deus, eu era um garoto ! Nunca me falaram da gravidez da empregada. Aliás, nunca soube por que ela foi despedida de casa. E, mesmo que soubesse de tudo, como é que, com 12 anos, poderia assumir a paternidade? Esta história com sua mãe só perdura em minha memória, meio século depois, por tratar-se de minha primeira experiência sexual, coisa que homem algum esquece. Mas nunca tive a menor idéia das consequências dela.<br />
- Como vê, vivemos, os dois, por meio século, sem ter idéia de nada.<br />
- Responda-me: por que teve tanto trabalho para me localizar e iniciar este processo?<br />
- Primeiro, queria desculpar-me pelos anos em que o amaldiçoei. Depois, porque acho que todo pai e filho têm de saber da existência um do outro. Fui privilegiado porque não apenas sabia que tenho um pai, como cheguei a identificá-lo. Mas você nunca imaginou que tinha este filho. E, com certeza, jamais acreditaria se alguém o dissesse . O processo na Justiça era , então, a única maneira de fazê-lo acreditar.<br />
- Qual é sua profissão? O que o senhor faz ou fez ?<br />
- Sou jornalista aposentado por invalidez. Muito cigarro, muita cerveja, muito uísque,muito sexo, pouco sono, pouco exercício, muito desleixo e eis-me aqui, velho, enfizemático, com uma expectativa de vida menor do que você, que me gerou. <br />
<div>
<br />
Antes de entrar no carro, deu uma última olhada no prédio, talvez esperando ver o filho à janela do apartamento. Não estava. Missão cumprida, devia o velho estar pensando, no sofá da sala, cigarro na mão.<br />
Nada mais, material ou espiritual, dava consistência àquela relação, à exceção das folhas registradas em cartório.A maneira como tudo terminara provocava-lhe mais alívio do que constrangimento. O que parecia, de início, muito importante, agora não era mais.<br />
Partida acionada, deu-se conta de que, o tempo todo, desde o primeiro dia no escritório, chamara o filho de senhor e o filho o chamara de você. Mas isso também não tinha importância. Precisava, agora, era de uma boa massagem.</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-16601117352680293352008-05-27T06:50:00.000-07:002016-05-31T10:16:53.210-07:00NA UTI DA ALA 2<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFRz3in6j5y7aGuvQuTB_6e6owXzpfbl3ejNabtBClazoecBmDXKH2RwvzGRyKJlQnks7__ZrX4vO0rhycbrXtjUBNiW_25H7doZjG7xECcjs7FqCHvsFTxYexU-MMDTbPPoTriKir2oan/s1600-h/Uti.jpg"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5205055100741188882" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFRz3in6j5y7aGuvQuTB_6e6owXzpfbl3ejNabtBClazoecBmDXKH2RwvzGRyKJlQnks7__ZrX4vO0rhycbrXtjUBNiW_25H7doZjG7xECcjs7FqCHvsFTxYexU-MMDTbPPoTriKir2oan/s200/Uti.jpg" style="cursor: hand; float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
As enfermeiras não sabem mais o que fazer com o paciente da UTI da Ala 2, que está dando muito trabalho, arriscando a própria vida. Não pára de se mexer e demonstra irritação. Sabem que o doente não pode falar, por causa do tubo de respiração que lhe penetra a traquéia, mas ouve-as e, por isso, dizem-lhe para ficar calmo , em seu próprio benefício, mas ele faz gestos nervosos , querendo retirar os aparelhos. Ninguém sabe quem é. Fora encontrado inconsciente, caído em uma calçada, sem nenhum documento consigo.<br />
O doente da UTI da Ala 2 não se conforma por estar ali, paralisado, sem poder falar com ninguém. Saiu do estado de inconsciência, ouve as enfermeiras comentarem o que lhe ocorrera. Tenta falar, mas não consegue. Pode mexer um pouco o braço direito e procura, com sofridos movimentos, chamar a atenção das duas mulheres. Elas pedem que se acalme, dizem-lhe para não se movimentar muito e, com palavras cuidadosas, tentam explicar-lhe o que ocorrera, informando-o sobre seu estado clínico. Mas ele não quer receber explicações, quer explicar-se. Em vão.<br />
O médico alerta as enfermeiras de que a ansiedade e a tensão são prejudiciais para a recuperação do doente da UTI da Ala 2 e que, por isso, caso se mostre muito agitado, devem sedá-lo. Isso já havia sido feito uma vez e as enfermeiras estão preocupadas ante a possibilidade de terem de fazê-lo de novo. Repetem os conselhos para que o doente se acalme, evitando, assim, a medicação. Mas o paciente parece cada vez mais nervoso e sua irritação aumenta quando olha para o relógio da parede em frente.<br />
O doente da UTI da Ala 2 quer que compreendam que às oito horas da noite aproximam-se. Se não conseguirem identificá-lo, não poderão avisar à sua mulher, que o está esperando naquele horário. Como manter-se, portanto, calmo, se é impossíve desviar os olhos do maldito relógio na parede em frente, cujos ponteiros movimentam-se mais ameçadores do que o pêndulo do conto de Poe?<br />
As enfermeiras da UTI da Ala 2 já se preparam para aplicar a segunda dose de sedativo no paciente, que não pára de se mexer, arriscando-se a soltar todos os conectores que lhe monitoram o organismo. E intuindo o que está prestes a acontecer novamente, ele intensifica os parcos movimentos que lhe permitem a fraqueza: levantar o braço, o joelho e os músculos da face, todos do lado direito do corpo.<br />
O que o doente da UTI da Ala 2 pretende é alertar que já são sete horas da noite e, sendo sedado de novo, poderá não acordar antes das oito. E não conseguirá comunicar-lhes, a tempo, que precisam avisar à sua mulher de que não chegará no horário previsto. Só quer uma chance para revelar um número de telefone. O doente da UTI da Ala 2 desespera-se porque não consegue comunicar o desejo de se comunicar.<br />
Minutos após ter-se ausentado, uma das enfermeiras da UTI da Ala 2 retorna, confabula com a companheira e aplicam-lhe apenas meia dose de sedativo, conforme a nova determinação do médico. A idéia é conter os movimentos bruscos e, ao mesmo tempo, mantê-lo consciente, eliminando os riscos de agravamento do quadro.<br />
Meio sedado, o paciente da UTI da Ala 2 sente-se lasso, de raciocínio lento e a ansiedade é substituída por melancolia quando olha o relógio da parede em frente. Parece flutuar e o esforço , agora, não é para se comunicar com as enfermeiras e, sim, recapitular fatos recentes da vida. Não lembra como tudo começou, mas a verdade é que seu relacionamento com Mara anda complicado. Os 12 anos de casamento, com todas as suas idiossincrasias , estão desaguando nos últimos 12 meses , recheando-os de desconfortos psicológicos. Transpuseram montanhas antes e, agora, não superamn formigueiros. Entre eles, os horários. Irritava-a profundamente que ele não cumprisse horários, magoava-o que ela se irritasse. Talvez, inconscientemente, para compensar todas as concessões anteriores ( não fumar, não beber, não falar alto, não palitar os dentes, não visitar os amigos, não andar depressa , não assistir ao futebol na TV, não discutir política, não...) é que ele não conseguia cumprir o quesito “ chegar- na- hora- certa- do almoço- e- do- jantar”, o que a levava à beira da histeria. E, há um mês, antes que tudo desmoronasse, firmaram um acordo: não precisava vir almoçar em casa, mas, à noite, tinha de chegar às oito horas. Em caso de atraso, avisar antes. Se fosse chegar atrasado e não avisasse, não precisava chegar mais.<br />
As enfermeiras não sabem e talvez nunca saibam por que é que o paciente da UTI da Ala 2 está dando tanto trabalho, arriscando a própria vida. </div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-19925884020993743522008-05-26T05:51:00.000-07:002016-11-29T04:38:38.921-08:00JUNTOS, JUNTINHOS<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjj3rpxKuHMY0MFkLMoM6T4EHJHju1-kusEHZWRHKaJJCISKZZmhyJGqjL38BDqNhN8UJn8x39ezp_PKG4lvMkvTYWoozMozPB4O3TwWJCId57ujPqAjO4zbNuGy3JxzSzaBqFFkM3Zbsig/s1600-h/amarrados+por+um+fio[1].JPG"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5204669305303825666" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEjj3rpxKuHMY0MFkLMoM6T4EHJHju1-kusEHZWRHKaJJCISKZZmhyJGqjL38BDqNhN8UJn8x39ezp_PKG4lvMkvTYWoozMozPB4O3TwWJCId57ujPqAjO4zbNuGy3JxzSzaBqFFkM3Zbsig/s200/amarrados+por+um+fio%5B1%5D.JPG" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
- Oi, Télia,tudo bem?<br />
- Oi, tudo bem? O que você trouxe hoje?<br />
- Discos<br />
- Verdade? De quem?<br />
- Ora, nem precisa perguntar? Dos Beatles.<br />
- Boa escolha<br />
- São os que mais gosto<br />
- Pode ir lá.<br />
Ele já conhecia o caminho.Cruzou a pequena sala de TV, dirigiu-se ao escritório nos fundos de um corredor. Antes de fechar a porta, ouviu a pergunta gritada da cozinha:<br />
- E a Rejane, onde foi hoje?<br />
Respondeu, também gritando, ao mesmo tempo em que, com gestos rápidos e nervosos, retirava os discos das capas.<br />
- Ao fisioterapeuta. Ficará lá pelo menos por duas horas.<br />
- Um bom tempo.<br />
Fechou a porta do escritório. Escolheu um disco, colocou-o no aparelho com a mão direita, enquanto que, com a esquerda, acionava os botões. Os mecanismos mal se movimentavam e ele, de olhos fechados, já estava recostado no pequeno sofá, ao lado da escrivaninha. Do jeito que sempre quis. Sonhando. Era Paul McCartney. O contrabaixo em suas mãos, o mais obediente dos servos.Cantava docemente o sonho das meninas. Queriam beijá-lo, mordê-lo, amá-lo, mas ele, indiferente, acariciava apenas as cordas do instrumento.O toque de sua boca era reservado somente ao microfone. Longe, nos agudos, perto nas emissões dos graves. A alma passeando leve, flutuante.<br />
- Ei!<br />
O som, a princípio, confundindo-se com a música.Depois, bem próximo e identificável.Télia chamava. Um salto e estava perto da porta, que abriu imediatamente.<br />
- Pensei que você tivesse dormido.<br />
- Acho que cochilei um pouco.<br />
- Está na hora.<br />
- É mesmo. Já arrumo tudo. Vai dar tempo.<br />
Um dia não daria. Porque ele, com certeza, talvez não quisesse. Ou porque não o controlasse.Mas um dia, com certeza, ganharia, sem esforço, o seu instante de solidão.Não precisaria aguardar conveniências: a hora do fisioterapeuta, a ida ao supermercado; o horário do cabeleireiro.<br />
Télia, abençoada Télia! O que seria dele sem a sua irmã? Sem aquele escritório e aquela compreensão? Télia conhecia sua história. Acompanhara seus primeiros tempos de namoro com Rejane. Não fora madrinha de casamento porque a noiva já tinha sua preferência: uma prima.<br />
Conhecera Rejane na escola. Ele, professor de português/inglês, recém-chegado. Ela, professora de geografia. Empatia rápida, namoro quase imediato, o casamento inevitável.E a constatação: Rejane não o deixava só. Considerava dádiva o fato de trabalharem na mesma escola. “ Sempre juntinhos, sempre juntinhos”, repetia , e o abraçava , cabeça levemente recostada em seu ombro., o que o enternecia e deixava vaidoso. Aquela necessidade de Rejane de tê-lo sempre por perto, à vista, palpável reforçava-lhe a auto-estima.<br />
Iam juntos à escola. Quando coincidiam os intervalos de suas aulas, ela o procurava na sala dos professores. Tomavam cafezinho juntos.Se ela saísse antes, o esperava. O contrário.<br />
Certo dia, comentara o fato com Télia, não escondendo certo orgulho.Ela não se mostrara tão animada.<br />
- Sei não. Você não está se violentando?<br />
Ela sabia do que falava. Conhecia, desde os tempos de solteiro, suas necessidades de solidão, seu hábito de trancar-se no quarto por horas, para ouvir música, principalmente dos Beatles. Acostumara-se a vê-lo silencioso, desde adolescente , mergulhado em leituras, isolado do mundo. Mas ele não deu crédito à observação da irmã. Como estaria se violentando se a mulher que amava necessitava da presença dele como do ar que respirava?<br />
O primeiro ano de casamento passou sem que nem mesmo alguns aparentes excessos ( assim os achava Télia) constituíssem problemas. Rejane não gostava que se fechasse a porta do banheiro. Para quê, afinal, fazer isso no lar de um casal? Trancar-se no quarto para ouvir discos, ler, não é, antes de mais nada, uma atitude egoísta?Não teria Rejane razão ao constatar que longos períodos de leitura os afastavam um do outro? Sair sozinho com amigos, por que, se tinha, agora, uma esposa com quem sair? Ficar só, por quê? Casara-se para ficar só?</div>
<br />
<div>
<br />
<br />
Até que um dia inventou-se o compact-disc. Até que um dia lançou-se uma coleção de todas as músicas dos Beatles em compact-disc. Até que um dia sobrou-lhe dinheiro para comprar um aparelho de reprodução de compact-disc.E, de quebra, toda a coleção dos reis do ié-ié-ié, que iria ouvir sem os chiados de suas já vetustas bolachas de vinil. John, Paul, George e Ringo, na plenitude da pureza de som. Compact-disc.<br />
A primeira audição seria um momento sagrado. A reclusão se fazia necessária. Fechou-se no quarto, ajeitou a parafernália.<br />
Télia tinha razão. Se não se violentara antes, violentou-se naquele dia.Rejane quase quebrara a porta. Acusou-o de estar esfriando o relacionamento, de egoísmo. Não suportando a ira, levantara a possibilidade de que estivesse interessado por outra mulher.Sim. Sem dúvida trancara-se no quarto para ficar pensando nela. Quem sabe, até se masturbando.<br />
A muito custo conteve a explosão.Desligou o aparelho de som,guardou os discos. Carinhos, abraços, beijos. A mulher acalmou-se. Fez-lhe prometer que jamais faria aquilo. Não mais faria o quê? Ouvir música sozinho no quarto? Este crime conjugal imperdoável? Resignou-se, fez a promessa. Seu casamento era mais importante.</div>
<br />
<div>
<br />
<br />
A partir de então, Rejane tornara-se mais aderente. E o gosto amargo da primeira concessão não o abandonaria jamais. Trabalho juntos, passeios juntos, cafezinhos juntos, lanches juntos, ver TV, juntos, visitas a parentes, juntos; juntos, juntos, juntos.<br />
Os momentos ocasionais de separação eram frutos de conveniências dela: fisioterapia, cabeleireiro, compras, coisas para as quais Rejane, curiosamente, dispensava sua presença.<br />
- Então, te espero na casa da Télia.<br />
Ela concordava. Era na casa da Télia que ele ficava sozinho. Paradoxal que precisasse de outra pessoa para ter solidão. Refugiava-se com os discos e livros, controlando o tempo.A mulher, ao voltar, deveria encontrá-lo com Télia, na varanda, na cozinha, na sala de estar... Não prometera isolar-se jamais? Não interpor aos dois uma barreira de silêncio? Télia era o elo de ligação confiável, uma espécie de controladora de tensão enquanto um dos pólos da bateria estivesse temporariamente desativado.<br />
Até quando? </div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-17445765130163251892008-05-21T07:15:00.000-07:002013-08-05T05:45:52.025-07:00LAURA, DA PADARIA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgf78qdLCucZHueT8k0unGVnfRBxG9SHbqPxr7_oSwcCfBsJbcBiLAHyB0JVn4J8dwcpjCilFkZBCuFKYrx8k-KfB2ywWCGu5xBcS05H1dg1WC4Cv471eIC9GDHZ3MVfGWXS-m3X48H0XE5/s1600-h/46371_materia.jpg"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5202835046154785010" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgf78qdLCucZHueT8k0unGVnfRBxG9SHbqPxr7_oSwcCfBsJbcBiLAHyB0JVn4J8dwcpjCilFkZBCuFKYrx8k-KfB2ywWCGu5xBcS05H1dg1WC4Cv471eIC9GDHZ3MVfGWXS-m3X48H0XE5/s200/46371_materia.jpg" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
- Que é isso?<br />
- Fica quieto. Este revolver não é de brinquedo. Portanto,não tente dar uma de besta. Vamos sair da portaria e subir ao apartamento. Sua mulher está comigo, mas veio de livre e espontânea vontade. Permita que me apresente: sou o irmão da Laura, da padaria.</div>
<br />
<div>
<br />
***<br />
- Queria pedir desculpas pelo que aconteceu aquele dia.<br />
- Que é isso!<br />
- Foi muito chato.<br />
- Se soubesse que seu patrão ouviria, não teria reclamado do sanduíche.<br />
- Ele é muito ignorante. O senhor nem estava brigando.Só dizendo que tinha pedido sanduíche de queijo.<br />
- Eu ia comer o de presunto do mesmo jeito.Também gosto.<br />
- É, mas o português foi logo me mandando ir pra dentro. Fiquei até com vergonha.<br />
- Mas agora está tudo bem, né?<br />
- Está. Agradeço o senhor por ter falado para ele que o caso não tinha importância.<br />
- Tudo bem.<br />
- Meu nome é Laura.<br />
- Prazer.</div>
<br />
<div>
<br />
***<br />
-Você pensou que nunca ia ser descoberto, não é mesmo? Que ia continuar levando sua vidinha sem nenhum problema.Acontece que resolvi levantar tudo. Falei com as meninas da padaria; com o zelador do prédio. Não foi difícil descobrir quem era sua mulher, entrar em contato com ela, contar tudo e trazê-la aqui, para confirmar na sua frente.Aliás, vocês aqui do prédio precisam dar uma dura no zelador.Ele fala demais, principalmente depois de umas duas cervejas. A coisa ficou mais fácil ainda porque sou investigador de polícia e interrogar é comigo mesmo.<br />
<br />
***<br />
- Moro em Praia Grande, com meu irmão e minha cunhada. Ele é investigador de polícia e vive dizendo que é perigoso trabalhar aqui em Santos porque chego tarde em casa. Mas foi o único emprego que arranjei e eu já não agüentava mais viver de favor na casa deles.Agora tenho dinheiro para minhas coisas e ainda dou uma ajuda preles dois. Gosto das meninas da padaria, dos padeiros. A única pessoa chata é o português. O senhor acha que estou falando muito? O senhor é meio calado, as meninas dizem que sou a única que consegue conversar com o senhor, mas só eu falo.<br />
- Não é bem assim, eu também falo.<br />
- Mas não diz muita coisa. Chega de manhã, toma café; passa de noite, faz o lanche e vai embora. Não é que nem os outros fregueses, que conversam, dizem piadas pra gente, aparecem com os amigos.<br />
- É o meu jeito<br />
- O senhor é casado?<br />
- Sou.<br />
- Mas nunca vi o senhor com sua esposa.<br />
-Não moro com ela.<br />
-Como assim?<br />
-A gente vive em casas separadas: ela lá na Ponta da Praia e eu aqui, no José Menino.<br />
-Nossa! E isso dá certo?<br />
-Ainda não sei direito.</div>
<br />
<div>
<br />
***<br />
- Sua mulher me disse que vocês fizeram um trato de viverem em casas separadas para salvar o casamento. Só que ela não esperava que você fosse tão sem-vergonha, não é mesmo?Quando se sentiu livre,a primeira coisa que fez foi arranjar um caso.E justamente minha irmã, uma menina ainda. Não tem vergonha, não?Um homem de 50 anos tendo caso com uma menina de 18?Já contei tudo para sua mulher e sugeri que viéssemos até aqui para a confirmação. Como você vê, ela concordou.<br />
- Para que essa violência, este revolver? Adelaide, por que você não fala nada?<br />
- Ela não tem que falar. E, como Laura nunca me disse nada sobre seus namorados, investiguei bem e tenho as evidências. Sei até que você e ela passaram uma noite juntos, neste apartamento. Vamos, confirme tudo.Agora! Na frente de sua mulher.</div>
<br />
<div>
<br />
***<br />
- Tem uma moça aqui embaixo querendo falar com o senhor. A Laura.<br />
- Pode mandar subir.<br />
- Preciso que o senhor me ajude.Meti-me em encrenca. Estou grávida.Tentei conversar com meu namorado sobre o que fazer e ele disse que isso não é problema dele. Meu irmão não pode saber de nada. Do jeito que é, vai me expulsar de casa.Para piorar a situação, discuti hoje com o português e fui demitida. Fiquei a tarde inteira zanzando pela praia, sem coragem de ir para casa de cabeça quente. Procurei a única amiga que tenho aqui em Santos, para ver se eu podia dormir lá, como fiz outras vezes, mas ela tinha ido viajar. Aí me lembrei de vir aqui. O senhor disse que sua mulher quase nunca vem, por isso acho que não vou causar nenhum problema. Posso dormir aqui? Amanhã vou embora bem cedinho.<br />
- Pode. Fico na sala e você no quarto.</div>
<br />
<div>
<br />
***<br />
- Já que você trouxe a Adelaide, por que também não trouxe a Laura para esta conversa? Aí ficava tudo explicado.<br />
- Ela não pôde vir. Nunca mais vai poder ir para lugar nenhum. Ela morreu. Entendeu? Morreu! O médico disse que foi hemorragia , causada por uma tentativa de aborto. Foi então que resolvi descobrir o cara que a engravidou e acabar com sua raça. Uma bala na cara do safado, pensei. Depois, quando soube que era você , mudei de idéia. Por que estragar minha vida com isso? Descobri que poderia estragar a sua, sem acabar com ela.E é o que estou fazendo agora. Quanto à senhora, é sua vez de se entender com ele.</div>
<br />
<div>
<br />
***<br />
- Já que ele foi embora,Adelaide, posso explicar tudo?<br />
- Não. </div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-51738174228512180612008-05-20T10:47:00.001-07:002013-07-12T09:17:57.837-07:00SETE BILHETES<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCLm-FaYG7OlXqUCWlxTHXzc5SrBAYHYE1M4uN44h_vT9MwgsDUXr5eVM4sw8bp4uKyPZh1S0zM4wl3RGx6u4bpCOo68b2XF7ugjwA0Cm3DtTUJ76tg68l4EEjtkV-kfbQ_WLkgKYyNf8D/s1600-h/225690741_562ee920b0[1].JPG"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5202518326676443282" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgCLm-FaYG7OlXqUCWlxTHXzc5SrBAYHYE1M4uN44h_vT9MwgsDUXr5eVM4sw8bp4uKyPZh1S0zM4wl3RGx6u4bpCOo68b2XF7ugjwA0Cm3DtTUJ76tg68l4EEjtkV-kfbQ_WLkgKYyNf8D/s200/225690741_562ee920b0%5B1%5D.JPG" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
Assim que entrou na sala da casa, de regresso do hospital, onde a patroa , Dona Bia, acabara de ser internada, vítima de crise nervosa, a empregada viu alguns papéis sobre a mesinha de centro. Ao lado, um envelope amarelo, grande. Não reparara neles quando chegara por volta das 8 horas desta manhã, pois tivera de socorrer Dona Bia, encontrada semidesfalecida no quarto. Mal tivera tempo de ligar para pedir ajuda à irmã da patroa, residente a uma quadra dali, e que possuía automóvel.<br />
Agora, precisava colocar a casa em ordem. Quando saíra para sua folga semanal, na tarde de sábado, achara a patroa um pouco esquisita, mas, também, pudera: fazia duas semanas que perdera o marido, assassinado por assaltantes Mas não esperava encontrá-la em estado tão deplorável nesta manhã de segunda., a ponto de precisar levá-la ao hospital.<br />
Notou que os papéis sobre a mesinha de centro eram parecidos com bilhetes. O envelope não trazia chancela do Correio e tinha algumas frases escritas no verso. Inquiriu o porteiro pelo interfone:<br />
- Você lembra quem deixou este envelope para minha patroa?<br />
- Foi a secretária do falecido Dr. Miguel que me entregou esta manhã.Ela disse que não trouxe antes porque esperou a patroa voltar daquela viagem que fez após a morte do patrão. Eu mesmo entreguei o envelope pessoalmente para Dona Bia e ela parecia estar bem.<br />
Dona Isis, a secretária, costumava trazer papéis do escritório de advocacia do patrão, por isso era conhecida dos porteiros.<br />
Os fatos da noite em que o Dr. Miguel morreu deram a bilhetes um significado especial naquela casa. A empregada não resistiu à tentação de ler os que estavam na mesinha de centro. </div>
<div>
<br />
<strong>Primeiro</strong> </div>
<div>
<br />
Escrito em papel de caderno escolar ,não parecia bem um bilhete. Era mais uma troca de mensagens entre duas garotas: "Jéssica, você tem alguma coisa com o Edu?/ Não, já acabou faz tempo./ Tem certeza? Não quero magoar você./<br />
Tenho. Já esqueci o Edu./OK. Tá bom. Gosto muito de você, você sabe".</div>
<div>
</div>
<div>
<strong>Segundo</strong> </div>
<div>
<br />
“ Nossa lembrança de ...felizes em Pr...” O texto truncado estava redigido atrás de uma foto, rasgada ao meio e da qual sobrara apenas uma imagem inteira, de um jovem sorridente. A imagem extraviada deveria pertencer a uma mulher, visto ser feminina a mão, de longos dedos e unhas pintadas, rasgada à altura do pulso,pousada sobre o ombro direito do rapaz. Embaixo, mais fragmento de texto: ...” amor...embro...002” </div>
<div>
<br />
<strong>Terceiro</strong> </div>
<div>
<br />
“ Que bom se a gente tivesse sózinhos, né? Não dava pra despensar essa tua sobrinha?” , dizia, ferindo o vernáculo, o terceiro bilhete, escrito em um guardanapo, o texto borrado aqui e ali pelo que deveriam ser manchas de gordura ou bebida. </div>
<div>
<br />
<strong>Quarto</strong> </div>
<div>
<br />
Impresso de uma correspondência enviada por e-mail:"Corri para ver se alguém tinha enviado uma mensagem para mim. Corri, cansei e não encontrei nada.Tudo bem, não enviaram. Mas eu continuo insistindo. Envio várias mensagens. Pensei muito em você, como sempre. Isso não é novidade" .</div>
<div>
<br />
<strong>Quinto</strong> </div>
<div>
<br />
Na folha arrancada de uma agenda: “ Miguel, aí estão os quatro bilhetes. Um eu achei atrás da igreja; o outro, no lixo do meu prédio e o terceiro, o e-mail, na porta da Prefeitura. . A foto rasgada é de um primo meu, que a esqueceu em minha casa no dia que rompeu com a namorada.. Acho que, agora, juntando aquele que lhe dei, encontrado no ponto do ônibus - o do papel com coraçõezinhos vermelhos - já dá para tocar seu plano maluco. Sei que é meio estranha esta minha mania de colecionar bilhetes que acho por aí, porém, mais esquisita, ainda, e essa sua idéia de usar alguns deles em um projeto literário. O que vai escrever? Um romance, um conto, um ensaio? Que tipo de ligação vai fazer com bilhetes tão diferentes, de procedências tão distintas? Em todo caso, você é que está com a mania de escritor, deve saber o que está fazendo. Um abraço do Jair.” </div>
<div>
<br />
<strong>Sexto </strong></div>
<strong></strong><br />
<strong></strong><br />
<strong></strong><br />
<strong><div>
<br /></div>
</strong>Escrito no próprio envelope amarelo. Letra do Dr. Miguel, a empregada a conhecia bem. Endereçado à secretária dele:” Dona Isis, por favor guarde consigo este envelope e me entrega na segunda-feira. Não deixe no escritório porque são coisas pessoais. Um abraço e um bom fim de semana”. <br />
<div>
<br />
<strong>Sétimo</strong> </div>
<div>
<br />
O sétimo bilhete, o dos coraçõezinhos vermelhos, não fazia parte do conteúdo do envelope amarelo. Estava na lembrança da empregada, que o lera na manhã seguinte à noite em que o patrão fora morto.Dizia: “ Quando é que você vai arranjar um tempo para nós dois? Estou morrendo de saudades. Inventa alguma história para a bruxa da sua mulher, ela é burra, vai acreditar”.<br />
O bilhete fora encontrado pela patroa no bolso de um paletó e a deixara furiosa, a ponto de não permitir ao marido entrar em casa à noite. Ele não pôde, sequer, falar com ela pelo interfone ou celular. Perambulando , quem sabe a caminho de algum hotel , o Dr. Miguel foi assassinado por dois assaltantes em uma dessas esquinas escuras da cidade.</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-53818198432380995422008-05-16T08:34:00.000-07:002012-09-27T05:04:51.305-07:00O HOMEM E O MENINO<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIqtII1DlZEiDDCCJtZhZPWg7oh3NjCODYb0oFkiwg9ATheLv72RqptahuKrA_1OUPFwYYr1nNE5v_EXJo0da4VAJHUlLXnrNkBDgDECLzDkmsv639GTKJqewHDFjTb1M9ceM6-Mi1us92/s1600-h/around_the_bend_03.jpg"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5200999767974498162" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgIqtII1DlZEiDDCCJtZhZPWg7oh3NjCODYb0oFkiwg9ATheLv72RqptahuKrA_1OUPFwYYr1nNE5v_EXJo0da4VAJHUlLXnrNkBDgDECLzDkmsv639GTKJqewHDFjTb1M9ceM6-Mi1us92/s200/around_the_bend_03.jpg" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
- Moço, o senhor poderia arranjar um dinheiro para eu voltar pra minha casa?<br />
Interpelado em meio ao vaivém de milhares de pessoas rumo ao local do desfile de bandas, o homem parou. O garoto deveria ter entre 8 e 10 anos. Vestia-se de maneira modesta- bermuda, camiseta, tênis- mas não estava sujo. Cabelos aparados, unhas limpas.<br />
- Onde é sua casa?<br />
- Em São Bernardo.<br />
- Como é que veio parar aqui? Onde estão seus pais?<br />
- Vim com meu irmão, ver o desfile das bandas. A gente se perdeu um do outro.Estou andando por aí há um tempão para ver se acho ele, mas não adianta. Queria ir pra casa.<br />
- Seus pais sabem que vocês estão aqui?<br />
- Não. A gente ia voltar hoje mesmo.<br />
- Vem comigo.<br />
- E dirigiram-se até um posto volante da polícia militar, perto da praça. O homem explicou o caso a um soldado.<br />
- Podemos tentar localizar o irmão dele usando o serviço de som do palanque oficial- explicou o guarda<br />
E foi o que fez, durante uma hora, sem resultado.<br />
- Que outra coisa a gente podia fazer? Indagou o homem preocupado com o horário. Esperavam-no em casa.<br />
- Tentaremos avisar os pais do garoto, mas não sei como vai ser isso, pois eles não têm telefone e o menino não conhece ninguém que tenha. A saída é pedir para a PM de São Bernardo ir para a casa dele avisar . Isso vai demorar. O senhor sabe ,estamos no carnaval.<br />
Toda a polícia mobilizada para muitas coisas.<br />
- E enquanto essa situação não se resolve, o que ocorre com o garoto?<br />
- Fica aqui com a gente.<br />
- Mas isso pode durar a noite toda.<br />
- Não podemos fazer mais nada.<br />
- E se eu levar o garoto para a minha casa? Deixo minha identificação, telefone e endereço com vocês. Uma viatura pode nos acompanhar até lá . Moro aqui perto.<br />
Por que fez a proposta, não soube responder. A verdade é que o menino despertara-lhe algumas emoções. Lembrava outro garoto pobre- ele mesmo- de um bairro de Cubatão, a 12 quilômetros dali, que sonhava também em ver o carnaval nas praias de Santos.Mas nunca tivera a coragem de fazê-lo, quem sabe por falta de um irmão mais velho que o escoltasse na aventura.<br />
Sim, aquele menino era um pouco ele, na aparência de pobreza decente; na inocência de confiar em desconhecidos. Possívelmente, como ele, cresceria, estudaria com sacrifício, viraria engenheiro, arranjaria um bom emprego. Talvez se casasse também com uma moça de família rica...<br />
Tal reflexão fez com que hesitasse, por instantes, no propósito de levá-lo para casa. Mas, com os diabos, não podia deixá-lo , talvez a noite toda, na praça com policiais atarefados, ligados em tudo,menos em um menino perdido.<br />
E foram. O homem e o menino para a casa do homem.<br />
<br />
- Por que demorou tanto?<br />
A ansiedade da mulher fez com que não reparasse na presença do garoto.<br />
- Deixa entrar que já explico.<br />
Mal acabara a explicação e ela interrompeu, quase aos gritos:<br />
- Ficou doido? Trazer um moleque desconhecido para casa; expor desse jeito e mim e meus filhos?<br />
- Espera um pouco, é só um garotinho. Quando a polícia localizar os pais dele, telefona e o problema está resolvido.<br />
-E esse irmão dele. Quem é? Você não tem ouvido falar em menores delinqüentes?<br />
- Calma! Não assusta o menino! Ele não é o que você está pensando.<br />
- Como é que vou saber? Por que não o deixou com a polícia? Já não tinha feito a sua parte, levando-o até a viatura?<br />
- Não podia deixar um garoto dessa idade a noite toda na praça. Eu me imaginei na situação dele.<br />
- Tinha de ser! Você tinha de ter uma recaída da infância! Do tempo de Cubatão, pobrezinho. Viu o garoto e começou a ter pena de si mesmo. É aquilo que sempre falo: você melhorou de vida, saiu da favela, mas a favela não saiu de você. E, como se não bastasse, quer trazê-la para dentro de casa.<br />
- Você está exagerando.<br />
- Não estou exagerando nada. Vou ligar para meu pai vir me pegar e às crianças.Se você insiste em manter o garoto em casa, nós saímos.<br />
Falavam alto e nem percebiam a presença do menino. Somente quando ela calou-se e dirigiu-se ao telefone, ouviu-se o fio de voz, hesitante:<br />
- Pode deixar que eu vou embora.<br />
E saiu pela porta que haviam esquecido de fechar. O homem atrás. Caminharam alguns minutos em silêncio, quebrado pelo homem:<br />
- Espera aí. Vou pegar o carro e levar você para casa.<br />
E foram. Menino e o homem, par a casa do menino.<br />
<br />
Em menos de uma hora, estavam em São Bernardo. O irmão mais velho já havia chegado à moradia humilde da periferia, narrado a aventura e participado o sumiço do irmão.Os pais, antes preocupados, ao virem os dois, sentiram alívio. Prometeram ao homem não punir os filhos.<br />
- São apenas crianças. O susto já foi castigo suficiente.<br />
Tudo resolvido, tomou o caminho de volta.Antes de sair da cidade e pegar a Via Anchieta, parou em um bar. Raramente consumia bebida alcoólica, porém a ocasião pedia uma latinha de cerveja. Relaxar? Comemorar? Ficou ali, no balcão, refletindo.<br />
Acudir o garoto, levando-o de volta para casa, como que socorrendo a si mesmo, 30 anos atrás, deixara-o satisfeito. Afrontar a mulher, abandonando-a irritada no meio da sala - atitudes que jamais tomara antes- deixaram-no apreensivo. Por que agira assim? Só por que o garoto lembrava a criança que fora? Ou porque ainda não liberara a favela dentro de si, como sempre recordava a mulher? Um herói que provara solidariedade e apreço às origens, ou o irresponsável que expusera a família à sanha de delinquentes mirins?Com muitas perguntas e nenhuma resposta, o homem era um menino perdido. </div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-16628139915058661022008-05-15T09:03:00.000-07:002012-09-27T05:07:19.027-07:00MACHOS INOCENTESComo classificar o comportamento de um homem que não conseguia ficar em locais onde houvesse namorados se acariciando? Que, junto com familiares, assistindo a novelas de TV, saía da sala a uma simples trocade beijos entre personagens?<br />
<br />
<br />
Não, Honorato não era evangélico, carola católico ou muçulmano. Casado, duas filhas e um filho, hoje todos adultos, não lhe feriam a suceptibilidade mulheres de shorts, saias curtas , justas; biquínis, ou mesmo seios nus.. A nudez no cinema,nas revistas, na TV não o perturbavam. Meneios pseudosensuais de travestis e homossexuais não lhe traziam maior incômodo. O que lhe acarretava desconforto eram as manifestações públicas de carinho.<br />
<br />
- Sexo é coisa para ficar entre quatro paredes.<br />
<br />
Policial aposentado, quando, na ativa, fazendo rondas na zona do meretrício, expulsava mulheres que agarravam-se aos clientes nas ruas. <br />
<br />
- Prá dentro! Prá cima! Vamos acabar com a putaria!<br />
<br />
Ficaram famosas suas explosões de ira, os socos, tapas e pontapés que distribuía em tais ocasiões.<br />
<br />
Agora, sem o estresse da luta contra criminosos e da convivência com o baixo mundo, perdera muito da agressividade, mas não da idiossincrasia ao que chamava de sacanagem pública. E à proporção que ia envelhecendo, adicionava à mania novos fatores de desagrado. Ficara famoso ( felizmente, apenas no âmbito familiar) seu acesso de raiva ao encontrar os filhos observando a cópula de um casal de rãs no charco atrás da residência.<br />
<br />
Os filhos cresceram, chegaram a adolescência, à juventude, as duas mulheres usaram bermuda, saia curta ou justa, calça apertada, casaram, namoraram tiveram filhos. Mas nunca abraçaram ou beijaram seus namorados , depois cônjuges, na frente de Honorato.<br />
<br />
Cenas de beijos, abraços, esfregações, na TV, em revistas, no cinema ou mesmo na realidade das ruas tornaram-se, após a aposentadoria, perfeitamente evitáveis. Nos primeiros casos, bastava não ficar diante do aparelho, não folhear as publicações; não ir às salas de projeção. Como saía pouco do bairro, também pouco via namorados e os que o conheciam já sabiam o que não fazer ao passar diante dele<br />
<br />
Mas uma coisa não podia evitar ; a presença de cães atrás de cadelas no cio, muito comum nos bairro populares, onde cada quintal tem pelo menos um exemplar de vira-lata, e as ruas, dezenas. Nos meses de julho e agosto, repetem-se os rituais da procriação canina. Honorato passou, nestes períodos , a nutrir especial ódio às perseguições coletivas de cães às cadelas no cio. Ao ver à já prosaica cena de um cão atado a uma fêmea, rodeado pelos demais machos, famintos de sexo, não se continha. Apossava-se dele um misto de vergonha e raiva principalmente se a visualização da cena era compartilhada por outras pessoas, mulheres, em especial.. Desviava o olhar, virava o rosto, apressava o passo, mudava de trajeto. Com o passar do tempo, radicalizou:, chutava os animais, atirava-lhes pedras ou outra coisa contundente ao alcance das mãos. Certo dia, correra ao bar da esquina, comprara duas garrafas de água mineral gelada para despejar em dois viralatas engatados. <br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
II<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
<br />
Como explicar o extraordinário poder de atração daquele odor, imperceptível a narizes humanos, que faz o amarelo, o preto, o malhado, o peludo, o grande, o pequeno, o cotó, o mestiço andejo das ruas; o galgo e demais pedigrees, perseguirem fêmeas, sejam elas quais forem- mesmo pequenas para os grandes, ou grandes para os pequenos- por ruas, avenidas, quintais, morros, charcos, trilhos de trens; entre carros, pernas de homens, barracas de feiras, cadeiras de botequins?<br />
<br />
Que dinheiro as humanas não pagariam por esta loção, de que a natureza não as dotou, capaz de levar machos a enfrentarem chutes, paus, pedras, a fome, calor, frio, dentadas, por instantes de sexo com suas fêmeas? Que dá poderes estranhos, como o de saltar obstáculos várias vezes superiores às suas alturas; enfrentar adversários mais robustos e ferozes; esquecer o aconchego dos lares, subsolos de barracos ou casinhas de alvenaria em jardins de mansões? Do pulguento vira-lata do morro ao lulu shamporizado da filha do prefeito, nenhum invulnerável à fragrância saída das entranhas das fêmeas que os convida irrestívelmente à cópula.<br />
<br />
Naquela quinta-feira ensolarada lá estavam aqueles cinco cegos, surdos e mudos de desejo como tantos outros milhares de cães em outros tantos milhares de locais e dias, em julho e agosto, a perseguirem uma cadela no cio. E como as tantas outras, lá estava ela correndo de um lado para outro, rejeitando investidas ora com mordidas, ora sentando, ora correndo em círculos. Cederia, em determinado momento, a um dos perseguidores, não necessariamente o mais forte, não necessariamente o mais rápido . Mas até aquele momento, aos cinco cabia correr, aproximar-se, fustigar, lutar para que o simples desejo se transformasse em dádiva.<br />
<br />
Ainda arisca, a cadela resolveu atravessar aquela esquina. Por instantes, algo grande, sólido,barulhento e rápido ficou entre ela e eles. E quando o obstáculo visual não era mais presente, ela estava deitada no chão: mais uma das muitas manobras de rejeição, como a de correr em circulos, sentar, morder? Eles acreditavam nisso e , como tantas outras vezes, aproximaram-se. A fragrância do sexo, intensa, fazia com que tentassem formas estranhas de cópula, procurando adaptar-se ao corpo estendido no chão. Nas costas? Na cara? Na barriga? Contorcendo-se, chinchando, como dizem os humanos, cobriam a fêmea, como formigas sobre o corpo de uma barata morta.<br />
<br />
Foi quando ouviu-se o primeiro estalo e caiu o malhado. O espaço livre foi imediatamente ocupado pelo marrom, que caiu ao segundo estalo, permitindo que o preto se aproximasse e caísse, também, à repetição do inesperado som.. Em segundos, eram cinco machos no chão, filetes de sangue escorrendo-lhes de buracos nos corpos.<br />
<br />
Não sabiam, sexos atormentados pela fragrância do cio, ainda latente na atmosfera, que a fêmea fora atropelada por um automóvel; que os estalos eram tiros; que o atirador era o ex-investigador Honorato, no extremo da indignação ao ver tão estranhas tentativas de coito . Não saberiam jamais que, dali a minutos, chegaria a Polícia Militar, que Honorato – logo ele, investigador aposentado- se negaria a entregar a arma a um PM, que haveria um tiroteio, que Honorato morreria.<br />
<br />
Eram machos inocentes.Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-60520702259201321422008-05-14T05:43:00.000-07:002016-10-07T09:20:52.100-07:00SÓ DE FOGO<br />
<div>
<br />
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Quando a gente se paquerava, eu disse pra ela: meu
trabalho é este mesmo, não tem nada demais, é só um trabalho como outro
qualquer, tás me entendendo?Uma coisa que a gente aprende um dia e que depois
só sabe fazer aquilo, tás entendendo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Mas ela ficava toda abestalhada e , quando eu
estava no serviço , dava um jeito de passar lá, tás entendendo? E nem me via
direito, a não ser que tivesse um binóculo, porque a gente fica muito, mas
muito alto mesmo, tás me entendendo? Ela ia pro trabalho dela e, se o prédio
que eu tava ficava perto, ela passava lá e ficava olhando o tempo todo que
desse. Eu nunca a via , tás entendendo? Porque, não sei se já disse, quando
trabalho só me ligo no serviço e estou bem avoado, tás me entendendo.?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">No tempo da paquera, a coisa rolava assim: no
domingo no forró do Mingo, ela sempre dava um jeito de sentar na minha mesa. A
gente foi se acertando e ela dizendo que tinha sido conquistada pela minha
coragem, me vendo pendurado lá em cima, tás entendendo? Eu nunca compreendi
muito bem essa fissura de mulher, mas mulher é assim mesmo e o que se há de
fazer? Não vou negar que até ficava meio besta com a admiração da Foquinha (
que eu chamo ela assim, não me lembro muito bem por quê).<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A gente só se via no domingo no forró do MIngo e,
pra encurtar a história,a gente resolveu morar junto. Teve outros particulares
no meio, mas isso não é coisa pra esse papo, tás me entendendo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Mas tinha uma coisa que eu tinha que explicar antes
do ajuntamento e que se eu tivesse conseguido esse papo de agora não tava
rolando. Eu tinha que deixar bem claro: olhaqui, Foquinha, tem um negócio no
meu trabalho que você tem de saber, senão fica difícil pra gente se entender,
certo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Aí eu tinha que ter explicado que não é mole ficar
pendurado lá em cima, quarenta metros do chão, limpando vidraça, parede, o
vento te balançando e todo mundo lá embaixo, formiga.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Eu tinha que jogar as cartas na mesa: só subo de
fogo. Se o trabalho dura um dia, é um dia de fogo. Se é uma semana no trampo,
uma semana de foguete.. Pinga pura, coragem engarrafada, tás me entendendo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Tem um porém: e se eu falasse tudo isso e ela
deixasse de me achar o bam-bam-bam do pedaço dela? Resolvesse procurar outro
cara corajoso de verdade pra admirar e ficar gamada? Tu aí, abria o jogo e perdia
a mulher?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Eu não. Tás me entendendo? E vai daí que me liguei
só nos preparativos do ajuntamento, sabe como é? E logo já tava levando as
coisas para a meia-água nos fundos da casa do Vadão. E no começo foi tudo bom
porque no começo tudo é muito bom.A cachaça é boa no começo, a coceira da
frieira também.E tem que na lua -de-mel ( vamos chamar assim), eu não tava com
trabalho e foi uma semana de bem-ótimo, tás me entendendo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Mas a vida precisa continuar e o Vadão já tinha me
falado de um prédio no centro. Vidros sujos, poeira nos parapeitos, aquela
coisa de sempre. Já disse que, de cara limpa, não dá. São duas cordas, presas
em duas vigas no topo do prédio e a cada meio metro de cada corda, um nó.O
banquinho, que os caras chamam de balancim, fica preso num gancho que a gente
prende no nó.Você vai descendo assim: tira a bunda do banquinho, engancha o
dedão do pé no nó debaixo, solta o banquinho do nó de cima com uma mão e, com a
outra, se segura na corda, tás entendendo. Prende o gancho no nó de baixo, senta
de novo e continua a limpeza, certo?Quando tu faz a mudança., tu fica pendurado
só na mão e no pé, no ar, balançando feito pipa de papel de seda. Meu irmão, só
de fogo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">E vai que na primeira semana depois da lua-de-mel,
eu chegava mamado em casa todo dia. A Foquinha achou até graça e vi que a coisa
tava nos controles, certo? E o meu trabalho não é de mês corrido, como o de
todo mundo. É uns dias em casa, outros no trampo e, quando não trabalho, não
bebo, porque não é preciso, tás entendendo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Ai, pintou coisa nova.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Foi a mulher do Vadão, tenho certeza.Foi ela que
enfiou na cabeça da Foquinha este negócio de virar crente, evangélico, como
dizem hoje, tás me entendendo? No começo, nem me toquei no assunto. Coisa de
mulher, tu fala. Ela vai, tu fica, tu na tua, ela na dela, tás me entendendo?
De vez em quando, uma indiretazinha, de que você tem de se salvar, que precisa
ler a Bíblia, orar na igreja e coisa e tal, mas eu acho que sou um bom sujeito,
trabalhador, não faço mal a ninguém e, por isso, não vejo porque não vou ser
salvo se não for pro culto ou não ler a Bíblia, tás entendendo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Passa uns tempos e Foquinha foi ficando mais
encasquetada com a salvação da alma. E um dia, foi rápida e rasteira: a gente
tem que casar. O pastor disse que não podemos só viver juntos, sem a bênção da
igreja. É pecado. Tentei dizer que o mundo todo vive assim, que pecado é
casamento infeliz, mas não teve papo, tás me entendendo? Ela disse que se eu
quisesse perder a alma, que perdesse sozinho, mas não tinha o direito de levar
ela pro inferno junto.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Jogo pesado, né? Mas também não ia ser eu que ia
criar problema, porque, abençoado ou não, eu queria era ficar com a Foquinha,
tás me entendendo? E concordei com tudo e ela veio com mais porém: pra casar ,
eu tinha que me converter , virar irmão da igreja, me entregar pra Jesus,
certo? E , num caso assim, precisava evitar as coisas ruins do mundo.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Como a bebida alcóolica.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Pra você não tem problema, disse ela, porque você
não é viciado, só tem que parar com aqueles foguetinhos de vez em quando- e ela
até sorriu quando lembrou isso, o que quer dizer que, até àquela hora, não
tinha crise com os foguetinhos, tás me entendendo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Agora tinha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Te põe no meu lugar: digo pra ela que tenho de
beber senão não trabalho e se não trabalho não tem sustento? E aí ela descobre
que não sou o corajoso que fez ela gamar só de me olhar lá em cima no balancim?
Que preciso encher a cara pra encarar a altura?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">Não bebo mais, caso com ela, tento trabalhar de
cara limpa e despenco já na primeira vez, porque, como te disse, lá em cima, só
de fogo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">A vida ficou complicada, tás entendendo? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; mso-margin-bottom-alt: auto; mso-margin-top-alt: auto; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: PT-BR;">E então num destes dias , quando os caminhos estão
muito fechados para o nosso
entendimento, em que a gente tem de desabafar senão explode, contei minha história na hora do almoço no serviço,
estava eu, o Mingo e um ajudante, tas me entendendo? <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">O
Mingo não sabia direito o que falar, ele é um cara que está sempre pronto para
ajudar os amigos,mas neste caso, o silêncio dele , para mim que conheço bem o cara, já dizia tudo: não
podia fazer nada. Mas o ajudante, que conheço de pouco tempo,mas foi arranjado
pelo Mingo e se foi o Mingo que arranjou, tudo bem, disse que meu problema não
era muito difícil de resolver.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Qual
é o negócio da mulher, é você não beber? perguntou . E o teu negócio é beber só
na hora do trabalho, pra ter coragem? Acontece, meu irmão, que não é só cachaça
que dá coragem. <o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">E
a partir daquele dia, Foquinha não me viu mais de fogo, tas entendendo? Se a
condição para ser homem de Deus,evangélico e tal, era não beber bebida
alcoólica, tudo jóia. Não bebo mais. Porque naquele dia fiquei conhecendo a
maconha.<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%;">Tás
me entendendo?<o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
<br />
<div class="MsoNormal" style="line-height: 150%; text-align: justify;">
<br /></div>
</div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-70272865856052233152008-05-13T05:50:00.000-07:002012-09-27T05:18:54.124-07:00O OUTRO LADO<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiAT7qc4qqHWI2fV6B8e8KwCSTj4pD3A8u2rTfvr3xQoBmpL-yHq30RLSzEesDHnwlG3DZuGxZBCBc8KL5RswNI3CExKwE0con59FoFTXBEjgCzIRutuSAwX98FO_yRsX3JOOnzG7y3hrH4/s1600-h/sem+tÃtulo.bmp"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5199846637974998610" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiAT7qc4qqHWI2fV6B8e8KwCSTj4pD3A8u2rTfvr3xQoBmpL-yHq30RLSzEesDHnwlG3DZuGxZBCBc8KL5RswNI3CExKwE0con59FoFTXBEjgCzIRutuSAwX98FO_yRsX3JOOnzG7y3hrH4/s200/sem+t%C3%ADtulo.bmp" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
<em>Querida filha, refleti muito antes de lhe mandar esta carta. Creio que este é o momento de fazê-lo. Você já tem 21 anos e, sem dúvida, terá condições de compreendê-la.<br />A última vez em que falei com você faz exatamente 17 anos. Foi quando a visitei duas semanas após separar-me de sua mãe. Depois, aconteceram muitas coisas que nos impediram de qualquer contato pessoal. Sua vida tomou um rumo e a minha, outro. Você deve ter ouvido muita coisa a meu respeito, a maior parte delas não muito elogiosa. Mas não é isso o que importa, agora. Esta carta não tem por objetivo apresentar minhas defesas, nem condenar ninguém. A finalidade dela é permitir a existência do” outro lado” em sua vida. O que significa isso? Significa que você precisa conhecer a minha versão de nossa história. Assim, você será uma pessoa mais completa.Terá mais respaldo para emitir qualquer julgamento. Não viverá na dúvida. Saberá se é preciso mudar conceitos ou reafirmar os conceitos que já tem. Creio que lhe devo isso. Portanto, gostaria de me colocar à disposição para uma conversa franca e adulta. Fica a seu critério marcar o dia, a hora e o lugar. Um beijo de seu pai. </em></div>
<div>
<em><br />-</em> O que você achou?<br />
- Meio esquisito pois, ao que me consta, ele nunca lhe escreveu. Mas parece que só quer uma conversa.<br />
- Agora, depois de tantos anos? Não vou lhe dar essa chance.<br />
- Pelo que pude entender, ele não está pedindo nenhuma chance. Ao contrário: está lhe oferecendo uma .<br />
- Como assim?<br />
- Ele diz que você precisa conhecer o outro lado.<br />
- O outro lado do quê?<br />
- Da história de vocês três: dele, sua, de sua mãe...<br />
- Muita pretensão.Você acha que eu e minha mãe vamos perdoá-lo? Um sujeito que deixou a gente por outra mulher?<br />
- Mas ele não está pedindo perdão. Presta atenção nesta frase: “Você deve ter ouvido falar muita coisa a meu respeito, a maior parte delas não muito elogiosa. Mas não é isto o que importa, agora”. O que quis dizer com isso? Que não está preocupado com julgamentos; se será condenado ou absolvido.<br />
- Então, por que precisa falar comigo?<br />
- Ele não disse isso. Colocou-se à disposição para que você fale com ele.<br />
- Mas por quê?<br />
- Repito: ele quer que você tenha conhecimento do outro lado da história.<br />
- Para quê?<br />
- “ Assim você será uma pessoa mais completa. Terá mais respaldo para emitir qualquer julgamento. Não viverá na dúvida. Saberá se é preciso rever conceitos ou reafirmar os conceitos que já tem”: estas frases respondem à sua pergunta?<br />
- Mas se ele pensa que nós esquecemos tudo, está muito enganado.Não vai ser em uma conversinha fiada que irá me dobrar.<br />
- Mas não pretende enganá-la. Pela carta a gente vê que quer ter somente uma conversa franca com você. Ele se considera devedor disso. Não aceita a idéia de que você possa fazer julgamentos com base em apenas uma versão dos fatos. Ele acha que você será infeliz pois nunca saberá se foi justa ou não.<br />
- Ah, minha querida amiga, com relação a meu pai sempre fui justíssima. Ele abandonou minha mãe de repente e fugiu com outra mulher. Deixou a minha mãe sem dinheiro e cheia de dívidas.Nunca se preocupou comigo, com minha saúde, com minha vida escolar. Só pagava pensão porque tinha medo de ser preso. Assim mesmo, mentia sobre quanto ganhava para não ter de pagar o que era justo. Envolveu-se com gente que não presta. Isso por causa da outra mulher dele, que não é flor que se cheire. Quando vivia com minha mãe batia nela. Era neurótico. A família dele, então,nem se fala. Um bando de favelados. Não conheço meus avós, meus tios, nem quero conhecer. É gente mal conceituada.<br />
- Puxa! Você tem bastante informação sobre seu pai.<br />
- E ainda é pouco. Você nem imagina o que sei mais. E é por isso que vou rasgar essa carta idiota, jogar fora e continuar o resto de minha vida sem falar com ele.<br />
- Tudo bem. Você sabe que sempre respeito sua opinião e suas decisões. Mas, só para encerrar: quem foi que deu todas as informações que lhe permitiram essa rejeição incondicional a seu pai?<br />
- Minha mãe, oras! </div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-62828596778510078492008-05-09T06:41:00.000-07:002012-09-27T05:21:16.002-07:00NA FILA PARA VER BOYBOY<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiS_wlKyNOWjlmXM7gFT62fndBs5UTKMYnWtviK_h51toqPA7H0eLNP_ysa6R-rvtGi-ctqoPd3u1LUyah9Z0Q290w3V7GVkYV5G4FJoF2n4_oMx2Wf1XBSTSeXoLQjJAzV_qKG1JSMoIe0/s1600-h/fila600.jpg"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5198374760670922546" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiS_wlKyNOWjlmXM7gFT62fndBs5UTKMYnWtviK_h51toqPA7H0eLNP_ysa6R-rvtGi-ctqoPd3u1LUyah9Z0Q290w3V7GVkYV5G4FJoF2n4_oMx2Wf1XBSTSeXoLQjJAzV_qKG1JSMoIe0/s200/fila600.jpg" style="float: left; margin: 0px 10px 10px 0px;" /></a><br />
<div>
<br />
O Boyboy é demais. Quantas noites e dias sonhei em assistir a este show. Essa fila não anda? Será que vai dar para ficar na frente do palco? Quero ver o Boyboy bem de pertinho! Hummm! Aquelas reboladinhas que ele dá... Não sai do meu lado, senão a gente se perde uma da outra e o meu bloquinho de autógrafo está na sua bolsa. Quando a fila andar, não deixa espaço, senão alguma dessas metrecas fura. Cuidado! Só faltava quando a gente chegar na bilheteria, não ter ingresso. Eu morria. Se o Paulinho estivesse aqui , a gente nem precisava ficar na fila. Ele daria um jeito de conseguir os ingressos antes .Acho que só para isso ele servia, mesmo. Como? Não te disse ainda por que acabamos? Sei lá, por um monte de coisa. Ei, dona, pára de empurrar minha bunda! A fila não andou ainda, não vê? Então, pois é, o Paulinho deu pra beber. Você tem razão, ele só bebe um chope e mesmo assim de 15 em 15 dias . Mas, sei lá...Lembra o Gadú, que eu namorava antes dele? Não saía de uma balada com as próprias pernas. Tomava todas. Quanto vexame passei. Aquela vez que vomitou no vestido da Cris. Então.Esse chopinho do Paulinho pode virar mania e , pelo amor de Deus, não quero outro Gadú na minha vida. Se liga, a fila está andando! Então, minha filha, o Paulinho já estava assim, entende, problema pra caramba. Comendo demais. Uma vez, no MacDonalds, mandou ver um superdog e ainda tomou meia coca litro. O que é isso? Você acha que eu ia querer um pançudo do meu lado? Concordo quando você diz que ele é magro, mas pode um dia ficar gordo, certo? Que nem o Gonzaga, que eu namorava lá na minha outra cidade . Um glutão, que só pensava em comida. Tinha quinze anos e vivia fazendo regime. Larguei dele quando ficou diabético. E fiquei uns dois meses só paquerando magrelos. Trauma, minha querida. Cuidado! A Soraia está lá na frente, perto do pipoqueiro. Finge que não vê, vira para o outro lado! Ela vai querer que gente compre o ingresso dela. Muito folgada! Ela que vá para o fim da fila. Só faltava essa. Você gosta do cabelo do Boyboy? Eu acho do caraca! E quando ele balança a cabeça, então.. Uauuu!! Fazendo aquela careta de homem mau, parece que vai atirar a guitarra nas meninas da platéia? Hoje vou gritar : Boyboy, joga o microfone na minha cabeça!! Falar nisso, sabe outra coisa que eu não gostava do Paulinho? A grosseria. Esse negócio dele ser uma pessoa educada, que todo mundo falava, que não gritava nunca, incapaz de dizer palavrão, cheio de com licença e muito obrigado? Não posso negar. Mas fica sabendo que naquele dia do aniversário da Fran, gritou comigo. Isso mesmo. Eu estava olhando para um enfeite no teto, ou era para quem estava entrando, não lembro, e só ouvi o berro: Dircinha!! Uma falta de educação e depois ainda disse que era porque eu não tinha ouvido quando ele me chamou antes. Você sabe que não suporto que gritem comigo, pois me lembra muito bem os berros que meu pai dava em casa, por qualquer coisinha, e a gente vivia sobressaltada, parecia um trovão. Graças a Deus que minha mãe se separou dele. Agüentei tanto meu pai e imagina se eu ia ficar esperando o Paulinho virar um trovão igual a ele. Legal, a Soraia não viu a gente. Se não achar algum trouxa que lhe compre o ingresso, vai ter de encarar o fim da fila e tomara que não encontre mais nenhum na bilheteria. Não sei se você sabe, mas ela andava de olho no Paulinho. Que faça bom proveito. </div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-7624130318336702163.post-79709225122761842462008-05-08T06:40:00.000-07:002012-09-27T05:23:44.693-07:00O ANARQUISTA<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZWws_uZO2WRyh3AX8uMZVmL4Xou4mwOHqI9Cn1aWvFN4HdCE-xoENaoPQkfae5Egh8dPTczqBLHZ4fwA5ha2KH9rq13ZiyNQ-poavwtHb0qfBlfTA6AjW2gLRyrIIqjtEE7HK35Mh-5sK/s1600-h/anarquia.gif"><img alt="" border="0" id="BLOGGER_PHOTO_ID_5198002457253600674" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhZWws_uZO2WRyh3AX8uMZVmL4Xou4mwOHqI9Cn1aWvFN4HdCE-xoENaoPQkfae5Egh8dPTczqBLHZ4fwA5ha2KH9rq13ZiyNQ-poavwtHb0qfBlfTA6AjW2gLRyrIIqjtEE7HK35Mh-5sK/s200/anarquia.gif" style="float: right; margin: 0px 0px 10px 10px;" /></a><br />
<div>
<br />
Há tempos, precisei resolver alguns assuntos em Santos e desci ao litoral em uma segunda –feira. Feitos os primeiros contatos, deixadas pendências para a tarde, resolvi comer algo no Bar Carioca, especialmente indicado por amigos que diziam ser servido, ali, o melhor pastel da cidade. O bar fica na Praça Mauá, ao lado da Prefeitura e Câmara Municipal, servindo como ponto de encontro de políticos, não só locais, como também de fora . Para estes, é o tradicional lugar do cafezinho ritualístico que permite aos jornais registrarem-nos em cenas de convívio popular.<br />
No dia em que lá estive, à hora do almoço, em uma das mesas de canto, um grupo discutia política municipal . Acomodei-me em mesa próxima e , lembrando recomendação dos amigos, pedi três pastéis de carne e uma latinha de cerveja. A iguaria confirmava os elogios. Os dentes encontravam carne logo à primeira mordida, ao contrário do que ocorre normalmente, quando percorrem muitos espaços vazios na massa até encontrarem o recheio. Um tempero diferente,nem forte, nem fraco: denso. Enfim, era plenamente justificada a fama dos pastéis do Carioca.<br />
Comia, saboreando cada naco,olhando o movimento lá fora na praça: chegada e saída de ônibus municipais; tráfego de funcionários públicos, empregados de lojas, bancários, indo e vindo do almoço, os desocupados e vagabundos de sempre cochilando nos bancos .Achava curioso o movimento dos que entravam ou saíam dos banheiros públicos subterrâneos. Se você não acompanha atentamente o percurso, parecem sumir ou surgir do nada.<br />
Prestava atenção ao vulto imponente do prédio da Prefeitura, edificação em estilo neoclássico, erguida nos anos 1930.<br />
Eis que, entre meu olhar e o prédio, intromete-se o vulto de um homem magro,muito branco, óculos de aros negros e grossos, camisa social bege e calça preta, meio frouxa. Dirige-se lentamente ao balcão, pede um café cremoso, puro. Servido, pega a xícara e caminha em direção à mesa dos políticos , que calam-se quando se aproxima. Começa a falar:<br />
- Governos não prestam. Dizia Henry Thoureau: o melhor governo é o governo nenhum. E dizem os espanhóis: si hay gobierno, soy contra.Governos interferem na vida das pessoas e sempre para prejudicar. Os homens devem viver em estado de anarquia. Mas não no sentido pejorativo do termo. Do grego an, sem, e archos, governo: sem governo, entendem? Lembrem-se: o melhor governo é o governo nenhum.<br />
Falava baixo, mas de maneira audível , e pausada. Terminado o discurso, bebeu calmamente o café e se retirou, tão tranqüilo como entrara.<br />
Causou estranheza, não a atitude do homem. O discurso fora simples e coerente, os gestos suaves e elegantes. Não admirou-me, também , o fato dos políticos ficarem em silêncio. Sem dúvida conheciam-no e deveriam ter motivos para ouvirem-no respeitosamente. Impressionou-me, sim, o que ocorreu após o término da fala e saída do homem. Ninguém respondeu, nem comentou nada. Retornaram á conversação de antes, sem nenhuma referência ao ocorrido, como se nada tivesse acontecido.<br />
Comentei o fato com o garçom.<br />
- Ninguém liga mais para o Benildo - respondeu, enquanto recolhia o pratinho onde repousavam apenas casquinhas de massa do que outrora foram três pastéis.<br />
Lembrou que, há pelo menos dois anos, Benildo, aposentado há um ano da Prefeitura, onde fora escriturário, fazia o mesmo discurso sempre que via um grupo de políticos . No começo, alguns ainda argumentavam, tentavam iniciar um debate, mas como ele ficava sempre repetindo a mesma coisa, viram que não valia a pena o esforço. Agora, limitam-se a ouvi-lo, cientes de que, logo após falar, ele se retirará, sem aguardar respostas.<br />
- Então ele é uma espécie de retardado?- indaguei<br />
-Não era assim. Sempre foi meio caladão, mas não tinha nenhuma esquisitice. Dava-se bem com os colegas da repartição, com o pessoal aqui do bar. Uns três anos antes de se aposentar, tinha até melhorado de vida. Teria recebido uma herança ou coisa parecida. Dizem que o que deixou o Benildo meio ruim da cabeça foi a separação da mulher. Eu acredito nisso. Ele a adorava. Ninguém sabe porque se separaram. O Benildo sempre foi muito reservado quanto à sua vida pessoal.<br />
Quase tudo parecia justificar o comportamento esquisito de Benildo. Afinal, não seria o primeiro, nem o último a ficar meio desorientado após uma desilusão amorosa. O que eu não conseguia era estabelecer uma ligação entre o drama afetivo de Benildo e seu discurso contra governos. Seria mais lógico se fizesse discursos contra mulheres, contra o casamento. Enfim, como a resposta a tal enigma não tinha a menor importância, a não ser satisfazer uma curiosidade, decidir voltar minha atenção para o que realmente me interessava. Paguei a conta e fui tratar da segunda parte do assunto que me trouxera a Santos.<br />
O funcionário aposentado antigovernista, de camisa social, calças frouxas, óculos de aros grossos teria desaparecido completamente de minhas lembranças não fora uma dessas causalidades que mais parecem tramas sobrenaturais voltadas a nos fazer penetrar em outros destinos.<br />
Ao final da tarde, dirigindo-me para a Rua Amador Bueno, a duas quadras da Prefeitura, onde ficava o estacionamento em que deixara meu carro, vejo Benildo sair de uma papelaria. Trazia uma pequena pasta na mão direita e parecia distraído, o que deve ter sido notado, também, por um garoto que, acelerando os passos, arrebatou-lhe a pasta e atravessou a rua, iniciando uma corrida justamente em minha direção. Não deve ter-me visto, e eu aproveitei para atravessar-me em seu caminho.. Caímos e a pasta ficou ao alcance de minha mão direita. Agarrei-a, o moleque tentou tomá-la, mas ofereci resistência. Desistiu do intento levantou-se e reatou a corrida, sumindo na primeira esquina.<br />
Acabava de levantar-me, cercado por alguns curiosos, sacudindo a sujeita da roupa com a mão esquerda, enquanto que, com a direita, segurava fortemente a pasta, quando vejo Benildo aproximar-se, ar preocupado.<br />
- Tudo bem com o senhor? Está machucado?<br />
- Não. Só um pouco cheio de poeira. Veja: recuperei sua pasta.<br />
- O senhor nem imagina como estou agradecido. Nesta pasta estão documentos importantes que eu ia amanhã levar a meu advogado.<br />
Era curioso observar como Benildo, mesmo em uma situação como aquela, não perdia a suavidade de gestos e voz. Sua excitação era apenas perceptível por um brilho maior no olhar, um ligeiro tremor na mão que me estendia, menos para pegar a pasta do que para apertar a minha. Diante da impossibilidade de fazê-lo- a pasta impedia- apertou-me o punho.<br />
Os poucos curiosos afastaram-se, tecendo comentários sobre a insegurança das ruas; a ação de pivetes no centro da cidade, a falta de policiamento, etc.<br />
- O senhor não quer se limpar melhor? Lavar-se? Vamos até aquela lanchonete. A gente aproveita e toma um café.<br />
Confesso que, em outra circunstância , premido pela necessidade de retornar ao planalto antes de escurecer ( detesto dirigir à noite), teria agradecido , entregue a pasta e ido embora. Mas a inusitada circunstância que me fizera, de novo, estar diante de tão singular personagem fez com que aceitasse o convite.<br />
Em minutos estávamos em uma mesinha da lanchonete, com duas xícaras de café cremoso e dois pãezinhos de queijo à nossa frente.<br />
- Já é a segunda vez, só esta semana, que levo uma trombada desses moleques. Eles ficam perambulando pelo centro, só esperando a oportunidade para roubar alguém. Da outra vez, me levaram a carteira, que, felizmente, não tinha dinheiro, nem documentos importantes. Mas desta vez, se levassem a pasta, eu ia ter muitos problemas.<br />
E, com a mesma calma com que fez o pequeno discurso sobre a desimportância dos governos, Benildo explicou a importância da pasta. Ela continha papéis comprobatórios de que sua renda não aumentara nos últimos seis meses. Seu advogado iria, no outro dia, anexá-los ao processo de divórcio, no Fórum.<br />
- Tenho de pagar uma pensão alimentícia à minha ex-mulher equivalente a 30% de meus ganhos mensais líquidos. A cada seis meses, ela pede investigações sobre meus ganhos reais pois acredita que eles aumentam e eu sonego tais informações para não pagar mais pensão. Entra com petição na Justiça e sou intimado a prestar esclarecimentos.<br />
Uma história comum, acrecentando mais contradição à tese de que aquele homem fazia discursos sistemáticos contra governos devido a um trauma provoca do pela separação conjugal. O garçom estava errado. A explicação só podia ser outra, de percepção mais complexa pois Benildo não aparentava ser alguém com transtornos mentais. Ali, à minha frente, bebendo, a pequenos goles, o café cremoso, cortando com os dedos pedaçinhos de pão de queijo a levando-os à boca, era a imagem da normalidade . Um funcionário aposentado lanchando com um amigo ao cair da tarde.<br />
- Você deveria pedir ao juiz mudança no critério de fixação da pensão –<br />
sugeri.<br />
Mostrou interesse em saber como. Contei-lhe que também era divorciado e que enfrentara, muitos anos antes, problema semelhante ao dele. A pensão, que pagava a meu filho e não à ex-esposa, equivalia a um terço de meus rendimentos líquidos. Achando que eu mentia sobre os ganhos reais, a mulher vivia pedindo informações , via judicial,sobre eles. Até que um dia a Justiça aceitou meu pedido para que a pensão fosse calculada de outra forma. Foi fixada em dois salários mínimos e meio por mês. Assim, mesmo que eu viesse a ter meus rendimentos triplicados, a pensão continuaria a mesma, aumentando somente quando houvesse reajustes do salário mínimo.<br />
- Claro que o novo sitema tem seus inconvenientes. Por exemplo: mesmo que seus rendimentos diminuam, continuará pagando mensalmente o mesmo valor . E caso venha a ficar desempregado, a obrigação mensal será igual.. Como você é aposentado, acho que este não será um problema.<br />
- Como o senhor sabe que sou aposentado?<br />
Para uma resposta satisfatória tive de falar da cena que presenciara de manhã no Bar Carioca e dos esclarecimentos dados pelo garçom.. Sua reação foi previsível:<br />
- Então o senhor, como muita gente aqui na cidade, também deve achar que sou meio maluco?<br />
- Bem...<br />
- Não precisa justificar-se. Eu também acharia se estivesse em seu lugar. Mas saiba que tudo o que falei para aquele grupo de vereadores é o que penso. É bem provável que se eu vivesse no século 19, nos tempos do anarquismo, estaria jogando bombas e causando catástrofes, como aquele anarquista que assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando e provocou a Primeira Guerra Mundial. É claro que os tempos são outros e não tenho idade nem saúde para sair soltando granadas por aí. Mas nada impede que eu diga publicamente àqueles que estão no poder ou que querem chegar a ele, no caso os políticos, o que penso da inutilidade e da nocividade dos governos. Divirto-me quando vou embora, sem lhes dar chances de contestarem meus argumentos. Os que me conhecem, nem tentam. Sabem que é tempo perdido.<br />
Toda essa explicação era dada com a tranquilidade e simplicidade de gestos a que já estava me habituando.<br />
- Bem, não vou prendê-lo mais. Saiba que serei sempre grato pelo que fez hoje. Recuperar meus documentos foi o de menos. O senhor arriscou a vida por mim, pois estes moleques costumam ser violentos nestas ocasiões.<br />
- Realmente, preciso mesmo ir.<br />
Dei-lhe meu cartão, despedimo-nos e, enquanto rodava serra acima, refletindo sobre tudo aquilo, lamentei ter me retirado sem saber a verdadeira razão pela qual , de uns anos para cá, como ele próprio dissera, Benildo passara a nutrir desprezo por qualquer forma de governo, a ponto de ter aquele comportamento incomum.</div>
<br />
<div>
<br />
Os esclarecimentos vieram em forma de carta, que recebi quase um ano depois, quando Benildo e sua esquisitice já não faziam parte de minhas lembranças.<br />
<em>Prezado senhor<br />Quando receber esta carta, já não estarei mais aqui. Não se impressione: não tenho nenhuma doença terminal, nem pretendo matar-me.A esta altura, estou em Portugal, onde reside uma tia minha, enviuvada recentemente e que convidou-me a morar com ela, em sua quinta. Como já não tenho nada que me prenda ao Brasil, aceitei a oferta.<br />Não esqueci nosso primeiro e último encontro. Além da gratidão pelo seu feito, senti-me na obrigação moral de lhe contar minha história recente. Por quê? Porque foi a única pessoa nos últimos anos que me concedeu real atenção e a quem, contrariando meus hábitos, revelei alguma coisa de minha vida pessoal.<br />Casei-me há 10 anos. Dila era filha de um vereador, conhecêmo-nos em uma dessas solenidades de prefeitura e câmara municipal. Atraiu-me primeiro sua beleza: não era nenhuma modelo, mas satisfazia plenamente às minhas pouco exigentes expectativas quanto à estética feminina Com os meses de convivência, surgiram as demais identificações. Agradava-me sobretudo a valorização que ela dava e meus mínimos atos. Isso fazia grande bem à minha auto-estima, não só por partir de mulher que eu amava, mas por causa de minha personalidade. Sempre fui pessoa reservada, tímida, previsível, voltada para a leitura, o que não me deu muita cultura, nem notoriedade, mas aumentou-me a capacidade de autocrfítica e maior conscientização sobre a própria mediocridade. Dila fazia com que me sentisse melhor. E menos rigoroso em minhas autoanálises. Não é preciso dizer que os primeiros tempos de casamento foram felizes, pois eles sempre são. Meu vencimentos na prefeitura, se não nos permitiam uma vida de fausto, possibilitavam o conforto característico dos pequenos burocratas públicos.<br />Depois, começaram as contrariedades, causadas, principalmente, por problemas financeiros.Tivemos dificuldades, decorrentes, em parte, pela crise conjuntural do país, em parte por meu espírito pouco prático, que me levou a algumas bobagens financeiras. Dila passou a queixar-se da falta de dinheiro, não para as coisas essenciais ( alimentação, vestuário, etc), mas para outros gastos. Dizia que suas amigas sempre possuíam as melhores roupas, faziam as melhores viagens, que os móveis, as casas, os carros dos conhecidos eram sempre melhores que os nossos; que eu era acomodado. As críticas, de início tímidas, apenas caracterizadas por queixas, foram tornando-se explícitas. Surpreendeu-me, um a dia, a primeira qualificação direta: “ Você é um acomodado!”. Teve um forte impacto sobre minha sensibilidade já propensa ao autodescrédito. Imagine Dila, a quem eu tanto amava e cujos elogios sempre contribuiram para inflar-me o ego, chamando-me de acomodado. Quando, porém, o conceito evoluiu para “ incompetente”, o desconforto transformou-se em desconsolo..<br />O tempo passava e não via como mudar a situação. Não podia suportar a permanente desaprovação de Dila, mas, ao mesmo tempo, como sair daquilo? Sou advogado , tenho até registro na OAB, mas quando e como iria exercer a profissão, se meu regime de trabalho na Prefeitura era de dedicação exclusiva? Comentava isso com Dila, que sempre tinha algum argumento com o qual expunha , ou minha acomodação, ou minha incompetência. Podia- dizia- prestar concurso para outro órgão público; podia sair da Prefeitura e passar a advogar. Qualquer coisa era melhor do que aquele marasmo em que vivíamos, provocado pelas dificuldades financeiras.<br />Eu não queria arriscar. Não entendia por que, a Dila, a situação mostrava-se tão calamitosa. Não tínhamos nosso próprio apartamento, em bairro decente? Não nos alimentávamos bem? Não tínhamos automóvel ( já gasto pelo tempo, é verdade)? Não fazíamos nossas viagens anuais , durante as minhas férias, a Campos de Jordão ou Litoral Norte? Quanta gente não tinha casa própria, carro, passava fome e até estava desempregada?A tais ponderações, ela respondia com uma frase que atirava-me ao mais fundo dos fossos: “ É só a isso que sua incompetência pode nos levar?<br />Amava Dila e talvez ame-a ainda. Doía-me, mais do que tudo, saber que já não confiava em mim e , o que é pior, dizia isso de maneira cada vez mais agressiva e implacável.<br />Foi quando ocorreu o milagre. Um daqueles rotineiros jogos de loteria, que fazia todas as sextas-feiras antes de ir para casa, para o descanso de fim de semana, foi premiado.A quantia, se não me fazia milionário, permitiria que eu solucionase todos os problemas financeiros presentes e vivesse uma vida folgada no futuro. Fiquei zonzo ao constatar tanta sorte. A sensação de felicidade era até angustiante. Pensava em Dila. Agora ela teria melhores roupas que suas amigas; poderíamos ter um carro novo e muito melhor; móveis novos, até uma casa nova.Faríamos viagens ao Exterior. Como Dila seria feliz e como eu ficaria feliz com isso!.<br />Não bebo nada alcóolico,mas achei que merecia comemorar o fato com pelo menos uma latinha de cerveja. Não sei se foi por causa do efeito do álcool, mesmo na pequena quantidade ingerida; não sei se foi devido à simples pausa na lanchonete antes de ir para a casa: a verdade é que um instante de reflexão conseguiu abrir caminho em meio a euforia. Ocorreu-me que a boa nova não faria Dila necessariamente mudar de idéia quanto à minha competência como provedor de um lar. É claro que ficaria feliz com o que acabara de ocorrer, mas isso seria atribuído somente à sorte, uma incrível e providencial sorte. Mais nada. Talvez meu único mérito consistisse em ter feito o jogo, mas eu não fazia isso rotineiramente há tantos anos? Qual a novidade, o espírito de iniciativa?.<br />Se o senhor não acha possível que alguém possa ficar triste logo após ganhar na loteria , acredite agora.: eu fiquei Não por muito tempo pois, logo a seguir, veio-me o plano.<br />Não revelei nada a Dila. No outro dia ,entrei em contato com minha mãe, que, desde a viuvez, morava sozinha, em um velho sítio da família, em Miracatu, no Vale do Ribeira, e convenci-a assumir a propriedade do bilhete premiado. Eu cuidaria de acompanhá-la à Caixa Econômica e ajudá-la em todos os tramites burocráticos em casos assim. Em contrapartida, ela me daria os cartões de saques de aplicações, depósitos, etc, com as respectivas senhas. Por que escolhi minha mãe? Por razões óbvias. Não poderia entregar uma fortuna daquelas a um desconhecido. Como não tenho irmãos, mais dia, menos dia, todo dinheiro viria ter às minhas mãos por herança. Nada mais seguro e mais secreto. Tudo foi feito sem o conhecimento de Dila, é claro.<br />O dinheiro permitia uma renda mensal três vezes maior do que ganhava na prefeitura.De imediato,saquei uma quantia considerável, com a qual melhorei as condições do sítio, de onde minha mãe não pretendia mudar-se. Dei-lhe todo c onforto que merecia, além de assegurar-lhe uma quantia mensal muito maior do que a irrisória pensão de viúva.<br />Comecei a seguir, em casa, ao projeto de “ ascensão financeira graças à minha competência”. Disse, inicialmente, que havia conquistado uma vaga de assistente em um escritório de advocacia. Só precisava trabalhar aos sábados ou à noite , em casa mesmo. Isso aumentaria meus ganhos. Os primeiros recursos decorrentes deste trabalho, ainda modestos, não animaram muito Dila, que continuou insatisfeita com nossa precariedade econômica. Mas isso estava nos meus planos. Minha ascensão profissional teria de ser gradativa, para não dar margem a desconfianças. Em virtude das novas relações profissionais decorrentes da tal consultoria, seria natural que passasse a receber propostas de novos trabalhos. Foi o que dei a entender uns dois meses depois. Passei a a retirar mais dinheiro das aplicações. E assim por diante. À proporção que inventava um novo serviço, uma nova consultoria, etc, aumentava o valor de minhas retiradas . Cheguei a comprar um escritório no centro da cidade, mas informei que apenas alugara as salas. Para dar maior credibilidade às minhas muitas atribuições, passei a vir mais tarde para casa, permanecendo algumas horas no escritório após o expediente na prefeitura . Às vezes, ficava sábados inteiros lá, dando conta de uma suposta carga de serviços pendentes. Dila nunca procurava enfronhar-se sobre o que eu fazia, o que não constituia novidade, pois em todos nossos anos de casados nunca se preocupou muito com detalhes sobre meu trabalho.<br />Fiz questão que conhecesse o escritório e volta e meia a levava até lá, a pretexto de pegar algum papel, uma pasta.<br />Passados os meses, já sentia na forma como me tratava a confiança restaurada, mais do que isso, admiração . O Benildo acomodado, incompetente, morrera. Creia-me: mais do que todo o conforto que o dinheiro me proporcionava, era isso que me fazia feliz; foi por isso que arquitetei tão inusitado plano.Trocamos de apartamento, de carro, de móveis, viajávamos, íamos a espetáculos, cuidávamos melhor de nossa aparência, enfim, fazíamos sem preocupações as coisas boas que o dinheiro proporciona<br />A essa altura, o senhor deve estar curioso sobre como preenchia o tempo em que ficava fora de casa, no escritório ou em viagens, fingindo trabalhar. Nada que me desabonasse moralmente, asseguro-lhe. E não poderia ser de outra forma, pois Dila era a mulher a quem amava e a quem dedicava toda minha lealdade. Aproveitava os momentos do falso trabalho para fazer coisas de que gostava, meio idiotas, das quais Dila nunca compartilharia. Passava horas na Gibiteca do Boqueirão lendo revistas em quadrinhos antigos; visitava sebos, fazendo algo maravilhoso que é folhear livros velhos, em busca de antigos recados, remotas anotações; fazia viagens para ver sítios arqueológicos, prédios históricos,múmias.<br />Mas um dia, tudo acabou. O governo federal, para combater a inflação, congelou por tempo indeterminado, todos os ativos do País. Ninguém poderia mais sacar rendimentos de aplicações financeiras. Das contas correntes, só era permitido retirar uma quantia mínima ou salários. .<br />Não é difícil imaginar o resto. Precisei revelar a Dila a origem de meus recursos. Consegui provar o acerto na loteria, a abertura das contas e as aplicações. Mas, desgraçadamente, não a convenci de meus reais propósitos. Como acreditar que alguém tivesse idéia tão maluca somente para recuperar a credibilidade pessoal perante a esposa? Não. Provavelmente tinha outra mulher ou outras mulhres. Jamais acreditaria que, nas horas ou dias que passava ausente de casa , a pretexto de trabalhar, estaria fazendo aquelas coisas idiotas de que lhe falava. Quem escondia da esposa ter ganho um elevado prêmio da loteria, esconderia qualquer outra coisa.Não. Se, antes, desacreditava de minha competência para manter um lar, agora não confiava em minha fidelidade e integridade moral. Pediu o divórcio.<br />Entende, agora, porque detesto governos?</em></div>
Paulo Motahttp://www.blogger.com/profile/06776229925043050954noreply@blogger.com1