quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

O QUARTO DAS COISAS QUEBRADAS






Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.
Era uma vez uma princesa. A mais linda das princesas, diziam seus contemporâneos. Não tinha olhos  azuis,nem negros, nem verdes, nem castanhos e, por isso, rezavam as crônicas, tinha o mais belo entre os olhares já vistos. Seus cabelos não eram pretos, nem louros, nem ruivos, tampouco castanhos , o que tornava-lhes a tonalidade a mais maravilhosa entre todas.
A pele , longe de ter a alvura da neve; o negrume da noite sem lua; ou a  perfeita mescla entre o  mais escuro dos abismos e o mais claro dos dias, era, por sua indefinição,  a mais agradável ao olhar e a mais desejável ao toque entre tudo o que, até então, cobrira o corpo de uma mulher.
A princesa não era boa, nem má, nem complacente,, o que a tornava  seu trato com as demais  pessoas o mais justo e agradável que se pode ter com um ser humano.Não  muito inteligente,nem inculta, tampouco de dotes  intelectuais medianos, a princesa tinha a maior das sabedorias, diziam os arautos do reino.
Era amada e admirada, portanto,não pelo que a definiria, a partir de critérios pré-estabelecidos há séculos, ,mas pela soma de todas as indefinições positivas já registradas.
A FERA
Era uma vez uma fera.Ninguém, sabia como era porque ninguém a tinha visto. Sabia-se apenas que era uma fera e que vivia no castelo da Princesa, em uma prisão que, dizia-se, jamais houvera  alguém construído até então. Apenas no castelo da princesa havia tal cadeia e era por isso que a fera era mantida ali.
Entre os que freqüentaram o castelo,contava-se, muitas foram as vítimas da fera e perguntava-se, então, por que a princesa assim o permitia? Os sábios do reino explicavam que  a princesa era a única pessoa capaz de conter a fera, mas  nem sempre ela o conseguia. Em tais circunstâncias, não era possível que a jovem sequer impedisse que o monstro atacasse mesmo pessoas a quem ela devotava afeição.
Deveriam,  então, os súditos preocupar- se com a existência da  fera, já que ,paradoxalmente, a única pessoa que tinha condições para prendê-la nem sempre podia mantê-la presa?
Os sábios tranqüilizavam-nos. Pelo que se sabia, a maior parte das vítimas vivia perto da princesa. Não que eventualmente a besta deixasse de afligir  súditos mais  distantes, contudo,  os casos foram tão esporádicos  que poucos eram os que podiam citá-los. Duvidava-se até que existissem.  Tal constatação se, por um lado tranqüilizava o reino, por outro levava à quase certeza de que estar perto da princesa era o mesmo que estar próximo do perigo.
Não  à toa , devido à isso,  a princesa era solitária. A não ser por alguns criados,  poucos se aproximavam da jovem.  E entre os que  o fizeram, dizia-se,  ninguém ficou imune ao ataque da besta.   
E por causa das investidas da fera, comentava-se, houve quem morresse; quem ficasse aleijado; quem ficasse pobre; triste ou desamparado. Ninguém,entretanto, conseguiu contato com qualquer uma das vítimas .E a explicação mais frequente era de que não  se tratava de pessoas do reino, pois estes não ousavam transpor as muralhas do castelo, conhecedoras  do perigo que encerravam.Seriam, em sua maioria, nobres estrangeiros, pretendentes à mão da princesa e ainda ignorantes quanto às histórias de medo.
E o povo lamentava que tão boa, tão linda e tão inteligente princesa fosse condenada à solidão por algo que só ela podia abrigar, mas que não podia conter.
Por que a fera não atacava a princesa? Foi para obter resposta a tal pergunta e para evitar que esse ataque um dia pudesse ocorrer que surgiu...
O PRÍNCIPE
Era um príncipe como todos os príncipes, belo e heróico. Vinha de outro reino e passava  apenas de viagem. Não ficou, a exemplo de tantos viajantes que por ali erravam, no desconhecimento da história da princesa e da fera. E, como todo príncipe heróico, não se conformou em saber que os súditos eram indiferentes ao destino da jovem . Não porque não a amassem ou admirassem, mas porque entendiam que uma princesa é  invulnerável a  perigos. Ou talvez por acharem que   sempre surgem príncipes  dispostos a salvá-las . Como este, fazendo-lhes perguntas .
Como todo príncipe heróico, cedeu à compulsão de resgatá-la a seus possível  algoz. Apresentou-se no castelo  e ofereceu seus serviços. Livrá-la-ia da fera  que a isolava do mundo e das pessoas e poderia ceifar-lhe a própria vida.
 A princesa sorriu  e, ao príncipe, pareceu ter nascido o  sol entre seus lábios.
“Fera!”- admirou-se ela. Ora, isso era apenas uma dessas muitas histórias que surgem da ignorância dos súditos sobre a vida de seus senhores. Como príncipe, sem dúvida, ele sabia como essas coisas acontecem e, depois, saem do controle, transformando-se em lendas, mitos, que  tudo tentam explicar.
“Mas e as pessoas que entraram no castelo e depois não apareceram mais” ?  - indagou  o príncipe. E a princesa, o sol de novo nos lábios, explicou que não houve nenhum desaparecimento. Os visitantes simplesmente vieram e foram embora, a maioria sem ser vista, já que era gente nobre, que não vive se expondo. Sim, algumas deles eram pretendentes à sua mão e houve até  arremedos de romances, mas que pouco significaram.
E ao lhe dar as explicações, a princesa, ao mesmo tempo em que procurava ,com os lábios,tranqüilizá-lo  e convencê-lo da desnecessidade de qualquer ato heróico,  com o olhar e o sorriso luminoso transmitia-lhe mensagens de sedução.
Apaixonaram-se.
UMA NOITE
As primeiras semanas foram idílicas, como não poderia deixar de ser entre um príncipe e uma princesa sob o teto de um mesmo castelo.
Mas então houve aquela noite. Aquela em que o príncipe, acordando altas horas, não viu a princesa a seu lado, no leito. Quase ao mesmo tempo, ouviu, vindo de alguma outra ala do castelo,  sons de vozes e de algo sendo  jogado ao chão.
Saiu do quarto, mas nem mesmo havia percorrido todo o corredor,  surge a princesa. Plácida como sempre, calma como sempre, sorriso de sol como sempre. Explicou que não ocorrera nada demais. Também ouvira barulhos estranhos e fora verificar,junto aos  criados, quem os fizera. Mas nada encontraram. Gatos, talvez.
OUTRA NOITE
Objetos batendo violentamente contra paredes, gritos. Não havia dúvidas de que  a estranha sinfonia da noite seguinte não poderia ser atribuída a ruídos ocasionais de animais noturnos.
E a princesa também não estava na cama.
Entretanto, o príncipe não viu nas expressões dos criados com quem cruzou nos corredores e a quem perguntava, insistentemente, pela princesa, sinais de abalos maiores do que os mostrados na noite anterior,quando o barulho fora então atribuído a ( quem sabe?) gatos.
E não diferente era a expressão da princesa, que encontrou, meia hora depois, olhando, aparentemente distraída, por  uma das janelas do castelo, o pátio interno,onde nada havia a não ser sombras.
Apenas que, daquela vez, ela não deu nenhuma explicação. Pediu-lhe, docemente, tomando-lhe a mão em gesto suave,que retornassem ao quarto .
Mas ao príncipe não passou despercebida a ausência do sol, daquela luz que dela acompanhava o sorriso.A princesa queria poupá-lo de alguma coisa, concluiu. Seria da fera, a tão decantada besta que o fizera aproximar-se do castelo, dela e ,por fim,  entrecruzarem-se as vidas?
Não iria, galante que era, interrogá-la sobre isso. Não iria, também,  precavido que era, arriscar-se a ofendê-la, demonstrando não acreditar em suas palavras tranqüilizadoras sobre a inexistência do monstro.
E OUTRA NOITE
Então, em outra noite, sem esperar por sinfonias perturbadoras, o príncipe, após certificar-se de que a princesa dormia profundamente e não o veria sair, embrenhou-se por corredores, porões, sótãos, enfim, pelas entranhas ainda não lhe reveladas do castelo. Encontraria a cela especial onde a fera abrigava-se  e a aniquilaria para sempre, livrando sua amada  da condição de guardiã de tão terrível ameaça.
Horas depois,  cansado de infrutíferas buscas, movendo-se cautelosamente para não acordar a princesa, viu-se em um  corredor até então não percorrido e com uma única porta.Mexer na maçaneta foi gesto impulsivo e surpreendeu-se ao notar que não estava trancada. Abriu, estendendo o olhar sobre um  salão amplo ,  maior do que o maior dos quartos do castelo ; aquele que desfrutava com a princesa.
O luar, infiltrando-se por entre as cortinas de duas amplas janelas, permitia ver uma perfeita definição do caos. Espalhados por todos os espaços possíveis, havia objetos quebrados;  utensílios de cozinha, cadeiras, bancos, mesas, vasos, abajures, e centenas de outras coisas inidentificáveis, tal o estado de destruição em que se encontravam. 
Ao príncipe ficou claro, desde logo, que não se tratava de um cômodo cenário de destruição. Era, sim, um deposito de coisas destruídas, em outros pontos do castelo, e levadas até ali. Por quê?
Muitas perguntas, poucas respostas, muitas frustrações e  estranhezas. E, notava-o agora,muito cansaço físico. Achou um espaço, entre as quinquilharias, em um canto de parede , sentou-se e o sono não tardou a chegar, súbito como um desmaio.
Ao abrir os olhos, era o amanhecer. A luz dos primeiros raios de sol , forçando a entrada por entre as grandes cortinas,era mais forte que o brilho do luar da noite anterior, o que tornava possível, agora, vislumbrar melhor a situação caótica do cômodo. Tornava   mais definidos os objetos espalhados por todos os cantos.
Tentou  levantar-se,  mas desistiu ao notar alguém entrando no recinto, vagarosamente. O príncipe entendeu logo o motivo da cautela: a porta estava entreaberta. Quando deixou-se dominar pelo sono, na noite anterior, não lhe passou pela cabeça recostá-la novamente .
Natural despertar desconfiança na
A CRIADA
Era a mais idosa das serviçais do castelo, sexagenária, que exercia a governança .Não era difícil concluir ser assídua frequentadora do local, visto a surpresa demonstrada ante a porta entreaberta. O que não diria quando visse o príncipe ali, às primeiras horas da manhã, sentado no chão,  entre objetos quebrados?
 Levantou-se, rapidamente. Notou, na criada, certo estremecimento ao vê-lo. Porém, reconhecendo-o, logo se recompôs. Décadas de prestação de serviços  à nobreza sem dúvida contribuíram para tal autocontrole, pensou o príncipe.

“ Desculpa, senhor,não o tinha visto”, disse, com voz quase inaudível e preparava-se para sair,quando ele a chamou.
“ Espera, não vá agora. Preciso de umas explicações”, disse o príncipe. Ela voltou-se e  se postou , braços estendidos ao longo do corpo, em atitude de escuta.
E o príncipe perguntou, exigindo prontas respostas. Primeiro indagou-lhe sobre o que significava aquele quarto, repleto de destroços. E,é claro, sobre as existência da fera;onde se escondia e como chegar ao esconderijo.
Sem hesitar, a mulher confirmou que: sim, havia uma fera no castelo; sim, ela ficava presa em cela nunca antes construída; sim, apenas a princesa tinha o segredo da abertura da cela; sim, a fera era mantida a maior parte do tempo presa; sim, a princesa era impotente para contê-la na prisão em certas circunstâncias; sim, os objetos  amontoados naquele quarto eram resultado de quebradeiras promovidas pela fera, quando saia de sua prisão;   sim,  visitantes do castelo, em contato com a fera, desapareceram logo depois.
 Não,os criados jamais viram a fera. Sabiam que existia e da existência e conseqüências de seus atos  por revelações da própria princesa, Assim como tinham sido por  meio dela tranqüilizados quanto ao risco de serem vítimas. Não, dissera-lhe a princesa, jamais a fera lhes faria mal; nem ao povo do reino, enquanto ela,sua senhora, não saísse do castelo.
Ao príncipe tais explicações resultaram em inconformismo.  Como deixar em mãos de sua frágil princesa a tarefa de controlar tal monstro? Não entendiam todos que, se a princesa sucumbisse- suprema tragédia - todo o reino poderia sucumbir?
Manifestou a apreensão em voz alta e a criada limitou-se a fitá-lo, o olhar traduzindo total impossibilidade de eliminar as suas dúvidas e medos.
Resolveu obter esclarecimentos totais diretamente com a princesa.Falaria do quarto atulhado de objetos quebrados, para lembrá-la de que não adiantava esconder-lhe a existência do monstro.
Mas não conseguiu. A princesa fechou-lhe a porta , recusando qualquer contato com ele. E a velha criada, momentos depois, transmitiu-lhe o recado final: a princesa pedia-lhe que fosse embora. E não sairia do quarto enquanto isso não ocorresse.
Como aceitar decisão tão súbita e inexplicável.Que mal  fizera? Era errado tentar proteger a pessoa amada? Não, era um dever. E como acreditava que a princesa também o amava, que tomava tal decisão movida por algo muito forte, que não ousava revelar, o príncipe resolveu resistir ao pedido. Comunicou á criada que não partiria sem antes falar com a princesa e ouvir diretamente dela os motivos de sua decisão.
A princesa mostrou-se irredutível quanto a um encontro pessoal. Ao príncipe não restou senão ir embora naquele mesmo dia. Não voltaria à vila dos súditos; evitaria o contato popular.  Não queria submeter-se ao constrangimento de ter de explicar porque um príncipe falhara em defender uma princesa, contrariando todas as tradições do gênero.
Como defender quem não quer ser defendido? Ele sonhava em conquistar, definitiva mente,  a mão da princesa com o gesto heróico de livrá-la,  e a seu reino, da fera. Mas ela parecera auto-suficiente  quanto a essa missão. Forçoso foi concordar que, se  até ali a fera não a vitimara e tampouco a  seus súditos,é porque essa auto-suficiência era um fato.Mas,e os demais forasteiros que ,dizia-se, não teriam resistido aos ataques do monstro? Outro mistério. No quarto de objetos quebrados, havia apenas restos de utensílios,enfeites e móveis  domésticos; nenhuma peça de vestuário ou de armas que poderiam atestar a passagem, pelo castelo, de homens de fora.
Partiria. Se a princesa preferia o perigo a ele, é porque não lhe tinha apreço suficiente, sendo assim, inglória  a luta por seu coração.Estava pronto a enfrentar monstros e homens, jamais a indiferença.
PELA JANELA
Pela janela da mais alta as torres , a princesa viu o principe partir.Entre os pretendentes aos quais ela consentiu  , por algum tempo, compartilhar de sua intimidade, não seria este que conquistaria definitivamente seu coração.  E para eliminar qualquer possibilidade de que isso viesse a ocorrer, dispensou-o abruptamente, como fizera com os demais. 
Consumada a partida do príncipe, desceu aos subterrâneos  de uma das alas mais isoladas do castelo. Ali,em recanto onde a luz do sol jamais chegara, estava a cripta e o sarcófago do marquês, o homem a quem um dia dedicou todo seu amor e por quem foi plenamente correspondida. Aquele que a amou acima de todas as suas imperfeições e que, por isso mesmo, ali jazia .
Chorou mais uma vez a dor da saudade; reafirmou sua lealdade, confessou o medo de amar de novo e da perda.
Inevitável  sentir  o suplício de recordar um dia de muitos anos atrás quando, em mais um de seus incontroláveis acessos de fúria, que ela nunca conseguia conter, muito menos explicar , repetindo a cena tantas vezes ocorrida em seu conturbado relacionamento, atirou-lhe pesada escova de cabelos, de marfim, atingindo-lhe o crânio , matando-o instantaneamente.
Nada apaga a dor, a saudade, o arrependimento. Jurou que isso não mais se repetiria e, doravante, lutaria contra toda a possibilidade de  amar alguém, para não ocorrer  de matá-lo, em um de seus acessos de fúria, surgidos a qualquer pretexto, de origem desconhecida , que nem sempre conseguia conter e que resultava na destruição de tantos e tantos objetos ,paciente e dedicadamente amontoados pela velha criada  no quarto das coisas quebradas.
Sim, havia uma fera no castelo. E o que o príncipe e os antecessores pretendentes jamais saberiam é que sua cela, jamais construída antes e nem sempre suficiente para contê-la , era o coração da princesa.