terça-feira, 5 de julho de 2016

TEATRO DE COINCIDÊNCIAS





Não se viam há cinco anos, desde os tempos da faculdade e, agora, encontraram-se naquela lanchonete no final do expediente.
-  Como estão as coisas? Quais as novidades?]
- Estou aí, na luta. E você?
E começaram a falar dos rumos que suas vidas tomaram, após se formarem; lembraram coisas e pessoas  da época estudantil, riram; emocionaram-se.
- Incrível coincidência encontrá-lo.  É a primeira vez que entro neste bar.
- De vez em quando passo por aqui, para tomar um café, comer alguma coisa rápida.
- Mesmo assim , acho uma tremenda  coincidência.
- Se você acha isso coincidência, o que dizer, então dos ganhadores da megasena,que acertam aqueles seis números, quando as chances de isso ocorrer são de uma em 52 milhões?
-  Pensando assim,você tem razão.
- É por isso que não me surpreendo muito com as coincidências da vida. Presenciei uma aparentemente incrível no dia do fumacê.   
- Dia do fumacê?
- É. Quando aquela nuvem tóxica cobriu todo o centro comercial. Lembra?
-  É mesmo. Parecia coisa de ficção científica. Só faltou aparecerem zumbis canibais. Felizmente, eu estava na orla.
- Pois eu estava aqui no centro,  olho do furacão.Mal tive tempo de me abrigar, antes que a fumaça me envolvesse.Em menos de dez minutos, tudo ficou coberto pela neblina.
- E a coisa era mesmo tão perigosa assim?
-  Ninguém morreu, mas quem esteve exposto à nuvem ficou com olhos ardendo, ânsia de vômito, dor de cabeça,  de barriga. Quem viu de longe, pensou que era algum incêndio, pois a fumaça começou a aparecer  pelos  lados do porto.
-  Um primo meu, que também estava no centro, disse que foi uma loucura. Em pouco tempo, tudo começou a escurecer e a correria foi geral. Meio cegos, a garganta queimando,  as pessoas  procuravam qualquer local onde se abrigar.Lojas e recepções de prédios logo ficaram lotadas e começaram a fechar as portas.
-  Eu e mais dois senhores, já idosos, tivemos sorte de entrar em uma pequena lanchonete.
- Ainda bem.
- Aí aconteceu a primeira coincidência. A lanchonete não atenderia o público naquele dia por causa de reforma no equipamento de refrigeração. Mas, justo naquele momento, a porta estava aberta pela metade porque o gerente esperava os técnicos que fariam os reparos. Por isso, eu e os dois senhores  pudemos entrar. Alertei o gerente   sobre a nuvem de fumaça e ele, imediatamente, baixou a porta.
“ Ficamos, então, nós quatro, estranhos entre si, confinados na lanchonete, que é dessas pequenas, parecendo mais um corredor. Um balcão comprido; uma fileira de mesas e cadeiras, em resumo”.
“ Pedi ao gerente para ligar a TV, a fim de  sabermos o que estava acontecendo lá fora. Se não eram apavorantes, as notícias também não tranqüilizavam  ninguém.O gás não era mortal para quem se expusesse a ele em áreas livres e por pouco tempo.Mas não estava se espalhando rapidamente devido à falta de ventos. Por isso as autoridades não sabiam quando as pessoas poderiam sair de seus abrigos. Sorte que vivemos a era do celular e  quase todo mundo pôde avisar os parentes e amigos sobre o que estava acontecendo”.
- E vocês quatro tiveram que se enturmar, mesmo sendo estanhos.
- No começo, os dois senhores ficaram calados. Até compreensível. Estavam mais preocupados em ligar para os parentes. O diálogo inicial foi entre eu e o gerente. Claro que o assunto era a nuvem tóxica..
“Procuramos notícias atualizadas na TV. Uma delas teve especial importância: a de que a fumaça tóxica foi causada pela reação química entre a água da chuva e uma substância estocada  em um contêiner no porto. A água entrou por um buraco na caixa de aço. Quando a fumaça saiu, em grandes rolos, a reação aumentou pelo contato dela com a chuva”.
“Por isso, as autoridades pediam para que as pessoas evitassem colocar lenços umedecidos na boca ou nariz; ou vedar aberturas das moradias ou lojas com panos molhados, ao contrário do que se costuma fazer   em situações semelhantes  . Para garantir melhor o cumprimento dessas  recomendações, cortou-se o abastecimento de água para toda a área coberta pela fumaça .”
- E em caso de  sede?
- Bem, no nosso caso, havia água no reservatório do prédio.Isso não seria problema.
- De qualquer maneira, se faltasse água, podiam contar com os refrigerantes da lanchonete, né?
- Não.O comerciante tinha esvaziado o refrigerador e levado todo o estoque de bebidas para casa, a fim de dar espaço para os técnicos fazerem os reparos. Mas havia em uma prateleira, em frente  do balcão, algumas garrafas de vinho tinto. Depois  de algum tempo conversando bobagens com o gerente e trocando apenas monossílabos com os dois senhores,que continuavam caladões, sentados cada um a uma mesa,  pedi uma garrafa . Convidei todos a compartilhar a bebida comigo , mas, de imediato, só o gerente concordou em beber um cálice”.
“ Uns 20 minutos depois, um dos senhores resolveu tomar um gole. O outro acompanhou-o e, passada uma hora, o conteúdo de dois litros já tinha ido embora.”
“ Os dois senhores bebiam pouco, o consumo maior era meu e do gerente Via-se que não eram pessoas acostumadas à bebida alcoólica .Logo, estavam meio vermelhos, mais agitados e com a língua solta”.
Primeiro começaram a falar sobre o acidente , apresentar  teses sobre causas e consequências.  Depois, o diálogo ficou mais pessoal. Foi quando nos apresentamos uns aos outros.
Um dos senhores, calvo e magro, era jornalista,aposentado  ; o outro, de mesma altura, porém mais forte e com cabelos completo,era engenheiro.À proporção que o tempo ia passando,talvez pela identificação inicial da idade,  passaram a ocupar a mesma mesa e conversar entre si.Tendo o gerente se afastado por uns instantes para se concentrar no seu refrigerador quebrado,fiquei só e virei  assistente e ouvinte  de um diálogo que só posso chamar de “ teatro de coincidências”. 
JORNALISTA
E pensar que eu não vinha para o centro hoje. Vim só para comprar um presente para meu neto,que faz aniversário.
ENGENHEIRO
Você é avô?Também sou.Meu neto tem quatro anos,  e o seu?
JORNALISTA
Seis. E pediu uma camisa do Santos FC de presente. O que a gente não faz por um neto, heim? Eu,corintiano, entrei em uma loja e comprei uma camisa do Santos.
ENGENHEIRO
Também sou assim. Para o neto, tudo. Dizem que sou o avô mais babão da Cidade. E olha que ele nem é meu neto biológico. É filho da minha enteada,que é filha de minha segunda mulher. 
JORNALISTA
É o meu caso.Sou casado pela segunda vez e este meu neto é filho de minha enteada.Mas tenho um neto de verdade, filho de minha filha biológica, de meu primeiro casamento.
ENGENHEIRO
Eu também.Quando me separei de minha primeira esposa, meu filho,  que na época tinha quatro anos, ficou com ela.Hoje,casado, tem um filho de três anos.Mas minha  relação maior é com meu neto “postiço”.
JORNALISTA
É o que acontece comigo.O filho de minha enteada é como se fosse meu neto de verdade. Com o outro, não tenho nenhuma convivência.
ENGENHEIRO
Não sei quanto a você,mas, no meu caso,isso acontece porque meu filho, depois de meu divórcio, nunca mais conviveu comigo. Minha ex-mulher casou de novo, saiu da cidade e o padrasto acabou me substituindo no lugar de pai.
JORNALISTA
Vivi situação parecida. Mas minha ex-mulher, depois do seu segundo casamento, continuou vivendo por aqui, mesmo. Como nossa separação foi muito conflituosa, ela criou muitas dificuldades para minha convivência com minha filha, que acabou se apegando ao padrasto.
ENGENHEIRO 
Ou seja: nós dois acabamos sendo substituídos como pais e avôs.

- Pararam de falar por  instantes, interrompidos pelo aviso de edição extra, na TV,sobre o acidente.A informação era de que os bombeiros, impossibilitados de retirar o produto químico do contêiner,decidiram jogar água nele. Procuravam, assim, acelerar a reação química e acabar com o estoque do produto, dando fim rápido à neblina tóxica..
  “A notícia não me interessou muito. Significava, apenas,que iríamos ficar por mais algum tempo confinados.O que me impressionava mesmo era o conjunto de coincidências envolvendo a vida daqueles meus dois momentâneos companheiros. Os dois estavam em seus segundos casamentos; tinham filhos das primeiras uniões. Separaram-se e casaram-se de novo com mulheres que também tinham filhos de casamentos anteriores.  Seus filhos cresceram, casaram e tiveram filhos. As enteadas, também.Em conseqüência, tanto um, como o outro, tinham filhos e netos postiços e filhos e netos biológicos.Mas relacionavam-se melhor com os netos postiços porque conviveram pouco com os filhos legítimos, após os respectivos divórcios. Estes, por sua vez, apegaram-se mais aos padrastos, que acabaram ocupando os lugares de pais e avôs.Confuso de explicar, mas nem por isso incrível, por ser história comum de dois homens unidos por acaso naquele mesmo lugar”.
“Encerrado o flash extraordinário de notícias, reataram o diálogo. Aos  vapores do vinho, somava-se, agora, como motivador de mais conversa, a descoberta de tantas coisas em comum em suas vidas.Que mais coincidências estariam por vir?”
JORNALISTA
 Nas poucas vezes em que mantive contato com minha filha, depois dela adulta, ela disse que fui omisso como pai e que o padrasto foi sua referência masculina, por isso  ela o tinha como verdadeiro pai.
ENGENHEIRO-
E você não tentou explicar as dificuldades criadas pela mãe dela  para relacionar-se normalmente com ela?
JORNALISTA
 Para falar a verdade, nem tentei muito. Acho que por um certo sentimento de culpa, por não ter lutado com mais contundência por minha filha, quando houve o divórcio e ela ainda era pequena. Sei lá. Mesmon quando já era adolescente, eu achava que não adiantaria, porque ela, a meu ver, não entenderia nada e ainda estava sobre forte influência da mãe. Acreditava que,quando  ficasse adulta, poderíamos nos entender melhor. Mas parece que a coisa desandou e, agora, ficou irreversível. Nunca tivermos essa conversa.
ENGENHEIRO
  Isso é duro. Mas, caso sirva de consolo, acho que minha situação foi pior.Porque nunca mais falei ou o vi meu filho desde que ele era pequeno. É constrangedor dizer, mas  se ele passar por aqui, agora, eu não o reconheceria. Nem ele a mim.E pelo que soube,  ele não tem o menor interesse de conhecer o pai.Como sua filha, ele considera seu verdadeiro pai  o padrasto.Como conseqüência disso tudo,também não conheço meu neto.
JORNALISTA-
Pelo menos conheço a Belina e ela a mim.
- Fez-se curto silêncio entre os dois. Do lugar em que me encontrava, no extremo do balcão, não pude ter certeza, mas parecia-me que ambos tinham os olhos marejados.O engenheiro baixou por instantes a cabeça, a mão direita na fronte, mas levantou-a rapidamente,  e, como que tendo uma lembrança súbita, perguntou, em voz alta:
ENGENHEIRO
 Belina? Você disse Belina?
JORNALISTA-
É. Belina. Este é o nome de minha filha. Foi escolhido pela minha ex-mulher.
ENGENHEIRO
 Mas este é o nome  de minha enteada.
JORNALISTA
 Vai me dizer que o nome de sua mulher é Lena?
ENGENHEIRO
 Isso mesmo!
JORNALISTA
 Este é o nome de minha ex-mulher.

- Você entende, agora, porque lhe disse que essa era uma história de incríveis coincidências?
- É mesmo. O engenheiro, então, era o padrasto da filha do jornalista. Só falta, agora, você me dizer que o jornalista era o padrasto do filho do engenheiro.
- Não. Não chegamos a tanto. Mas você há de convir que é muita coincidência, não?
- E após a revelação, o que aconteceu?
- Você não vai acreditar, mas ficaram meio catatônicos. Não sei se foi a revelação; ou efeitos do vinho, mas calaram-se e evitavam fitar-se. Cada um olhou para um lado, como se, agora, tivessem que medir as próximas palavras. Foi quando a  vinheta anunciando notícia extraordinária se fez ouvir de novo  e nossas atenções voltaram-se  para a TV. Informava-se que a fumaça havia se dispersado e as pessoas já podiam retornar às suas casas.
“ Atraído pelo diálogo entre os dois homens, eu tinha até esquecido do motivo que levaram  nós quatro a ficarmos confinados naquela lanchonete. E lamentava,  intimamente, que a conversa fosse interrompida após a importante revelação.
 Os dois homens demonstravam não querer continuá-la. Levantaram-se, fazendo menção para sair. Não esboçavam qualquer intenção de despedir-se de mim e do gerente do bar, o que,além de tudo,revelava ingratidão pela acolhida que ele nos dera.
“ Não me contive. Mesmo que me considerassem um intrometido,eu precisava  opinar sobre o que ouvira.
- Desculpem-me, mas acompanhei toda a conversa de vocês dois.Acho que, além de ter servido como desabafo, ela pode ter maior utilidade para os dois.
Viraram-se para mim, interrogações nos olhares, resumindo uma só pergunta: “ Como assim?”
-   Sua filha, senhor, jornalista, despreza-o porque o considera omisso. Ama o padrasto porque ele foi sempre presente na vida dela. Entretanto, ela não sabe que o filho do padrasto dela faz a mesma acusação ao pai. Ou seja: o senhor é um mito para sua enteada,, mas é desprezível para seu filho.
Continuaram olhando-me com  expressão de “E dai?” Continuei:
- Então,o senhor engenheiro poderia explicar à sua enteada que o pai dela fora vítima das mesmas restrições que ele. Ambos podiam até ter sua parcela de culpa- falta de brios para reivindicar direitos de pai; excesso de cuidados para não melindrar os filhos ainda pequenos- mas não podiam ser os principais responsáveis pelo afastamento deles. Essa culpa teria de ser dividida com as respectivas mães.
Calei-me e os observei-os por alguns segundos. Olhavam-me, demonstrando compreensão do que eu havia dito, mas portavam-se como se não tivessem  nenhuma energia para tomar alguma atitude a respeito. Continuei:
- E você, senhor jornalista, poderia, em contrapartida, procurar o filho do engenheiro e contar a mesma história.Fazer a comparação entre os dois casos.Mostrar que se ele foi um excelente padrasto, poderia ser, também, um excelente pai se lhes fossem dadas as oportunidades de convivência.
“ Timidamente, parecendo mais querer uma orientação do quer uma resposta, o jornalista rompeu o silêncio:
- E você acha que,nesta altura da vida, isso vai resolver alguma coisa? Vai nos tornar  amados por nossos filhos como somos amados por nossos enteados? Sermos amados por nossos netos biológicos, como somos amados por nossos netos adotados?
- Não posso dar certeza quanto a isso- respondi-  mas pelo menos seus filhos terão novas versões sobre as quais refletir, além daquela que ouviram a vida toda de suas mães.Claro que não deixarão de amar seus padrastos, mas terão a chance de retomada de um diálogo que poderá fazer com que possam abrir seus corações também para vocês.
“ O  vazamento de gás, a convivência  temporária naquele salão com desconhecidos; a revelação sobre a proximidade de suas famílias e, não mais importante, a quantidade incomum de vinho que tomaram, sem dúvida explicam a reação, pelo menos para mim inesperada, que tiveram a seguir.
ENGENHEIRO
 Obrigado.
JORNALISTA
A gente se vê por aí.
 E, lentamente, meio cambaleantes, sem mesmo olhar um para o outro, saíram do salão. Uma vez na calçada, dirigiram-se paras lados opostos. A mim restou agradecer ao gerente da lanchonete  a acolhida, tentar pagar pelo vinho consumido ( o que ele recusou) e ir embora, também.
- Será que eles voltaram a se encontrar? Que colocaram em prática suas sugestões?
-  Como saber? Mas esta cidade é pequena e qualquer dia vão tropeçar um no outro, por aí..E, sem os vapores do vinho, a conversa poderá ter  rumo diferente.
- Bem, hora de ir embora. Meu carro está na praça.
- O meu está em um estacionamento
- Sem coincidência, portanto.

- Tchau.
- Tchau.