Não se viam há cinco
anos, desde os tempos da faculdade e, agora, encontraram-se naquela lanchonete
no final do expediente.
- Como estão as coisas? Quais as novidades?]
- Estou aí, na luta. E
você?
E começaram a falar dos
rumos que suas vidas tomaram, após se formarem; lembraram coisas e pessoas da época estudantil, riram; emocionaram-se.
- Incrível coincidência
encontrá-lo. É a primeira vez que entro
neste bar.
- De vez em quando
passo por aqui, para tomar um café, comer alguma coisa rápida.
- Mesmo assim , acho
uma tremenda coincidência.
- Se você acha isso
coincidência, o que dizer, então dos ganhadores da megasena,que acertam aqueles
seis números, quando as chances de isso ocorrer são de uma em 52 milhões?
- Pensando assim,você tem razão.
- É por isso que não me
surpreendo muito com as coincidências da vida. Presenciei uma aparentemente
incrível no dia do fumacê.
- Dia do fumacê?
- É. Quando aquela
nuvem tóxica cobriu todo o centro comercial. Lembra?
- É mesmo. Parecia coisa de ficção científica.
Só faltou aparecerem zumbis canibais. Felizmente, eu estava na orla.
- Pois eu estava aqui no
centro, olho do furacão.Mal tive tempo
de me abrigar, antes que a fumaça me envolvesse.Em menos de dez minutos, tudo ficou
coberto pela neblina.
- E a coisa era mesmo
tão perigosa assim?
- Ninguém morreu, mas quem esteve exposto à
nuvem ficou com olhos ardendo, ânsia de vômito, dor de cabeça, de barriga. Quem viu de longe, pensou que era
algum incêndio, pois a fumaça começou a aparecer pelos
lados do porto.
- Um primo meu, que também estava no centro,
disse que foi uma loucura. Em pouco tempo, tudo começou a escurecer e a
correria foi geral. Meio cegos, a garganta queimando, as pessoas
procuravam qualquer local onde se abrigar.Lojas e recepções de prédios
logo ficaram lotadas e começaram a fechar as portas.
- Eu e mais dois senhores, já idosos, tivemos
sorte de entrar em uma pequena lanchonete.
- Ainda bem.
- Aí aconteceu a
primeira coincidência. A lanchonete não atenderia o público naquele dia por
causa de reforma no equipamento de refrigeração. Mas, justo naquele momento, a
porta estava aberta pela metade porque o gerente esperava os técnicos que
fariam os reparos. Por isso, eu e os dois senhores pudemos entrar. Alertei o gerente sobre a nuvem de fumaça e ele,
imediatamente, baixou a porta.
“ Ficamos, então, nós
quatro, estranhos entre si, confinados na lanchonete, que é dessas pequenas,
parecendo mais um corredor. Um balcão comprido; uma fileira de mesas e
cadeiras, em resumo”.
“ Pedi ao gerente para
ligar a TV, a fim de sabermos o que
estava acontecendo lá fora. Se não eram apavorantes, as notícias também não
tranqüilizavam ninguém.O gás não era
mortal para quem se expusesse a ele em áreas livres e por pouco tempo.Mas não
estava se espalhando rapidamente devido à falta de ventos. Por isso as
autoridades não sabiam quando as pessoas poderiam sair de seus abrigos. Sorte
que vivemos a era do celular e quase
todo mundo pôde avisar os parentes e amigos sobre o que estava acontecendo”.
- E vocês quatro
tiveram que se enturmar, mesmo sendo estanhos.
- No começo, os dois
senhores ficaram calados. Até compreensível. Estavam mais preocupados em ligar
para os parentes. O diálogo inicial foi entre eu e o gerente. Claro que o
assunto era a nuvem tóxica..
“Procuramos notícias
atualizadas na TV. Uma delas teve especial importância: a de que a fumaça
tóxica foi causada pela reação química entre a água da chuva e uma substância
estocada em um contêiner no porto. A
água entrou por um buraco na caixa de aço. Quando a fumaça saiu, em grandes
rolos, a reação aumentou pelo contato dela com a chuva”.
“Por isso, as
autoridades pediam para que as pessoas evitassem colocar lenços umedecidos na
boca ou nariz; ou vedar aberturas das moradias ou lojas com panos molhados, ao
contrário do que se costuma fazer em
situações semelhantes . Para garantir
melhor o cumprimento dessas recomendações,
cortou-se o abastecimento de água para toda a área coberta pela fumaça .”
- E em caso de sede?
- Bem, no nosso caso,
havia água no reservatório do prédio.Isso não seria problema.
- De qualquer maneira,
se faltasse água, podiam contar com os refrigerantes da lanchonete, né?
- Não.O comerciante
tinha esvaziado o refrigerador e levado todo o estoque de bebidas para casa, a
fim de dar espaço para os técnicos fazerem os reparos. Mas havia em uma
prateleira, em frente do balcão, algumas
garrafas de vinho tinto. Depois de algum
tempo conversando bobagens com o gerente e trocando apenas monossílabos com os
dois senhores,que continuavam caladões, sentados cada um a uma mesa, pedi uma garrafa . Convidei todos a
compartilhar a bebida comigo , mas, de imediato, só o gerente concordou em
beber um cálice”.
“ Uns 20 minutos
depois, um dos senhores resolveu tomar um gole. O outro acompanhou-o e, passada
uma hora, o conteúdo de dois litros já tinha ido embora.”
“ Os dois senhores
bebiam pouco, o consumo maior era meu e do gerente Via-se que não eram pessoas
acostumadas à bebida alcoólica .Logo, estavam meio vermelhos, mais agitados e
com a língua solta”.
Primeiro começaram a
falar sobre o acidente , apresentar
teses sobre causas e consequências.
Depois, o diálogo ficou mais pessoal. Foi quando nos apresentamos uns
aos outros.
Um dos senhores, calvo
e magro, era jornalista,aposentado ; o
outro, de mesma altura, porém mais forte e com cabelos completo,era
engenheiro.À proporção que o tempo ia passando,talvez pela identificação
inicial da idade, passaram a ocupar a
mesma mesa e conversar entre si.Tendo o gerente se afastado por uns instantes
para se concentrar no seu refrigerador quebrado,fiquei só e virei assistente e ouvinte de um diálogo que só posso chamar de “ teatro
de coincidências”.
JORNALISTA
E pensar que eu não
vinha para o centro hoje. Vim só para comprar um presente para meu neto,que faz
aniversário.
ENGENHEIRO
Você é avô?Também
sou.Meu neto tem quatro anos, e o seu?
JORNALISTA
Seis. E pediu uma
camisa do Santos FC de presente. O que a gente não faz por um neto, heim?
Eu,corintiano, entrei em uma loja e comprei uma camisa do Santos.
ENGENHEIRO
Também sou assim. Para
o neto, tudo. Dizem que sou o avô mais babão da Cidade. E olha que ele nem é
meu neto biológico. É filho da minha enteada,que é filha de minha segunda
mulher.
JORNALISTA
É o meu caso.Sou casado
pela segunda vez e este meu neto é filho de minha enteada.Mas tenho um neto de
verdade, filho de minha filha biológica, de meu primeiro casamento.
ENGENHEIRO
Eu também.Quando me
separei de minha primeira esposa, meu filho,
que na época tinha quatro anos, ficou com ela.Hoje,casado, tem um filho
de três anos.Mas minha relação maior é
com meu neto “postiço”.
JORNALISTA
É o que acontece
comigo.O filho de minha enteada é como se fosse meu neto de verdade. Com o
outro, não tenho nenhuma convivência.
ENGENHEIRO
Não sei quanto a
você,mas, no meu caso,isso acontece porque meu filho, depois de meu divórcio,
nunca mais conviveu comigo. Minha ex-mulher casou de novo, saiu da cidade e o
padrasto acabou me substituindo no lugar de pai.
JORNALISTA
Vivi situação parecida.
Mas minha ex-mulher, depois do seu segundo casamento, continuou vivendo por
aqui, mesmo. Como nossa separação foi muito conflituosa, ela criou muitas
dificuldades para minha convivência com minha filha, que acabou se apegando ao
padrasto.
ENGENHEIRO
Ou seja: nós dois
acabamos sendo substituídos como pais e avôs.
- Pararam de falar
por instantes, interrompidos pelo aviso
de edição extra, na TV,sobre o acidente.A informação era de que os bombeiros,
impossibilitados de retirar o produto químico do contêiner,decidiram jogar água
nele. Procuravam, assim, acelerar a reação química e acabar com o estoque do
produto, dando fim rápido à neblina tóxica..
“A notícia não me interessou muito.
Significava, apenas,que iríamos ficar por mais algum tempo confinados.O que me
impressionava mesmo era o conjunto de coincidências envolvendo a vida daqueles
meus dois momentâneos companheiros. Os dois estavam em seus segundos
casamentos; tinham filhos das primeiras uniões. Separaram-se e casaram-se de
novo com mulheres que também tinham filhos de casamentos anteriores. Seus filhos cresceram, casaram e tiveram
filhos. As enteadas, também.Em conseqüência, tanto um, como o outro, tinham
filhos e netos postiços e filhos e netos biológicos.Mas relacionavam-se melhor
com os netos postiços porque conviveram pouco com os filhos legítimos, após os
respectivos divórcios. Estes, por sua vez, apegaram-se mais aos padrastos, que acabaram
ocupando os lugares de pais e avôs.Confuso de explicar, mas nem por isso
incrível, por ser história comum de dois homens unidos por acaso naquele mesmo
lugar”.
“Encerrado o flash
extraordinário de notícias, reataram o diálogo. Aos vapores do vinho, somava-se, agora, como
motivador de mais conversa, a descoberta de tantas coisas em comum em suas
vidas.Que mais coincidências estariam por vir?”
JORNALISTA
Nas poucas vezes em que mantive contato com
minha filha, depois dela adulta, ela disse que fui omisso como pai e que o
padrasto foi sua referência masculina, por isso
ela o tinha como verdadeiro pai.
ENGENHEIRO-
E você não tentou
explicar as dificuldades criadas pela mãe dela para relacionar-se normalmente com ela?
JORNALISTA
Para falar a verdade, nem tentei muito. Acho
que por um certo sentimento de culpa, por não ter lutado com mais contundência
por minha filha, quando houve o divórcio e ela ainda era pequena. Sei lá.
Mesmon quando já era adolescente, eu achava que não adiantaria, porque ela, a meu
ver, não entenderia nada e ainda estava sobre forte influência da mãe. Acreditava
que,quando ficasse adulta, poderíamos
nos entender melhor. Mas parece que a coisa desandou e, agora, ficou
irreversível. Nunca tivermos essa conversa.
ENGENHEIRO
Isso é duro. Mas, caso sirva de consolo, acho
que minha situação foi pior.Porque nunca mais falei ou o vi meu filho desde que
ele era pequeno. É constrangedor dizer, mas
se ele passar por aqui, agora, eu não o reconheceria. Nem ele a mim.E
pelo que soube, ele não tem o menor interesse
de conhecer o pai.Como sua filha, ele considera seu verdadeiro pai o padrasto.Como conseqüência disso tudo,também
não conheço meu neto.
JORNALISTA-
Pelo menos conheço a
Belina e ela a mim.
- Fez-se curto silêncio
entre os dois. Do lugar em que me encontrava, no extremo do balcão, não pude
ter certeza, mas parecia-me que ambos tinham os olhos marejados.O engenheiro
baixou por instantes a cabeça, a mão direita na fronte, mas levantou-a
rapidamente, e, como que tendo uma
lembrança súbita, perguntou, em voz alta:
ENGENHEIRO
Belina? Você disse Belina?
JORNALISTA-
É. Belina. Este é o
nome de minha filha. Foi escolhido pela minha ex-mulher.
ENGENHEIRO
Mas este é o nome de minha enteada.
JORNALISTA
Vai me dizer que o nome de sua mulher é Lena?
ENGENHEIRO
Isso mesmo!
JORNALISTA
Este é o nome de minha ex-mulher.
- Você entende, agora,
porque lhe disse que essa era uma história de incríveis coincidências?
- É mesmo. O
engenheiro, então, era o padrasto da filha do jornalista. Só falta, agora, você
me dizer que o jornalista era o padrasto do filho do engenheiro.
- Não. Não chegamos a
tanto. Mas você há de convir que é muita coincidência, não?
- E após a revelação, o
que aconteceu?
- Você não vai acreditar,
mas ficaram meio catatônicos. Não sei se foi a revelação; ou efeitos do vinho,
mas calaram-se e evitavam fitar-se. Cada um olhou para um lado, como se, agora,
tivessem que medir as próximas palavras. Foi quando a vinheta anunciando notícia extraordinária se
fez ouvir de novo e nossas atenções
voltaram-se para a TV. Informava-se que
a fumaça havia se dispersado e as pessoas já podiam retornar às suas casas.
“ Atraído pelo diálogo
entre os dois homens, eu tinha até esquecido do motivo que levaram nós quatro a ficarmos confinados naquela
lanchonete. E lamentava, intimamente, que
a conversa fosse interrompida após a importante revelação.
Os dois homens demonstravam não querer
continuá-la. Levantaram-se, fazendo menção para sair. Não esboçavam qualquer
intenção de despedir-se de mim e do gerente do bar, o que,além de tudo,revelava
ingratidão pela acolhida que ele nos dera.
“ Não me contive. Mesmo
que me considerassem um intrometido,eu precisava opinar sobre o que ouvira.
- Desculpem-me, mas
acompanhei toda a conversa de vocês dois.Acho que, além de ter servido como desabafo,
ela pode ter maior utilidade para os dois.
Viraram-se para mim,
interrogações nos olhares, resumindo uma só pergunta: “ Como assim?”
- Sua filha, senhor, jornalista, despreza-o
porque o considera omisso. Ama o padrasto porque ele foi sempre presente na
vida dela. Entretanto, ela não sabe que o filho do padrasto dela faz a mesma
acusação ao pai. Ou seja: o senhor é um mito para sua enteada,, mas é
desprezível para seu filho.
Continuaram olhando-me
com expressão de “E dai?” Continuei:
- Então,o senhor
engenheiro poderia explicar à sua enteada que o pai dela fora vítima das mesmas
restrições que ele. Ambos podiam até ter sua parcela de culpa- falta de brios
para reivindicar direitos de pai; excesso de cuidados para não melindrar os
filhos ainda pequenos- mas não podiam ser os principais responsáveis pelo
afastamento deles. Essa culpa teria de ser dividida com as respectivas mães.
Calei-me e os
observei-os por alguns segundos. Olhavam-me, demonstrando compreensão do que eu
havia dito, mas portavam-se como se não tivessem nenhuma energia para tomar alguma atitude a
respeito. Continuei:
- E você, senhor
jornalista, poderia, em contrapartida, procurar o filho do engenheiro e contar
a mesma história.Fazer a comparação entre os dois casos.Mostrar que se ele foi
um excelente padrasto, poderia ser, também, um excelente pai se lhes fossem
dadas as oportunidades de convivência.
“ Timidamente,
parecendo mais querer uma orientação do quer uma resposta, o jornalista rompeu
o silêncio:
- E você acha que,nesta
altura da vida, isso vai resolver alguma coisa? Vai nos tornar amados por nossos filhos como somos amados por
nossos enteados? Sermos amados por nossos netos biológicos, como somos amados
por nossos netos adotados?
- Não posso dar certeza
quanto a isso- respondi- mas pelo menos
seus filhos terão novas versões sobre as quais refletir, além daquela que
ouviram a vida toda de suas mães.Claro que não deixarão de amar seus padrastos,
mas terão a chance de retomada de um diálogo que poderá fazer com que possam
abrir seus corações também para vocês.
“ O vazamento de gás, a convivência temporária naquele salão com desconhecidos; a
revelação sobre a proximidade de suas famílias e, não mais importante, a
quantidade incomum de vinho que tomaram, sem dúvida explicam a reação, pelo
menos para mim inesperada, que tiveram a seguir.
ENGENHEIRO
Obrigado.
JORNALISTA
A gente se vê por aí.
E, lentamente, meio cambaleantes, sem mesmo
olhar um para o outro, saíram do salão. Uma vez na calçada, dirigiram-se paras
lados opostos. A mim restou agradecer ao gerente da lanchonete a acolhida, tentar pagar pelo vinho consumido
( o que ele recusou) e ir embora, também.
- Será que eles
voltaram a se encontrar? Que colocaram em prática suas sugestões?
- Como saber? Mas esta cidade é pequena e
qualquer dia vão tropeçar um no outro, por aí..E, sem os vapores do vinho, a conversa
poderá ter rumo diferente.
- Bem, hora de ir
embora. Meu carro está na praça.
- O meu está em um
estacionamento
- Sem coincidência, portanto.
- Tchau.
- Tchau.
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