sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

NINGUÉM GOSTARIA DE ESTAR ALI



Ema não gostaria de estar ali. Saíra da cidade havia mais de 10 anos e sabe ter sido este tempo insuficiente para que fossem esquecidas as mágoas de certas pessoas, principalmente dos parentes do ex-marido Jadiel.
Quando ela pediu o divórcio, a recepção já não fora das mais agradáveis. A sogra e as duas cunhadas romperam completamente as relações , o que significou sequer cumprimentá-la ou conviver com seu casal de filhos, sobrinhos e netos delas.
A situação tornou-se insustentável quando, três anos depois, casou-se novamente. A indiferença transformou-se em hostilidade, nem tanto por parte da sogra. Mas não foram poucas as vezes  em que ouviu desaforos das cunhadas, mesmo em locais públicos.
Não foi à toa, portanto, que resolveu  mudar-se para outra cidade, decisão que exigiu a venda da casa em que residira desde o primeiro casamento. Quando se separaram, Jadiel concordou em que ficasse morando ali, com os filhos. Ele não quis a partilha imediata do bem, o que exigiria a sua venda e divisão do dinheiro. Propôs a permanência dela na casa até que surgissem condições mais favoráveis para o negócio. O mercado imobiliário estava em recessão e, além disso, a casa, inacabada ( faltava concluir o segundo pavimento), não teria bom preço, caso decidissem vendê-la na época.
Ocorre que a decisão dela de casar-se de novo, sem dúvida, acrescentara um ingrediente maior ao estado de beligerância permanente em que vivia com os parentes do marido, refletindo negativamente na vida dela e dos filhos. Jadiel já superara os traumas do  divórcio e passara a cuidar da própria vida, com pouca interferência na  da ex-esposa. Mudara-se para outro bairro, convivia regularmente com os filhos, dentro dos limites permitidos pelas regras da separação legal, e mantinha com a ex-companheira uma convivência tranquila.
Quando ela lhe falara da venda da casa – a assinatura dele era imprescindível para a transação- e lhe dissera o principal motivo, não opôs obstáculos. Ema chegou a observar , nele,certo alívio com a decisão e não foi difícil concluir porquê. Jadiel sofreria ao ver a  ex-mulher coabitar com outro companheiro no imóvel que construíra com tanta tenacidade e sacrifícios .  
Paradoxal que a moradia ficasse sendo, após o divórcio e até sua venda, uma espécie de elo entre Ema e Jadiel. Porque fora o imóvel uma das fortes razões do desgaste do relacionamento entre os dois e posterior separação. Construí-la fora uma obsessão de Jadiel, que não suportava a idéia de morar em uma edícula nos fundos da casa dos sogros, sua primeira residência logo após o casamento.
Desde solteiro era proprietário de  um terreno e foi nele que decidiu edificar a casa própria.  E não seria uma casa qualquer. Projetou um sobrado, dois dormitórios por andar, quarto de empregada, várias salas e saletas, cozinha ampla, despensa, varandas, garagem, além de outras dependências menores.
Para realizar seu sonho, passou a fazer horas extras e a trabalhar aos domingos e feriados na indústria, onde era chefe do setor de operações. Não tirava férias, preferia recebê-las em dinheiro. Por quatro longos anos não se soube, naquele lar, o que era um passeio, uma sobra de dinheiro para uma pequena extravagância . Tudo era investido na casa.
Concluídas as obras estruturais dos dois pavimentos, Jadiel concentrou esforços no acabamento do térreo, para onde se mudaram tempos depois. Concretizava-se, assim, seu primeiro propósito: deixar de morar de favor na edícula dos sogros. O sonho da casa completa demoraria um pouco mais.
Seria exagero, contudo, dizer que o longo período de sacrifícios em função da casa nova fora o único fator de desgaste do casamento entre Ema e Jadiel. Anos atrás, mesmo antes de começar  o projeto imobiliário,intensificara-se nele um hábito que trazia desde os tempos de solteiro: após o trabalho, parar em um bar, com os colegas da firma, antes de ir para casa. 
O que eram poucos minutos, o suficiente para um trago de cachaça e um copo de cerveja,destinados a, como dizia, relaxar e, de quebra, abrir o apetite para o jantar, foi aumentando ,chegando a virar horas. E o estado de Jadiel, ao voltar para casa, deixou de ser, na maioria dos dias, de relaxamento,  para  transformar-se em embriaguez.
Não, ele não era violento. Embriagado, apenas punha-se a  falar mais do que o habitual.Mas, é claro, nem de longe eram imperceptíveis o cheiro de álcool, tampouco irrelevantes a gradativa  pouca preocupação com a própria aparência, a falta de asseio pessoal e a quase nenhuma importância que passou a dar à rotina da casa.Chegar,jantar, dormir: essas foram suas únicas preocupações por anos, nos fins dos  dias.
As implicações de tudo isso na vida conjugal levaram inevitavelmente às discussões, ao desgaste pleno e a decisão dela de pedir o divórcio, o que o surpreendeu. Quando Ema fez a primeira menção neste sentido,não deu muita importância, talvez por estar meio “alto” quando a ouviu.Em uma segunda oportunidade, irritou-se e não quis falar no assunto. Na terceira, desculpou-se, disse que ira mudar de comportamento,mas nada aconteceu além da promessa.
Uma noite, ao chegar em casa, não encontrou ninguém. Ema deixara um recado, escrito, no qual comunicava sua ida, com as crianças, para a casa da mãe e que, dali em diante, seus contatos seriam por meio de um advogado.
Nas semanas que se seguiram, Jadiel  tentou a reconciliação, diretamente ou mediante  a interferência de amigos em comum,mas nada a  demoveu.Até que, por fim, conformou-se e a separação foi formalizada.
Tudo isso, para Ema, parecia ter-se esvanecido como neblina ao nascer  do sol, dez anos depois e com sua mudança para outra  cidade. Mas agora ela estava de volta. Contra a sua vontade, pois sabia que antigas feridas seriam reabertas. No mínimo, passaria por situações de constrangimento.  Decididamente, não gostaria de estar ali. Mas precisava estar. Por causa do ex-marido Jadiel.

Dona Edite não gostaria de estar ali. Aliás, Dona Edite não gostaria de estar em lugar nenhum que não fosse sua casa. Sempre fora assim e depois que o marido morreu, havia 30 anos, ficou pior, fazendo dos muros do quintal os limites do seu mundo.
Ela sabia que, de um jeito ou de outra, cruzaria com aquela mulher ( ela nunca pronunciava o nome de Ema) que tanto fizera infeliz o filho Jadiel. Que nunca dera valor para o homem trabalhador e responsável  que ele era, ligado sempre ao bem estar da família.
Dona Ester não conseguia imaginar que outra coisa mais uma mulher poderia querer de um marido, principalmente nestes tempos difíceis, em que todo mundo anseia por segurança na luta pela sobrevivência. E, afinal,  o que ela vira no homem, com quem se casou depois,  que era tão melhor do que em seu Jadiel?
Ela sofreu vendo o filho sofrer. Conhecia-o bem; sabia o quanto tinha o coração mole, era frágil nestas coisas sentimentais.Viu Jadiel, nos primeiros tempos após a separação,perder aquela energia,aquela disposição,  que o fazia lembrar o falecido pai. Não deixava de ir trabalhar, mas o fazia mecanicamente. Ausentava-se por longos períodos, coisa incomum antes, quando tinha o hábito de visitar a mãe pelo menos umas duas vezes por semana.
Dona Edite não desconhecia a queda de Jadiel por uma cachacinha nos fins do dia de trabalho  e temia que ele se entregasse ao álcool de uma vez,  descontrolando a própria vida. Não por acaso , quando ele desaparecia por períodos prolongados, pedia às duas filhas que fossem ao apartamento, onde o filho  morava sozinho, ver o que estava acontecendo.
 Ficou agradavelmente admirada quando elas informaram  que o irmão praticamente não bebia mais. Menos mal, pensava Dona Edite, que bem lembrava de uns tempos,no início de seu próprio casamento, em que o marido Joel  andara exagerando nos tragos,  exigindo até umas sessões nos Alcoólicos Anônimos para que a situação não se agravasse. A conversão ao evangelismo, tempos depois, assegurou a Joel a sobriedade para o resto da vida.
Ao pedir a separação, aquela mulher trouxera desequilíbrio para a harmonia familiar, tão cara a Dona Edite , visto que muitos projetos acabaram sendo abortados. Os netos passaram a conviver  muito pouco com a avó e as tias e, assim mesmo, quando Jadiel encontrava alguma disposição para levá-los à casa delas.
 Quando aquela mulher casou-se de novo, suas duas filhas impregnaram-se de tal raiva que passaram a hostilizar abertamente a ex-cunhada, provocando  um rompimento total de relações e o afastamento maior das crianças, que tornou-se definitivo quando  a ex-nora e seu  novo marido mudaram-se para outra cidade.
Ela não aprovava as hostilidades das filhas, que chegavam a xingar a ex-cunhada quando cruzavam com ela nas ruas,mas, como não compreender a revolta das irmãs ?
Sentia saudade dos netos, principalmente da menina Liane, tão bonita, tão inteligente, tão carinhosa. Dalto, o menino, bem mais novo que a irmã, era pequeno na época em que ainda moravam na cidade e um pouco arredio.  Liane já estaria uma moça hoje.
Dona Edite tirava, de  todas essas reflexões, apenas uma certeza: não gostaria de estar ali. Mas teria de estar. Por causa do filho Jadiel.

Liane não gostaria de estar ali. Isto não tinha relação com o pai, ou os parentes dele, com os quais nunca se importou muito. O problema era um possível reencontro com a mãe, a quem não via há anos.
Tinha 12 anos quando Ema e Jadiel divorciaram-se e a separação teve um impacto forte em seu comportamento. Até então, pré-adolescente, não prestara muita atenção no desgaste gradativo que a relação entre os pais sofria. A vida deles, afinal,  não diferia muito das de outros casais da vizinhança: homens trabalhando, as mulheres cuidando das coisas da casa e do controle direto dos filhos.
Consumada a separação,quando o pai teve de sair de casa e ela passou a ouvir da mãe que Jadiel fora o culpado por tudo,  Liane, de início , ficou confusa. Se o pai trabalhava; sustentava a família,  estava sempre por perto, não agredia a mulher, dava-se bem com a vizinhança, com os colegas de trabalho,  era culpado de quê? 
Sim, ela tinha consciência de que a mãe também era mulher de méritos,discreta, caseira,sempre trabalhando duro, cozinhando,  mantendo a casa limpa, filhos o marido asseados, o que fortalecia a questão: se ambos honravam seus deveres familiares e para com a sociedade, porque tiveram de se separar? 
 Nas visitas semanais do pai, nunca tivera a oportunidade de falar sobre isso. A postura de Jadiel, jamais tocando no assunto, impedia tal diálogo. Era como se ele admitisse a versão da ex-mulher  .
Passados dois anos, os conflitos da adolescência fizeram-se presentes , tornando-a mais rebelde. Nos atritos com a mãe, ela não perdia a oportunidade de evocar a figura do pai. Sempre que o fazia, sentia  que Ema ficava vulnerável. Eliane tornava-se, então, implacável: ameaçava fugir de casa, ir morar com Jadiel e acusava a mãe de ter sido a causadora da dissolução do lar.
E quando Ema revelou a existência de um novo homem em sua vida, a revolta de Liane exacerbou-se.   Não o tratava mal,mas fazia questão de demonstrar desagrado durante  sua presença ocasional na residência. Não o cumprimentava e, com frequência, assim que ele aparecia,saia de casa, batendo portas.
Quando a mãe comunicou-lhe a decisão de se casar novamente,explodiu. Como? Não tinha vergonha de colocar outro homem naquela casa, que seu pai construíra com tanto sacrifício? E ela e o irmão? Teriam de engolir  um novo pai? Gritou, xingou, trancou-se no quarto, imune aos apelos da mãe para que se acalmasse e a ouvisse.
Não lhe passou pela cabeça, então, ir à casa de Jadiel. Há muito tempo desistira de fazer do pai  aliado nas divergências com a mãe.Sua postura sempre neutra, apaziguadora, dava-lhe a certeza de que jamais poderia contar com ele.
Viu, então,só uma escolha: ir embora. E o fez, no dia de seu aniversário de 18 anos, dois meses após a discussão causada pela anúncio do casamento.
Foi morar na capital,  na casa de uma amiga, que, também por divergências com os pais,decidira emancipar-se um ano antes. Arranjou, de início, emprego em uma lanchonete; depois em uma loja, fez cursos e agora estava estabilizada como secretária de uma construtora, onde conheceu o companheiro, pondo fim a um período de relacionamentos efêmeros.
Nunca mais vira a mãe, o pai, nem o irmão.Amadurecera estes anos todos. Já entendia as motivações da Ema para separar-se de Jadiel. Aprendera que a vida de uma mulher não pode resumir-se a cuidar de filhos e marido, a não ser que ela opte por isso,o que não pareceu ser  o caso da mãe.Mas não condenava o pai que, a seu ver,  equivocou-se ao concentrar, na busca pela estabilidade material da família a condição para a estabilidade conjugal.  Não sentia mais, portanto, a intensa revolta anterior contra a mãe, nem a desilusão com o pai, que, na época, achava complacente demais.
 E por que não retomara suas relações com a família? Nem ela sabia responder. As  exigências  da sobrevivência absorveram-lhe as atenções e energias no início da vida independente. As demandas afetivas fizeram o mesmo a seguir. E o tempo encarregou-se de aumentar as distâncias.
Agora, Liane prevê  um reencontro inevitável e constrangedor com a mãe, a parte mais difícil do retorno à sua terra de origem.  E não sabe como reagirá . Por isso, não gostaria de estar ali. Só o fará por causa de seu pai, Jadiel.

Jadiel não gostaria de estar ali. Não por causa da ex-mulher, com quem as coisas já estavam bem resolvidas há tempos. Não era segredo para ninguém que ele, a não ser por alguma relutância no começo,o que, nestes casos é até comum, não criou maiores problemas para o processo do divórcio. E que fora além de suas responsabilidades legais, cedendo mais do que exigindo.
Quem o conhecia, sabia que muitas decisões dele levaram em conta o bem estar dos filhos, o que teria de passar, necessariamente, pelo bem estar de Ema.
A questão da casa, por exemplo. Se insistisse na partilha,o imóvel teria de ser vendido e a parte que caberia à mulher em dinheiro muito provavelmente  não seria suficiente para assegurar-lhe, e aos filhos, e mesmo padrão de moradia.Que eles ficassem na casa, até a situação do mercado imobiliário melhorar. 
Houve quem achasse que a transigência dele devia-se a um sentimento de culpa pela separação. Mas isto era algo que não o afligia. Não fizera , a seu ver, nada de tão grave que justificasse o fim do casamento. Aprendera, desde criança, que um homem casado deve ser trabalhador, prover o lar, ser fiel, tratar bem a mulher , dando segurança no presente e preparando o melhor  futuro para eles. Não considerara exagerado, portanto, sua obsessão pela construção da casa, mesmo considerando-se que isso o afastava do convívio familiar.Mas sendo um assalariado, como ganhar mais sem fazer horas extras e trabalhar em fins de semana e feriados? 
O que o fez  complacente para  com as justificativas de Ema para a  separação foi  o reconhecimento de que cometera erros de avaliação sobre o que uma mulher espera de um casamento. Deveria ter previsto que, para ser feliz com um homem, não bastam a uma mulher  casa,comida e roupa para vestir. Como atenuante para seus  equívoco, contudo, recordava-se sempre de que nunca fora sua intenção manter mulher e filhos  indefinidamente em regime de sacrifícios. Mas tinha por convicção que um homem deve pensar, antes de mais nada, em garantir um abrigo seguro para si e sua família. De nada adianta viajar, vestir-se bem, comer lautamente, vivendo na casa dos outros.
A  questão da bebida também era debitada por Jadiel em sua conta de equívocos. Mas abrandava sua consciência lembrar que os goles depois dos dias de trabalho não o faziam perder dia de serviço, nem o tornavam um homem agressivo em casa.
A filha também não seria razão para Jadiel sentir desprazer em estar ali. Sabia das mágoas dela por não tê-la apoiado ostensivamente  em suas desavenças com a mãe, nem quando ela decidira sair de casa. Justificara sua neutralidade no fato de que a rebeldia da filha era decorrência da instabilidade psicológica típica de adolescentes..Preferiu dar tempo ao tempo e fora surpreendido com sua fuga de casa.
Todas essas pessoas, ex-mulher, sogra, filha e outras mais, tinham seus motivos para não gostarem da idéia de estar ali. Ele também. Mas, entre todos,  era o único que não poderia evitá-lo. Afinal, era seu próprio velório.