Ema
não gostaria de estar ali. Saíra da cidade havia mais de 10 anos e sabe ter
sido este tempo insuficiente para que fossem esquecidas as mágoas de certas
pessoas, principalmente dos parentes do ex-marido Jadiel.
Quando
ela pediu o divórcio, a recepção já não fora das mais agradáveis. A sogra e as
duas cunhadas romperam completamente as relações , o que significou sequer
cumprimentá-la ou conviver com seu casal de filhos, sobrinhos e netos delas.
A
situação tornou-se insustentável quando, três anos depois, casou-se novamente.
A indiferença transformou-se em hostilidade, nem tanto por parte da sogra. Mas
não foram poucas as vezes em que ouviu
desaforos das cunhadas, mesmo em locais públicos.
Não
foi à toa, portanto, que resolveu
mudar-se para outra cidade, decisão que exigiu a venda da casa em que
residira desde o primeiro casamento. Quando se separaram, Jadiel concordou em
que ficasse morando ali, com os filhos. Ele não quis a partilha imediata do
bem, o que exigiria a sua venda e divisão do dinheiro. Propôs a permanência
dela na casa até que surgissem condições mais favoráveis para o negócio. O
mercado imobiliário estava em recessão e, além disso, a casa, inacabada (
faltava concluir o segundo pavimento), não teria bom preço, caso decidissem
vendê-la na época.
Ocorre
que a decisão dela de casar-se de novo, sem dúvida, acrescentara um ingrediente
maior ao estado de beligerância permanente em que vivia com os parentes do marido,
refletindo negativamente na vida dela e dos filhos. Jadiel já superara os
traumas do divórcio e passara a cuidar
da própria vida, com pouca interferência na
da ex-esposa. Mudara-se para outro bairro, convivia regularmente com os
filhos, dentro dos limites permitidos pelas regras da separação legal, e
mantinha com a ex-companheira uma convivência tranquila.
Quando
ela lhe falara da venda da casa – a assinatura dele era imprescindível para a
transação- e lhe dissera o principal motivo, não opôs obstáculos. Ema chegou a
observar , nele,certo alívio com a decisão e não foi difícil concluir porquê.
Jadiel sofreria ao ver a ex-mulher
coabitar com outro companheiro no imóvel que construíra com tanta tenacidade e
sacrifícios .
Paradoxal
que a moradia ficasse sendo, após o divórcio e até sua venda, uma espécie de
elo entre Ema e Jadiel. Porque fora o imóvel uma das fortes razões do desgaste
do relacionamento entre os dois e posterior separação. Construí-la fora uma
obsessão de Jadiel, que não suportava a idéia de morar em uma edícula nos
fundos da casa dos sogros, sua primeira residência logo após o casamento.
Desde
solteiro era proprietário de um terreno
e foi nele que decidiu edificar a casa própria.
E não seria uma casa qualquer. Projetou um sobrado, dois dormitórios por
andar, quarto de empregada, várias salas e saletas, cozinha ampla, despensa,
varandas, garagem, além de outras dependências menores.
Para
realizar seu sonho, passou a fazer horas extras e a trabalhar aos domingos e
feriados na indústria, onde era chefe do setor de operações. Não tirava férias,
preferia recebê-las em dinheiro. Por quatro longos anos não se soube, naquele
lar, o que era um passeio, uma sobra de dinheiro para uma pequena extravagância
. Tudo era investido na casa.
Concluídas
as obras estruturais dos dois pavimentos, Jadiel concentrou esforços no
acabamento do térreo, para onde se mudaram tempos depois. Concretizava-se,
assim, seu primeiro propósito: deixar de morar de favor na edícula dos sogros.
O sonho da casa completa demoraria um pouco mais.
Seria
exagero, contudo, dizer que o longo período de sacrifícios em função da casa
nova fora o único fator de desgaste do casamento entre Ema e Jadiel. Anos
atrás, mesmo antes de começar o projeto
imobiliário,intensificara-se nele um hábito que trazia desde os tempos de
solteiro: após o trabalho, parar em um bar, com os colegas da firma, antes de
ir para casa.
O
que eram poucos minutos, o suficiente para um trago de cachaça e um copo de
cerveja,destinados a, como dizia, relaxar e, de quebra, abrir o apetite para o
jantar, foi aumentando ,chegando a virar horas. E o estado de Jadiel, ao voltar
para casa, deixou de ser, na maioria dos dias, de relaxamento, para
transformar-se em embriaguez.
Não,
ele não era violento. Embriagado, apenas punha-se a falar mais do que o habitual.Mas, é claro,
nem de longe eram imperceptíveis o cheiro de álcool, tampouco irrelevantes a
gradativa pouca preocupação com a
própria aparência, a falta de asseio pessoal e a quase nenhuma importância que
passou a dar à rotina da casa.Chegar,jantar, dormir: essas foram suas únicas
preocupações por anos, nos fins dos
dias.
As
implicações de tudo isso na vida conjugal levaram inevitavelmente às
discussões, ao desgaste pleno e a decisão dela de pedir o divórcio, o que o
surpreendeu. Quando Ema fez a primeira menção neste sentido,não deu muita
importância, talvez por estar meio “alto” quando a ouviu.Em uma segunda
oportunidade, irritou-se e não quis falar no assunto. Na terceira,
desculpou-se, disse que ira mudar de comportamento,mas nada aconteceu além da
promessa.
Uma
noite, ao chegar em casa, não encontrou ninguém. Ema deixara um recado,
escrito, no qual comunicava sua ida, com as crianças, para a casa da mãe e que,
dali em diante, seus contatos seriam por meio de um advogado.
Nas
semanas que se seguiram, Jadiel tentou a
reconciliação, diretamente ou mediante a
interferência de amigos em comum,mas nada a
demoveu.Até que, por fim, conformou-se e a separação foi formalizada.
Tudo
isso, para Ema, parecia ter-se esvanecido como neblina ao nascer do sol, dez anos depois e com sua mudança
para outra cidade. Mas agora ela estava
de volta. Contra a sua vontade, pois sabia que antigas feridas seriam
reabertas. No mínimo, passaria por situações de constrangimento. Decididamente, não gostaria de estar ali. Mas
precisava estar. Por causa do ex-marido Jadiel.
Dona
Edite não gostaria de estar ali. Aliás, Dona Edite não gostaria de estar em
lugar nenhum que não fosse sua casa. Sempre fora assim e depois que o marido
morreu, havia 30 anos, ficou pior, fazendo dos muros do quintal os limites do
seu mundo.
Ela
sabia que, de um jeito ou de outra, cruzaria com aquela mulher ( ela nunca
pronunciava o nome de Ema) que tanto fizera infeliz o filho Jadiel. Que nunca
dera valor para o homem trabalhador e responsável que ele era, ligado sempre ao bem estar da
família.
Dona
Ester não conseguia imaginar que outra coisa mais uma mulher poderia querer de
um marido, principalmente nestes tempos difíceis, em que todo mundo anseia por
segurança na luta pela sobrevivência. E, afinal, o que ela vira no homem, com quem se casou
depois, que era tão melhor do que em seu
Jadiel?
Ela
sofreu vendo o filho sofrer. Conhecia-o bem; sabia o quanto tinha o coração
mole, era frágil nestas coisas sentimentais.Viu Jadiel, nos primeiros tempos
após a separação,perder aquela energia,aquela disposição, que o fazia lembrar o falecido pai. Não
deixava de ir trabalhar, mas o fazia mecanicamente. Ausentava-se por longos
períodos, coisa incomum antes, quando tinha o hábito de visitar a mãe pelo
menos umas duas vezes por semana.
Dona
Edite não desconhecia a queda de Jadiel por uma cachacinha nos fins do dia de
trabalho e temia que ele se entregasse
ao álcool de uma vez, descontrolando a
própria vida. Não por acaso , quando ele desaparecia por períodos prolongados,
pedia às duas filhas que fossem ao apartamento, onde o filho morava sozinho, ver o que estava acontecendo.
Ficou agradavelmente admirada quando elas
informaram que o irmão praticamente não
bebia mais. Menos mal, pensava Dona Edite, que bem lembrava de uns tempos,no início
de seu próprio casamento, em que o marido Joel
andara exagerando nos tragos,
exigindo até umas sessões nos Alcoólicos Anônimos para que a situação
não se agravasse. A conversão ao evangelismo, tempos depois, assegurou a Joel a
sobriedade para o resto da vida.
Ao
pedir a separação, aquela mulher trouxera desequilíbrio para a harmonia
familiar, tão cara a Dona Edite , visto que muitos projetos acabaram sendo
abortados. Os netos passaram a conviver
muito pouco com a avó e as tias e, assim mesmo, quando Jadiel encontrava
alguma disposição para levá-los à casa delas.
Quando aquela mulher casou-se de novo, suas
duas filhas impregnaram-se de tal raiva que passaram a hostilizar abertamente a
ex-cunhada, provocando um rompimento
total de relações e o afastamento maior das crianças, que tornou-se definitivo
quando a ex-nora e seu novo marido mudaram-se para outra cidade.
Ela
não aprovava as hostilidades das filhas, que chegavam a xingar a ex-cunhada
quando cruzavam com ela nas ruas,mas, como não compreender a revolta das irmãs
?
Sentia
saudade dos netos, principalmente da menina Liane, tão bonita, tão inteligente,
tão carinhosa. Dalto, o menino, bem mais novo que a irmã, era pequeno na época
em que ainda moravam na cidade e um pouco arredio. Liane já estaria uma moça hoje.
Dona
Edite tirava, de todas essas reflexões,
apenas uma certeza: não gostaria de estar ali. Mas teria de estar. Por causa do
filho Jadiel.
Liane
não gostaria de estar ali. Isto não tinha relação com o pai, ou os parentes
dele, com os quais nunca se importou muito. O problema era um possível
reencontro com a mãe, a quem não via há anos.
Tinha
12 anos quando Ema e Jadiel divorciaram-se e a separação teve um impacto forte
em seu comportamento. Até então, pré-adolescente, não prestara muita atenção no
desgaste gradativo que a relação entre os pais sofria. A vida deles,
afinal, não diferia muito das de outros
casais da vizinhança: homens trabalhando, as mulheres cuidando das coisas da
casa e do controle direto dos filhos.
Consumada
a separação,quando o pai teve de sair de casa e ela passou a ouvir da mãe que
Jadiel fora o culpado por tudo, Liane,
de início , ficou confusa. Se o pai trabalhava; sustentava a família, estava sempre por perto, não agredia a
mulher, dava-se bem com a vizinhança, com os colegas de trabalho, era culpado de quê?
Sim,
ela tinha consciência de que a mãe também era mulher de méritos,discreta,
caseira,sempre trabalhando duro, cozinhando,
mantendo a casa limpa, filhos o marido asseados, o que fortalecia a
questão: se ambos honravam seus deveres familiares e para com a sociedade,
porque tiveram de se separar?
Nas visitas semanais do pai, nunca tivera a
oportunidade de falar sobre isso. A postura de Jadiel, jamais tocando no
assunto, impedia tal diálogo. Era como se ele admitisse a versão da
ex-mulher .
Passados
dois anos, os conflitos da adolescência fizeram-se presentes , tornando-a mais
rebelde. Nos atritos com a mãe, ela não perdia a oportunidade de evocar a
figura do pai. Sempre que o fazia, sentia
que Ema ficava vulnerável. Eliane tornava-se, então, implacável: ameaçava
fugir de casa, ir morar com Jadiel e acusava a mãe de ter sido a causadora da
dissolução do lar.
E
quando Ema revelou a existência de um novo homem em sua vida, a revolta de
Liane exacerbou-se. Não o tratava
mal,mas fazia questão de demonstrar desagrado durante sua presença ocasional na residência. Não o
cumprimentava e, com frequência, assim que ele aparecia,saia de casa, batendo
portas.
Quando
a mãe comunicou-lhe a decisão de se casar novamente,explodiu. Como? Não tinha
vergonha de colocar outro homem naquela casa, que seu pai construíra com tanto
sacrifício? E ela e o irmão? Teriam de engolir
um novo pai? Gritou, xingou, trancou-se no quarto, imune aos apelos da
mãe para que se acalmasse e a ouvisse.
Não
lhe passou pela cabeça, então, ir à casa de Jadiel. Há muito tempo desistira de
fazer do pai aliado nas divergências com
a mãe.Sua postura sempre neutra, apaziguadora, dava-lhe a certeza de que jamais
poderia contar com ele.
Viu,
então,só uma escolha: ir embora. E o fez, no dia de seu aniversário de 18 anos,
dois meses após a discussão causada pela anúncio do casamento.
Foi
morar na capital, na casa de uma amiga,
que, também por divergências com os pais,decidira emancipar-se um ano antes.
Arranjou, de início, emprego em uma lanchonete; depois em uma loja, fez cursos
e agora estava estabilizada como secretária de uma construtora, onde conheceu o
companheiro, pondo fim a um período de relacionamentos efêmeros.
Nunca
mais vira a mãe, o pai, nem o irmão.Amadurecera estes anos todos. Já entendia
as motivações da Ema para separar-se de Jadiel. Aprendera que a vida de uma
mulher não pode resumir-se a cuidar de filhos e marido, a não ser que ela opte
por isso,o que não pareceu ser o caso da
mãe.Mas não condenava o pai que, a seu ver,
equivocou-se ao concentrar, na busca pela estabilidade material da
família a condição para a estabilidade conjugal. Não sentia mais, portanto, a intensa revolta
anterior contra a mãe, nem a desilusão com o pai, que, na época, achava complacente
demais.
E por que não retomara suas relações com a
família? Nem ela sabia responder. As
exigências da sobrevivência
absorveram-lhe as atenções e energias no início da vida independente. As
demandas afetivas fizeram o mesmo a seguir. E o tempo encarregou-se de aumentar
as distâncias.
Agora,
Liane prevê um reencontro inevitável e
constrangedor com a mãe, a parte mais difícil do retorno à sua terra de origem. E não sabe como reagirá . Por isso, não
gostaria de estar ali. Só o fará por causa de seu pai, Jadiel.
Jadiel
não gostaria de estar ali. Não por causa da ex-mulher, com quem as coisas já
estavam bem resolvidas há tempos. Não era segredo para ninguém que ele, a não
ser por alguma relutância no começo,o que, nestes casos é até comum, não criou
maiores problemas para o processo do divórcio. E que fora além de suas
responsabilidades legais, cedendo mais do que exigindo.
Quem
o conhecia, sabia que muitas decisões dele levaram em conta o bem estar dos
filhos, o que teria de passar, necessariamente, pelo bem estar de Ema.
A
questão da casa, por exemplo. Se insistisse na partilha,o imóvel teria de ser
vendido e a parte que caberia à mulher em dinheiro muito provavelmente não seria suficiente para assegurar-lhe, e
aos filhos, e mesmo padrão de moradia.Que eles ficassem na casa, até a situação
do mercado imobiliário melhorar.
Houve
quem achasse que a transigência dele devia-se a um sentimento de culpa pela
separação. Mas isto era algo que não o afligia. Não fizera , a seu ver, nada de
tão grave que justificasse o fim do casamento. Aprendera, desde criança, que um
homem casado deve ser trabalhador, prover o lar, ser fiel, tratar bem a mulher
, dando segurança no presente e preparando o melhor futuro para eles. Não considerara exagerado,
portanto, sua obsessão pela construção da casa, mesmo considerando-se que isso
o afastava do convívio familiar.Mas sendo um assalariado, como ganhar mais sem
fazer horas extras e trabalhar em fins de semana e feriados?
O
que o fez complacente para com as justificativas de Ema para a separação foi
o reconhecimento de que cometera erros de avaliação sobre o que uma
mulher espera de um casamento. Deveria ter previsto que, para ser feliz com um
homem, não bastam a uma mulher
casa,comida e roupa para vestir. Como atenuante para seus equívoco, contudo, recordava-se sempre de que
nunca fora sua intenção manter mulher e filhos
indefinidamente em regime de sacrifícios. Mas tinha por convicção que um
homem deve pensar, antes de mais nada, em garantir um abrigo seguro para si e
sua família. De nada adianta viajar, vestir-se bem, comer lautamente, vivendo
na casa dos outros.
A questão da bebida também era debitada por
Jadiel em sua conta de equívocos. Mas abrandava sua consciência lembrar que os
goles depois dos dias de trabalho não o faziam perder dia de serviço, nem o tornavam
um homem agressivo em casa.
A
filha também não seria razão para Jadiel sentir desprazer em estar ali. Sabia
das mágoas dela por não tê-la apoiado ostensivamente em suas desavenças com a mãe, nem quando ela
decidira sair de casa. Justificara sua neutralidade no fato de que a rebeldia
da filha era decorrência da instabilidade psicológica típica de
adolescentes..Preferiu dar tempo ao tempo e fora surpreendido com sua fuga de
casa.
Todas
essas pessoas, ex-mulher, sogra, filha e outras mais, tinham seus motivos para
não gostarem da idéia de estar ali. Ele também. Mas, entre todos, era o único que não poderia evitá-lo. Afinal,
era seu próprio velório.
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