Poucos metros antes do semáforo, notou
a luz vermelha e fechou os vidros do carro. Já conhecia o lugar. Como abelhas
atraídas por mel, homens, mulheres, crianças, logo cercariam o veículo,
oferecendo desde doces a quinquilharias, sem falar nos que começariam a limpar
o para-brisas ou a fazer malabarismos à sua
frente, com laranjas, pedaços de pau, bolas velhas, para depois exigirem
trocados pelo show.
Assim que o veículo parou,ouviu a
batida no vidro a seu lado. Também era prevista. Havia sempre alguém tentando
atrair-lhe a atenção dessa forma. Manteve-se impassível, olhando para frente.
Ocorreu, então, a novidade: novas
batidas. Sua impassibilidade, antes, era suficiente para que não repetissem o
gesto. Mas este insistia. Virou-se, irritado, disposto a tornar sonora a
negativa de que não queria nada, quando viu o homem que continuava a bater no vidro, para
lhe oferecer doces: um deficiente visual. Com uma das mãos, segurava sua mercadoria, dropes, com a outra, a identificadora bengala branca, cujo punho usava para bater no
vidro. Óbvio que não poderia ter notado sua indiferença anterior. Cego,
esperava um sim,ou um não,sonoros.
Era jovem , mas o único , pelo menos
naquele momento, a seu ver, com justificativa para ter tal alternativa de
sobrevivência.
Arrependeu-se, então, de sua
indiferença. Movimentou-se para abrir o vidro e comprar a mercadoria oferecida,
mas não teve mais tempo. O sinal abriu e , enquanto arrancava , pôde ver, pelo
retrovisor, o homem recuar lentamente , sem dúvida, frustrado, para o meio da
calçada.
A consciência insistiu em incomodá-lo
enquanto dirigia-se ao Fórum, onde era promotor público. Afinal, não se deixa
de atender um cego. Sempre considerou a cegueira a maior deficiência que a
Criação poderia atribuir a um ser humano. Ninguém, acreditava, é mais
vulnerável do que um homem que não pode ver. Nem mais desprovido da beleza com
que a natureza enfeita a vida.
Pensou em fazer um retorno, passar de
novo pela esquina e, desta vez, comprar toda a caixa de dropes que o cego
oferecia, mas já estava em cima da hora. Sua primeira de uma série de
audiências começaria em menos de 15 minutos. Outra hora repararia sua falha.
A rotina agitada do Fórum fez com que
não voltasse a pensar no episódio por todo o dia. Atuando também na Vara de Menores, na Justiça Eleitoral, era um dos promotores mais
envolvidos em audiências. Além disso, como dirigente da entidade do Ministério Público voltada para
assistência social tinha, pelo menos por
três dias durante a semana, de dispor maior parcela de seu tempo.
Não à toa era membro de prestígio no
Judiciário local e, não por coincidência, referência em jornais .
Alguém certa vez insinuara a
possibilidade de que entrasse para a política, o que repudiou até com
veemência. Primeiro, por razões profissionais: pretendia seguir carreira no
Ministério Público. Depois, a política não combinava com seu jeito retraído, mais propenso à reclusão do que à
exposição aos holofotes, tão cara aos
homens públicos.
Ao final do dia, assim que entrou no
carro, recordou o episódio da manhã. Decidiu , ao ir para casa, seguir pela
mesma avenida, embora tivesse pouca esperança de que o homem ainda estaria
naquela esquina.
Apesar do horário de verão, as sombras da
noite já se faziam presentes. Calculou que o vendedor, a esta hora, já teria
ido embora, abrigar-se, sem dúvida, em
moradia modesta da periferia.
Não errou a previsão. A esquina já estava
vazia dos pedintes de sempre.
No dia seguinte, sábado, saiu cedo.
Havia planejado deixar o carro em um lava-rápido e cortar o cabelo, ações com
que preencheria a manhã. Uma vez no trânsito, ocorreu-lhe , em impulso repentino, usar a mesma avenida,
passar pela mesma esquina.
E o homem estava lá. Como fizera com
ele, também aproximava-se dos carros e procurava chamar a atenção dos motoristas
batendo levemente com o cabo da bengala no vidro lateral.
Antes de chegar ao semáforo, entrou em
uma rua transversal e estacionou. Conversaria com o homem na calçada e assim
teria tempo para redimir-se da falha do dia anterior.
O vendedor surpreendeu-se com seu
toque,no braço.
- Não deve estar lembrado, mas sou o
motorista que, ontem de manhã, acelerou quando você procurava chamar-lhe a atenção.
Não foi por maldade. É que o sinal abriu de repente . Peço que me desculpe.
-Não precisa. Isso acontece com
freqüência. Muitas vezes eu nem noto quando o carro sai. Vai levar uns dropes
hoje?
- É essa a minha intenção,além de lhe
pedir desculpas. E quero toda a caixa. Assim, você vai para casa mais cedo.
Afinal, hoje é sábado.
- Se é só pelo que aconteceu ontem, não
precisa fazer isso.
- É também. Mas vou aproveitar e dar uma de Papai Noel para a
garotada que brinca na garagem do meu prédio.
E, enquanto o homem procurava
desvencilhar-se da mercadoria para lhe entregar, ele o analisou detidamente. Como
notara na primeira vez em que o vira, era jovem,deveria ter no máximo uns 25 anos.A
camiseta e a calça de lycra, um pouco justas, realçavam-lhe músculos do peito , braços e coxas. Sem
dúvida, não fosse a deficiência visual, poderia ter um alternativa de
sobrevivência mais digna e mais produtiva,para ele e a sociedade. Ser um
operário,por exemplo.
O homem agradeceu. Ele pensou em
oferecer-lhe uma carona, mas desistiu da idéia. Havia se redimido, sentia-se
bem, e isso era tudo.
Durante a semana que se seguiu, passou
todos os dias pela esquina, onde comprou
pacotinhos de dropes e trocou palavras com o vendedor toda vez que o
tempo do semáforo o permitiu.
Criou-se uma nova rotina na vida deste
homem de 35 anos, figura de destaque da comunidade; respeitado
pelos seus pares do Judiciário,pelas autoridades municipais e vizinhos; motivo
de orgulho dos amigos e da família e de inveja de inimigos e estranhos; bem
sucedido financeiramente, com cargo vitalício, salários muito acima da média;
realizador dos sonhos e anseios da mãe e
do pai, ele, conceituado advogado ; ela,
professora de música e benemérita social.
Tudo isso, entretanto,teve por preço a
sublimação, o recalque, a autorepressão e, por fim, a solidão.
É considerado , hoje,mais do que
nunca, um bom partido.Advogadas e funcionárias forenses estão entre as mulheres que mais tentaram chamar-lhe a atenção. Mas há também
as insinuações casuais de rua; afinal,
pode não ser um galã de telenovelas, mas é um homem de boa aparência, com seus
1,80 metro de altura, cabelos e olhos negros, corpo longilíneo.
A questão é que não são as mulheres o
objeto de seu interesse sexual.Mas a questão, também,é que o objeto de seu
interesse sexual o é apenas platonicamente. Jamais envolveu-se com nenhum
homem. O medo da revelação sobre sua sexualidade ocupou todos os espaços de sua
vontade física, de suas carências afetivas.
Inimaginável sequer pensar que algum
dia seu pai tivesse disso conhecimento. Preferia que eles atribuíssem seu pouco
interesse por mulheres ao muito interesse pelos
estudos,pelo trabalho,pela carreira. E, à medida em que o tempo foi
passando, o medo de ser exposto estendeu-se
à sociedade como um todo, impermeável a qualquer tipo de homoafetividade e, sem
dúvida, implacável se ela envolvesse um promotor de Justiça.
Não, não poderia arriscar-se nunca;
jamais ceder às exigências do corpo. Sexo completo exige mais de um; segredos
completos requerem apenas um. Relações afetivas envolvem conflitos. Como evitar
possíveis inconfidências de um amante contrariado? Mesmo a impessoalidade do
amor pago traz riscos maiores: que garantias tem de que jamais seria chantageado
por um garoto de programa?
O preço do medo foi, assim, a renúncia
à sexualidade, preço cada vez mais caro com o passar dos anos. Como não sentir-se
um ser humano incompleto? Como não ceder às neuroses?
E então aparece aquele homem cego; e
então ocorre-lhe a idéia, o plano.
- A venda destes doces é sua única
fonte de renda ?
- É.
- Quanto você ganha?
- Em
mês bom,dá para faturar um salário mínimo e meio.
- Deve ser difícil viver com tão
´pouco.
- Fácil não é. Tem mês que , depois de
pagar o aluguel do quarto onde moro, sobra quase nada para o resto.Ainda bem
que sou sozinho.
Agora ele teria de fazer a proposta. A
mais estranha de toda a sua vida e, sem dúvida, a mais estranha jamais apresentada ao homem à sua frente. Achou despropositado
certo nervosismo que começava a sentir antes de fazê-la. Afinal, seu plano não
oferecia o menor risco. Analisara todas as possibilidades e, sem dúvida, o momento
da proposta era o que menor perigo oferecia.
Se o deficiente ficasse indignado, só
poderia demonstrá-lo verbalmente. Jamais saberia com quem conversara. Ele
tivera o cuidado de promover o encontro
em uma pequena lanchonete, distante da
esquina, discreta, para que ninguém os
visse e o identificasse futuramente
como acompanhante do cego em determinado dia e determinada hora.Ficar
incógnito, essa era a condição básica dessa relação, em todas as suas
circunstâncias, atuais e futuras.
Então falou.
Confessou-se homossexual e queria, do
cego, que fosse seu amante. Pagar-lhe-ia uma quantia mensal, maior do que sua
renda com a venda de doces, atividade que ele não precisaria abandonar. Aliás,
a condição era que não a abandonasse. Nos dias em que quisesse sua companhia,
ele avisaria meia hora antes, por um telefone celular , cujo número não seria
identificado no aparelho que ele lhe daria. Na mesma ocasião, diria o ponto, a
cada vez diferente, para onde deveria
dirigir-se, onde o pegaria , de carro .O local onde ficariam, é claro,jamais
seria revelado. Era uma pequena casa
que alugara, em um bairro da periferia.
Evitou apartamentos e seus abelhudos vizinhos, zeladores e funcionários. Evitou
bairros centrais, ou da orla, onde pudesse ser
conhecido. E , de tempos em tempos, mudaria de endereço.
O plano fora pensado meticulosamente,
até mesmo para não dar margem a que o cego pudesse utilizar algum subterfúgio
que o levasse à sua identificação. O homem poderia, por exemplo,combinar com
alguém que os vigiasse à distância e depois lhe passasse as informações. Por
isso,nada de rotinas. O local para onde o cego deveria dirigir-se poderia ser
mudado de repente; o convite poderia ser cancelado minutos depois. Ele também deixara bem claro que apareceria
sempre com disfarces que impediriam sua identificação, a qual tornar-se-ia mais
difícil,ainda pelo fato de os encontros serem
sempre à noite.
Fez questão de apresentar todos estes
detalhes .Era bom que o cego soubesse que estaria sendo vigiado todo o tempo e
que , ao menor motivo para desconfiança , ele simplesmente desapareceria
de sua vida.E, com ele, a generosa quantia que lhe seria paga mensalmente, cujo
valor deixou, de propósito,para revelar ao final da proposta.
- Você não precisa me dar nenhuma
resposta agora. Ficará com este celular,
para o qual vou lhe ligar amanhã,neste mesmo horário. Se aceitar a proposta, ótimo; se não, pode ficar
com o aparelho de presente.Nunca mais o
procurarei.
Acabou de falar e esperou a reação do
cego. Claro que sua expressão, como a de toda pessoa com tal deficiência,nada revelou.Ainda mais com a
habitual camuflagem dos óculos escuros. Mas deu para observar, por outros
detalhes,que o impacto não fora pequeno.
O homem apertava com força, com as duas mãos sobrepostas, o apoio da bengala. A perna direita balançava
nervosamente.
A voz, porém, ao responder,não
refletia a mesma agitação:
- Isso foi uma grande surpresa para
mim- disse,pausadamente, a cabeça baixa, como se estivesse a olhar para o chão.
- A quantia que o senhor me oferece
realmente é tentadora e vai me aliviar de muito sofrimento. Mas isso não deixa
de ser uma prostituição, coisa que não me agrada. Estou balançado. Vou pensar e deixar para
responder depois.
Era uma dessas tardes ensolaradas de
abril, de muito sol , temperatura amena, céu azul, sem nuvens. Dirigindo o
carro pela alameda arborizada que o levaria ao prédio de apartamentos de classe
média alta onde residia, o promotor refletia sobre o início da alternativa que
acabara de propiciar à sua vida.. O primeiro passo fora dado com segurança, o que garantiria, acreditava,
que o resto da caminhada, rumo ao prazer e à completude de sua, até então
angustiada existência, ocorreria sem tropeço
algum.
Na estreita viela,entre barracos,que o
conduzia ao pequeno quarto onde morava, o deficiente visual também refletia. Até agora, desde que se conhecia
como gente,fora um pária.Nem tanto por ser pobre,porque esta não era sua
origem. Os pais, se não eram ricos, pelo menos podiam dar-lhe, na infância e
adolescência, uma existência digna , além de lhe propiciar oportunidade de estudo. Ele jogara tudo fora
, levando, desde a adolescência, vida de irresponsabilidade. Foi expulso de
todas as escolas em que o matricularam, por
faltas que iam desde a violência contra colegas e professores, até o
consumo de drogas..
Tinha pouco mais de 18 anos quando
saiu de casa e ganhou o mundo,
atrás,segundo aspirava, de um jeito de viver bem,sem depender de ninguém
,muito menos do trabalho. Furtou, traficou,mentiu. Precisou mudar-se da cidade
em que residiu desde criança porquie vivia perseguido, tanto pela polícia, como
por companheiros de crime a quem
enganara.
Agora, ansiava por melhores chances.Sem
perigo,mas sem trabalho. Jamais imaginou,
porém, que suas possibilidades pudessem ser
ampliadas tão rapidamente. Afinal, não fazem nem três meses que decidiu
fingir-se de cego para despertar piedade e, mais facilmente, vender doces pela
cidade.
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