sexta-feira, 25 de novembro de 2016

BELA JUDITE




 Naquele dia, Maninho,  soldado do tráfico de drogas ,voltava para casa, após cinco anos preso. Era  a segunda vez que fazia este tipo de retorno. Já cumprira, antes, três anos de pena. Fora encarcerado pela primeira vez aos 18 anos , retornou às celas  aos 22. Seu intervalo de liberdade, após chegar à maioridade, fora de apenas um ano.
 Mas este segundo  retorno não seria  igual. Pelo  menos ele se esforçaria para que não fosse. Poderiam ser iguais  a longa avenida por onde o transportara o ônibus ou  as escadarias, que o levariam ao alto do morro da Vila Cearense  ; mas  diferentes eram seu estado de espírito e disposição para o futuro.
A segunda temporada na cadeia tivera influência na mudança radical que pretendia operar em sua vida. Para isso contribuíra a amizade com Arcano, veterano presidiário ,cumprindo   pena de 25 anos, por uma verdadeira coleção de crimes. 
Arcano vivia o conformismo, última fase psicológica dos encarcerados de longa data. Sabedor da importância da manter a esperteza e valentia, necessárias à sobrevivência no ambiente carcerário, adquirira, entretanto, a serenidade de quem aprendeu o que, a seu ver, valia pena na vida: a  liberdade e  o amor de uma mulher.
E fora Arcano quem  convencera Maninho a mudar de comportamento para que pudesse manter seu casamento com Judite,  assunto de centenas de conversas entre os dois homens,durante  anos.  Judite, a bela Judite, como a chamava Maninho, era a razão de viver do jovem apenado, e o veterano sabia que nada o desviaria daquele foco obsessivo.
- Resolva seu problema com a Judite e tudo será  resolvido na vida -aconselhou o velho.
Mas qual era o problema de Maninho com a Judite? A rigor, nenhum. Deram-se bem todo o tempo em que puderam ficar juntos. A questão não era de relacionamento, mas de tempo de convivência. Do dia em que optaram por uma vida em comum, apenas recém-saídos da adolescência, até a data da primeira prisão dele, transcorreram apenas seis meses. Saiu da cadeia e, um ano depois, estava preso de novo. Em nove anos e meio, ficaram somente 18 meses juntos.
Arcano estava convicto de seu diagnóstico e conselho: se Maninho pretendia ter Judite para si, como companheira permanente, deveria, de fato, compartilhar a vida com ela. 
- Mulher nenhuma, em sã consciência, consegue viver como viúva de marido vivo- lembrava-lhe o velho presidiário.
Essa frase ficou martelando a cabeça de Maninho. Controlar Judite à distância era inevitável, pela razão óbvia de que, presidiário, não podia estar sempre com ela.  Isso todos os detentos faziam com suas companheiras.
Mas isso é convivência que se tenha com a mulher amada? Maninho convenceu-se de que não. Errara da primeira vez, quando achou que poderia conciliar a vida de traficante com a conjugal. Fora preso apenas seis meses depois que passaram a morar juntos. Três anos cumpridos, livre e de volta à casa, repetiu o erro, sendo preso apenas um ano depois.
Também na segunda detenção, obteve de Judite a garantia de que aguardaria seu retorno. Assegurou-se de que a mulher cumpriria a promessa pelos meios já conhecidos da vigilância externa, feita por companheiros de crime ainda soltos.
Agora, seria tudo diferente. De novo livre, deixaria definitivamente a criminalidade. Arranjaria um emprego. Comunicara sua decisão a Arcano, que a aprovou, assegurando-lhe que era isso que sempre pretendia dele.  E aconselhou-o a se mudar, ir para outra cidade ou até outro estado pois, permanecendo na comunidade, seria sempre assediado pelos antigos cúmplices, impedindo-lhe que mantivesse, em paz, uma vida honesta.
- Fazendo tudo  isso, terá as duas coisas mais importantes para o homem:  liberdade e o amor da mulher amada.
Tudo isso passava pela cabeça de Maninho,enquanto ia para a casa da irmã de Judite,com quem ela  voltara  a morar, depois que ele fora preso.Inácia era casada, tinha um filho e Judite residia com ela quando a conheceu. Acácia nunca lhe demonstrara muita afeição ( e ele entendia os motivos), mas nunca lhe fora hostil. Davam-se bem. Baixinha e com tendência para engordar, era, fisicamente, o oposto da irmã.
A beleza de Judite,que tanto  fascinava Maninho,  não era em nada semelhante às das demais jovens da comunidade, mesmo as mais bonitas.Não era feita de exuberâncias de seios, coxas e bundas, tampouco de roupas coloridas, justas, curtas;  nem de cabelos coloridos e faces idem. Magra, sem ser esquálida; tinha altura mediana , cabelos na cor castanho ( a mesma dos olhos), lisos e caídos naturalmente, em cachos, sobre os ombros. O rosto, de linhas suaves, lembrava, a Maninho, os daquelas gravuras de santas que via, quando garoto, nas revistas religiosas de sua avó. Católica fervorosa,  a mulher o criara, desde que fora abandonado, ainda bebê,  pela mãe, solteira.
Judite falava baixo, jamais dizia palavrões e seus gestos eram suaves. Amigos mais próximos, aqueles de quem Maninho tolerava algumas brincadeiras, referiam-se a ela como a “ Irmã Judite”.
- Como é que uma mulher dessas foi gostar de um perdido na vida como você? dizia-lhe, sempre, Arcano, que a conhecia das visitas semanais ao presídio.
 Após a decisão de mudar de vida, que não comunicara à mulher,por achar que ela não acreditaria, determinara, também, que não mais o visitasse. Na próxima vez em que se encontrassem, seria fora do presídio. Não a obrigaria mais a ir àquele ambiente desagradável.
No dia em que fora solto, transcorrera mais de um ano após a última vez em que a vira,  o que aumentava mais ainda sua ansiedade pelo reencontro. Não avisou previamente  a hora de  sua chegada . Por isso, Acácia  mostrou  a surpresa ao vê-lo á porta.
- Nossa! É você?
- Com todos os ossos!
Sorria, um sorriso que não aliviava a tensão interior.
- Sua irmã está?
- Claro. Entra. Senta. Vou chamá-la.
Sentou. Na ponta do sofá, mãos cruzadas entre as pernas,  o que sentia agora assemelhava-se ao que sentira mais de uma década atrás,naquela mesma sala, quando fora propor a Judite que fossem morar juntos: um misto de nervosismo,ansiedade e alegria contida.
 Então entrou na sala a mulher. Sim, era Judite, claro,mas não era Judite. Não aquela gorducha, de cabelos opacos,amarrados em rabo-de-cavalo, olhar medroso, mãos para trás, como que algemadas. Não aquela mulher que, ao esboçar um sorriso, mostrou a ausência de um dente frontal superior.
- Não esperava que você chegasse agora, só de noite.
Claro, sua voz era a mesma, mas tinha algo de estalado e insegurança na entonação. Onde estava a suavidade ,que antes ele sentia  nos ouvidos  como se fosse carícia?
Vestia um conjunto de moletom, desbotado, calça ligeiramente apertada,  realçando, principalmente na cintura, gorduras  a mais.
- Livre de novo. E dessa vez, juro: nunca mais volto para aquele inferno. 
A voz lhe saíra sem convicção; priorizara mais comunicar a satisfação com a reconquista da liberdade do que comemorar o  reencontro com a mulher.Abraçou-a; sentiu que ela aconchegou-se a ele, mas não a estreitou fortemente, como tanto sonhou que faria quando a encontrasse . Omitiu também o beijo, que ela tampouco cobrou.
-E você, como tem passado?  
A pergunta soou burocrática, depois de acomodaram-se no sofá .  Acácia,  após anunciar que iria fazer um café, retirou-se da sala.
- Vou levando. As coisas não têm sido muito fáceis, pois meu cunhado está desempregado faz tempo e eu peguei umas faxinas em casas do bairro para ajudar nas despesas.E este ano inteiro sem ver você  só tornou as coisas mais sofridas.
Enquanto ela continuava a falar sobre sua rotina sofrida, bem que ele gostaria de prestar atenção no relato  , consolá-la , revelar-lhe sua disposição de mudar de conduta,  acenar-lhe com melhores dias.. Não conseguia. Difícil afastar a sensação de que não era Judite quem se dirigia a ele . Pelo menos, não a bela Judite. 
- Olha, preciso ir agora. Vim direto do presídio para cá e lembrei que preciso resolver uns assuntos. Depois volto para a gente conversar mais e acertar melhor as coisas. Avisa à Acácia que o café fica para outro dia.
Falava  gaguejando, ao mesmo tempo em que se levantava. Judite permaneceu sentada enquanto ele dirigia-se à porta, abriu-a e saia.

Quinze dias passaram, sem notícias dele,  até que Acácia chegasse com a novidade:
- Encontrei Maninho hoje, no mercado. Não o tinha visto, ele que me chamou. E conversamos sobre a situação de vocês dois.
Judite aproximou-se, lentamente, mas ansiosa. Desde aquele último reencontro após a saída dele da prisão,  nunca mais vira Maninho,ou soubera qualquer notícia dele. Estes quinze dias de silêncio foram mais angustiantes do que o ano todo em que ficaram sem qualquer contato, devido à proibição dele de que o fosse ver na cadeia.
Estes novos tempos, ela sabia, eram de definição. O clima estranho do último encontro; o comportamento de Maninho no curto diálogo , a maneira como saíra da casa, a falta de notícias, nada disso passou-lhe despercebido. Principalmente pelo contraste entre aquele dia e o dia em que ele chegara em casa, após cumprir sua primeira pena de prisão, anos atrás.Maninho, então, a abraçara  e beijara apaixonadamente, demonstrara em gestos e palavras o quanto ficara feliz em voltar a vê-la, em voltar a conviver com ela.
A irmã interrompeu suas reflexões.
- Ele disse que não tem aparecido, nem dado notícias, porque tinha muitas coisas para fazer. Pensou que ia resolver os problemas pendentes em poucos dias, mas não deu. Depois, à medida em que o tempo foi passando, ele  começou a se sentir constrangido de vir aqui pessoalmente dizer o que ele pretendia dizer. Então, resolveu transmitir por mim.
Judite abandonou a atitude passiva recostada no sofá e reclinou-se em direção à irmã, sem a menor preocupação em esconder a ansiedade.
- E o que ele disse?
- Que não vai mais viver com você. Pensou bem e , como acha que só lhe trouxe problemas este tempo todo, não vai mais atrapalhar sua vida. Vai embora. Viaja na segunda-feira. Deseja-lhe muita sorte e tem certeza de que você terá no futuro a felicidade  que  merece.
- Então , resumindo, ele acabou nosso casamento?
- E bem acabado , minha irmã. Depois que nos despedimos, atravessou a rua e sabe quem veio ao encontro dele? A Dileusa. Parece que a morena conseguiu finalmente o que sempre desejou, pois os dois subiram de mãos dadas, para os lados da pracinha.  Ele não vai embora sozinho, pode crer.
Judite, então, abandonou a postura de expectativa. Recostou-se  no sofá, pernas e braços estendidos, relaxada.
- Bem que lhe falei que isso iria acontecer  quando, um ano atrás, você parou de se cuidar, começou a engordar, não tratou mais dos cabelos, das unhas, não colocou mais a prótese dentária. Virou essa coisa feia que está aí.
Acácia sempre a alertara sobre a obsessão de Maninho por sua beleza, uma obsessão que poderia levar a uma tragédia se ela resolvesse romper com ele.
Mas agora, Maninho perdera o interesse por ela. Significava que não mais a  controlaria, nem  a  manteria atrelada à sua vida de marginal. Acabava, finalmente,  aquela tensão permanente representada pelo medo de deixá-lo e, ao mesmo tempo, de viver com ele.
 O plano de sacrificar a própria beleza para que ele desistisse dela, e não o contrário,   dera certo e era isso que as duas irmãs comemoravam, agora, abraçadas, silenciosamente, no meio da sala.




   

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