sexta-feira, 30 de maio de 2008

PENTE DE MOTEL


Eu a imagino lá, sentada no sofá , de frente para a porta de entrada do apartamento, fingindo autocontrole. Ao falar, em tais ocasiões, força uma voz sussurrada, uma coisa de quem está começando a ficar rouco.Para mim, que a conheço bem , a falsa calma é denunciada por tiques nervosos que, nela, só nela- é incrível, meu Deus!- é diferente de todo mundo.Balançar uma das pernas cruzadas? Não. Retorcer as mãos, dedos entrelaçados? De forma alguma. Nervosa, tentando aparentar calma, ela faz movimentos no lado esquerdo do rosto. Um repuxar rápido, apertando o olho, leva-a a subir o canto do lábio , tudo como a querer, pela esquerda, fazer o queixo tocar a fronte.O estranho movimento é repetido a cada 30 segundos.
 Conversamos várias vezes sobre  sua descoberta: o pente de motel no bolso do paletó cinza. “ Love`s”, o nome ridículo impresso em vermelho sobre o rosa-leite-com groselha. Descobrira-o em uma revista de rotina. Não era seu hábito revolver-me bolsos, era zelo quando a roupa ia ser lavada. E lá estava o pente. Pequeno, de plástico mole. Quem o inventou talvez ache que negros não vão a motéis. Pentear carapinhas com tal objeto retorcendo –se ao menor puxão? Há 15 dias, o instrumento de minha tortura. Nada a convenceria quanto à sua origem.
- Alguém do escritório colocou-o aí de gozação.
A face esquerda repuxando, o olho esmagado por pálpebras, o queixo querendo subir; o sussurro:
    -Você disse que ninguém lhe faz brincadeiras no escritório, pois é considerado o chefe mais sério.
O sussurro.Por que ela não gritava como outra esposa qualquer? Por que não lhe jogara uma das panelas na cabeça, o colocara porta afora? Não. Nem na descoberta fatídica fizera isso. Surgira na sala com o objeto na mão. A face esquerda...etc.E o sussurro.Tudo bem. Então, alguém o colocara lá. Talvez fosse até eu mesmo. Sem querer pegara em algum lugar
- Em algum lugar, onde? Pente de motel só se encontra em motel.
E no bolso de meu paletó cinza, é claro.Durante quinze dias, na saída e na chegada, o mantra:
- Já tem uma explicação para mim?
Há três dias, decidiu ela mesma terminar a tortura diária. Disse que, se eu não tivesse  uma história convincente, não precisava voltar para casa após o trabalho.
E, enquanto eu me retirava, sentou-se no sofá, o pente entre as mãos. O insuportável sussurro de pré-rouquidão; o  intragável repuxar da face paralisada foram gestos que conheci e aprendi a odiar por duas  semanas porque não conseguia explicar a presença do maldito objeto no bolso de meu paletó.
Mas agora sei.


No dia  em que me foi dado o prazo fatal, não sabia. E, ironia,  tive que passar a noite em  um motel , situado à margem da estrada que percorro caminho do trabalho.  Karinho`s. Deus meu , por que nomes de motéis têm de ser tão obviamente  idiotas?
Recordo de minha primeira pousada ali, a primeira fora de casa desde meu casamento. Deixei a roupa que usei durante o dia cuidadosamente dobrada sobre a mesinha da saleta de entrada.Teria de vesti-la de novo no outro dia, no serviço, e não convinha que estivesse amarfanhada.
Reparei nos utensílios  sobre o gabinete da pia: toucas de plástico,preservativos,miniaturas de  sabonetes, perfumes, escovas , pasta de dente.
E pentes.Com o nome  do motel gravado. Propaganda? Mas alguém leva isso para casa? Casados não o fazem,por motivos óbvios; solteiros também não,porque são de má qualidade, quebradiços,feios.Qual a utilidade da propaganda no pente,então? Mistérios de motel.
Não telefonei para casa;mas deixarei o celular ligado. Alimentava a esperança de que ela me ligasse, levada pelo inusitado de minha primeira ausência noturna após tantos anos casados.
Não ligou. Confirmava, assim, a intenção  de só aceitar contato comigo se fosse para obter explicações convincentes.
De manhã,  cheguei  no serviço e dirigi-me diretamente para minha sala.O momento delicado que vivia, somado à roupa repetida, deixava-me inseguro. Queria evitar ao máximo contatos  pessoais. Felizmente, não havia reunião agendada, nem entre chefias, nem com funcionários.
Perguntei à secretária se havia ligações para mim Não. Pedi e trouxeram-me, minutos depois, café com leite e pão com manteiga, torrado na chapa..Nada de inusitado.Muitas outras vezes fiz igual desjejum no escritório.
Rotina semelhante repetiu-se por mais três dias.Continuei no motel. Comprei mais algumas peças de roupa,  utensílios pessoais. Nenhum contato por parte dela. Também resisti e não a procurei. Mas sabia ser uma situação insuportável  por muito tempo. Até mesmo por razões práticas, não dava para continuar vivendo em um motel. Sem falar que ninguém, no serviço e em meu circulo mais próximo de amizades, conhecia meu novo cotidiano. Procurava portar-me como se nada de anormal estivesse acontecendo.
E eis que no quarto dia,acendeu-se a luz. Foi quando aquele chefe de divisão da empresa entrou em minha sala. O cinza de seu terno atingiu-me como cor fosforecente.
A lembrança veio rápida.Na última reunião de chefias, ocorrida há um mês,  vestíamos ternos semelhantes.Fazia calor e todos colocamos os paletós nos encostos das cadeiras. Meu Deus, como não pensei nisso antes? Ao sairmos da reunião, pegamos os paletós trocados. O pente de motel estava no bolso do paletó dele, não no meu.
 Contei-lhe toda a história, ele a  ouviu com expressão entre divertida, curiosa e preocupada. Sem dúvida, jamais passou  por sua cabeça que eu um dia  lhe faria tais  confidências . Nem pela minha. Mas tratava-se de minha vida e, nesta hora, o executivo fechado, de poucas brincadeiras, precisa despir-se da sisudez.
Confirmou a possibilidade de ser mesmo dele o paletó , com o pente  no bols . Estivera dias antes, com a mesma roupa, em um motel, com uma de suas várias namoradas.
 Entretanto, como essa confirmação iria ajudar-me?  Os paletós são muito parecidos, em cor e tamanho.Argumentou : mesmo  que ele fosse , pessoalmente, contar à minha mulher o ocorrido,  levando o paletó trocado como prova, como convencê-la de  que aquilo não era apenas parte do álibi entre colegas? Que o verdadeiro paletó , depositário da prova do crime, era, mesmo, aquele  no armário de casa?
Pedi para examinar o  paletó.E uma luz substituiu o cinza do dia.

Estou aqui,diante dela,que sussura:
- E então, tem a resposta?
Ao perguntar,  não me olha. Fita o embrulho que seguro. Ao invés de responder, peço que me traga o paletó depositado na gaveta do quarto.Ela atende.
Quando volta, peço que examine atentamente  .Ela o faz. Sempre em silêncio. Terminado o exame, fita-me novamente, com uma interrogação no olhar. Como previ, ela não observou o detalhe. Mostro-lhe o embrulho que trago.
-  Aqui está o terno de um colega que, há 30 dias, participou comigo de uma reunião de trabalho. Como você vê, é idêntico ao meu.
Estendo o paletó e peço que o examine.Ela o revira entre as mãos.
- É igual ao seu. O que quer dizer tudo  isso, afinal?
- Esse é o meu paletó. No dia da reunião, meu colega pegou-o por engano. E,também sem notar, , peguei o dele, que tinha o pente no bolso.
Olhou-me incrédula e seu sussurro, agora,tinha algo de raiva.
-  Acredita que sou idiota? Você pode muito bem ter comprado um terno igualzinho ao seu  e inventado essa história.
- Então,peço que você pegue a calça do meu terno lá no quarto.
-Ela o faz. Sua rapidez  mostrava que, agora, a curiosidade move-lhe os gestos.
Solicito de novo.
- Veja as etiquetas do paletó e da calça.
Então ela nota. São diferentes.Seu olhar traza, agora, algo de perplexidade.
Mostro-lhe as etiquetas da calça e do terno do meu amigo. Desnecessário dizer que também são diferentes.  
Então, não resisto ao gesto teatral: destroco as peças, juntando cada uma delas a seu par original.
- Este é meu terno. Este é o terno de meu amigo. Este é meu paletó.Este é o de meu colega.
Olha-me desconfiada. Mas não se dá por vencida. Pensa por alguns segundos, em busca de alguma explicação mais condizente com suas teses. Não lhe dou  tempo para maiores raciocínios.Preciso terminar logo com aquilo.
- Você sabe que eu não tive condições de trocar as peças no tempo em que estive aqui após o encontro do pente , pois você trancou o terno na gaveta.Você sabe que estas peças que trouxe agora me foram dadas realmente por meu colega de trabalho.E, para que não paire nenhuma dúvida, veja isso aqui.
E  entrego-lhe o extrato de cartão de crédito de meu colega, mostrando que seu terno fora comprado há seis meses, angtes de todos estes acontecimentos. Ou seja, eu não poderia ter comprado as peças agora,  para criar um álibi.
Não, ela não se atira em meus braços pedindo-me  perdão. Não, ela não vai para o quarto chorar, arrependida. Não, ela não ri,mesmo nervosamente, solicitando-me que esqueçamos episódio tão ridículo.
Ela entrega o terno de meu amigo e pede-me que o devolva . Recolhe minhas peças e as leva  para quarto. E depois, não me dirige mais a palavra.

Amanhece. Como sempre, acordo antes dela, preparo o café, faço o desjejum e e preparo- me para sair, antes dela levantar-se. Nada diferente de antes, se não a ouvisse chamar do quarto.
- Quero  me esclareça uma coisa, mas não precisa ser agora.Não quero atrasá-lo.Pode ser quando você voltar.
Pergunto  o quê. Ela sussurra:

- Onde você esteve e o que fez nos três dias  em que não dormiu em casa?  

quinta-feira, 29 de maio de 2008

PROVAS DE AMOR



- Vim o mais rápido que pude. Você parecia tão desesperada ao telefone!
- Ele me deixou.Ele não me ama!
- Não acredito
- É isso mesmo que estou falando. Ele me deixou. Ligou de São Paulo, logo
depois do programa de TV, e disse que não vem mais para casa. Eu sabia . Ele não me ama. Nunca me amou. Sequer pensou em me amar!
- Incrível!
- Exatamente. Vivi estes três anos desiludida com suas demonstrações
de amor. Estava sendo enganada o tempo todo.
- Mas, meu Deus, ele sempre foi fiel, sempre esteve ao seu lado e vivia
manifestando, publicamente, o que sentia por você. Como é que, de repente, toma essa decisão?
- Outra mulher. Só pode ser outra mulher. O que poderia ser?
- Melhor você se acalmar. Toma este copo de água, respira fundo. Nestas
horas é preciso ter calma. Alguma explicação tem de haver.
- Você sabe que eu sempre tive insegurança sobre o que ele sentia por mim.
Afinal, demorou muito para largar a primeira mulher e vir morar comigo. Mas , de uma certa forma, tomava atitudes que me tranqüilizavam nos momentos de insegurança.
- Isso é verdade. Como naquela vez em que vocês passaram em frente do banco
onde a ex-mulher dele trabalhava e você pediu para entrar.
- Queria que ele me apresentasse à ex-mulher e dissesse a ela que me
amava. Ele fez isso. A mulher ficou com cara de boba. Só disse “ Ahnn”. E saímos logo a seguir, antes que ela falasse qualquer coisa.
- E você ficou mais tranqüila quanto aos sentimentos dele pela ex-mulher,
não é mesmo?
-Ainda ficou um senãozinho: fui eu que pedi. Seria melhor se tivesse agido
espontaneamente. De qualquer forma, foi uma prova de amor.
- É verdade
-Não esqueço, também, do caso com a família dele.
-Desse eu não sabia.
-Tive uma vez uma briga com a mãe e os irmãos dele. Ele parou de falar com a família. Um dia, cruzamos com a velha na feira e ele nem olhou para ela.
- Realmente, ficou do seu lado.
- Eu tinha falado, depois da briga, que se ele me amasse, jamais falaria
com a mãe e os irmãos novamente. Afinal, a sua família, agora, era eu, não é mesmo? Ele entendeu e rompeu relações.
- Outra forte prova de apreço por você.
- Mas agora vejo que tudo era uma ilusão.Do jeito que ele falou , ao telefone,
gaguejando, voz trêmula, nem parecia o homem que pouco tempo atrás chamou aquele meu antigo chefe de serviço para a briga.
- É mesmo?
- O cara gritou comigo por causa de um problema no trabalho. Me senti muito humilhada e fui para casa mais cedo. Quando ele chegou , expliquei o que tinha acontecido. Disse para eu pedir demissão, afinal a gente nem precisava daquele salário.
- E você pediu?
-Sim, mas não consegui esquecer a humilhação. Um dia, no shopping,
quando cruzamos por acaso com o ex-chefe, não aguentei: pedi para ele tomar satisfações. Você sabe, assim o cara saberia que eu tinha quem me defendesse; não era uma desprotegida da vida.
- Mas ele nunca foi de briga!
- Os dois quase saíram no tapa.Se não fosse a segurança..
- Não consigo imaginá-lo , pacato e tímido do jeito que é, fazendo uma coisa
dessas.
-Acho que, quando um homem ama sua mulher, deve ser o defensor dela. Foi outra demonstração de amor que pedi e ele deu.Lembrando essas coisas, aumenta minha revolta agora
- Também estou surpresa. Lembro que conheci vocês dois quando compraram de mim aquele apartamento na praia. Recebi uma bela comissão.
- Pois é. No começo , dizia que o apartamento era muito caro e lembrei que, se vendêssemos o que a gente morava e aquela ocupado pela tia dele, dava para conseguir uma boa entrada e o financiamento sairia mais barato.Respondeu que não podia fazer isso porque tinha compromisso de deixar a velha morando lá depois que ficou viúva.
- E como isso ficou resolvido?
-Do jeito que deveria ser resolvido, né?A tia foi viver com a mãe dele, que é irmã dela. Afinal, morava no apartamento há muito tempo, desde que ele era solteiro, quando o comprou. Antes, nunca precisamos do imóvel, mas, agora, surgia uma necessidade. Foi isso que expliquei quando ficou indeciso. Acharia muito estranho se ele deixasse de pensar em nós nessa circunstância. Seria uma prova de desamor
- Parece que, mais uma vez, deixou claro que você estava acima de tudo.
-Me senti segura.
-E agora tem essa história do programa de TV. Todo mundo comentou. Que coisa incrível!
- Pois é.Tudo começou naquele dia, no aniversário, quando o pessoal falava
sobre televisão.
-Lembro..Criticávamos os programas de calouros e as situações ridículas em que as pessoas sem talento ficavam.
-Então. Aí, voltávamos para casa, e, não sei por que, tocamos no assunto. Perguntei se ele seria capaz de ir a um programa de calouros.
-Claro que respondeu não! Não sabe cantar e, mesmo que soubesse, tímido
do jeito que é, nem chegaria na porta da emissora para se inscrever.
-Isso mesmo. Mas, desafiei: seria capaz de se apresentar no programa só para demonstrar amor por mim?
-Pediu isso?
-Veja bem. Não pedi para ir lá cantar, pois sei que ele não sabe. Seria só um pretexto para, diante das câmeras, em rede nacional, dizer que me amava. Uma coisa legal, né?Argumentei que seria o momento mais feliz da minha vida. Ele foi e fez. Queria muito ver a cara da ex-mulher dele naquela hora.
- Até o apresentador ficou surpreso. Depois que ele desafinou e foi gongado, correu para diante da câmera, gritou teu nome bem alto e completou: te amo!
- Pois é. E, meia hora depois, telefonou dizendo que não vinha mais para casa. Dá para entender um absurdo desses? Só pode ter outra mulher na história. Ele não me ama, nunca me amou.
-Calma. Não adianta se descontrolar. Mas foi só isso que ele falou,mesmo?
-Bem, na verdade, não disse que não ficaria mais comigo. Disse que não
voltaria para cá. Iria permanecer uns dias na casa de um amigo, na capital, enquanto providenciava nossa mudança. Alugaria um escritório e um apartamento lá e, em pouco tempo, a gente mudava de uma vez. Ja viu coisa mais ridícula?Por que ele não pode mais voltar?
- Você sabe, ele sempre foi muito acanhado e, fazer o que fez, na TV, deve ter sido difícil. Deve ter pensado o quanto seria constrangedor voltar a conviver , agora, com os amigos, conhecidos e, principalmente, no fórum, com os colegas advogados, juízes, promotores, funcionários, clientes...
- Quer dizer que ele está com vergonha de ter declarado por mim mim?
-Não é bem assim...
-Além disso, como pode querer que eu mude para São Paulo? Não gosto de lá, vivi sempre aqui na Baixada. Minha família , meus amigos, minhas recordações de infância, os locais onde faço compras, meu cabeleireiro, estão todos aqui. Como pede que eu mude minha vida de uma hora para outra ?
- Sim, mas...
- Ele não me ama. É só isso, e nada mais.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

O FILHO



- Sou seu filho!
De aparência mais velha do que a idade , o homem que falara não parecia acumular os anos que sugeriam a calvície , a boca desprovida dos dentes frontais superiores e os sulcos rugosos de testa e pálpebras. Mãos de dorsos venosos, dedos finos e longos, unhas enegrecidas de tabaco : marcas mais de sofrimento,pobreza ou desleixo do que do passar do tempo
- Sou seu filho.
- Não entendi!, retrucou.
- Exatamente isso: sou seu filho, você é meu pai e esse é o assunto sobre o qual estou tentando lhe falar há duas semanas , mas você nunca me atende.
“E não deveria tê-lo feito nunca. Esse cara é maluco”, pensou, enquanto examinava melhor o outro, sentado à sua frente, no escritório.A roupa era coerente com a degradação física: paletó e calças amarfanhados, a camisa com uma lembrança amarelada de brancura, sapatos foscos, sem meias. Se estivesse de chapéu e gravata, estes seriam amarfanhados também, impossível imaginar o contrário.
- Sou seu filho.
Sentido faria se dissesse “ sou seu pai”, igualmente um absurdo, já que ele completara 65 anos. É claro que a aparência indicava bem menos que isso. Ginástica, massagens, alimentação balanceada, austeridade de hábitos, exames médicos preventivos,cirurgias plásticas e uma década de redução da carga de trabalho explicavam tudo.Sem falar que nunca se casara, o que, sem dúvida, lhe agregara mais uns toques de juventude.
E conhecera o pai, com quem tivera uma convivência de pelo menos meio século até a morte dele, sem nenhuma dúvida quanto à filiação. Se o sujeito dissesse “ sou seu irmão” teria muito mais lógica, sabe-se lá os roteiros da história do velho . Mas, “seu filho”?
Precisava livrar-se do maluco o mais rápido possível.
A estratégia inicial seria não contrariá-lo. Não se contrariam doidos.Pediu licença, com um gesto que lhe pareceu de cumplicidade e foi até a antesala, onde a secretaria, ar preocupado e ansioso, o atendeu.
-Como é que você deixa um sujeito desses entrar aqui para falar comigo?
- Mas eu não sabia que ele era assim.
- Você não falou com ele antes?
- Não. Falei com o advogado dele, com quem marquei a audiência.
- Advogado dele?
- É. Confirmei os dados . Por isso é que demorou quase um mês para acertar o dia e horário Só não sabia que era esse o cliente e que ele vinha sozinho, com um cartão do doutor.
- Mas você não perguntou qual era o assunto?
- O advogado disse que era sigiloso. Só anotei os nomes. Ademais,quando aprovou a agenda , o senhor não fez nenhuma pergunta e eu achei que já sabia do caso.
- Não lembro direito nem o que comi ontem. Ando preocupado demais com a pré-produção daquela maldita novela. Precisamos nos livrar do cara. O truque de sempre.
Há milhões de truques na vida em sociedade.O da secretária, para livrarem-no dos indesejáveis, era simples: avisava-o de que estava atrasado para “aquela reunião importante”.
Voltou à sala.O velho o esperava, na mesma posição de antes, sentado na ponta da cadeira; corpo curvado .
- Quer dizer, então, que é meu filho? Quantos anos o senhor tem?
- Cinquenta e três.
“ Aparenta 70” pensou, atenção atraída agora para entrada da secretária
- O sr. já está atrasado para aquela reunião.
- Ah, sim, a reunião! Muito importante. O senhor me desculpa. A gente pode conversar outro dia. Marca a data com a dona Selma. Precisamos esclarecer alguns pontos. Afinal, o senhor há de convir que, para ser seu pai, precisaria ter transado com sua mãe quando eu tinha 12 anos.
Sem esperar resposta, seguiu o ritual do truque: levantar-se rápido, vestir o paletó, dar a mão para o visitante, deslocar-se a passos largos para a sala de reuniões, enquanto a secretária , eficiente, já se adiantava e conduzia o velho à de recepção.
Rapidez insuficiente para impedir o homem de falar e ele ouvir:
- Mas foi isso mesmo o que aconteceu!
- O quê?
- Você tinha 12 anos quando transou com minha mãe.

Prezado sr. Objetiva esta desculpar-me pelo episódio de ontem, do qual foi protagonista meu cliente. Escrevo do hospital, onde internei-me às pressas por causa de uma crise de rins. Avisei o cliente de que não poderia ir à reunião que marcara no escritório de V.Sa. , expliquei os motivos e fiquei de informá-lo sobre uma nova data. Não poderia imaginar que ele iria sozinho naquele mesmo dia.
Semanas atrás, ele apareceu em meu escritório dizendo-se filho não reconhecido de um famoso produtor e diretor de tv, teatro, cinema e queria provar isso na Justiça. De início, fiquei cético: não era a primeira vez que alguém se dizia filho de uma celebridade. À primeira vista , tudo soava muito frágil , a começar pelo fato do filho parecer mais velho que o suposto pai.
Porém, veja: moça de 18 anos, empregada doméstica, seduz o garoto da casa,de 12 anos, engravida e é expulsa pelo patrão. Havia algo de crível na história, por isso peguei o caso. Mais esclarecimentos darei pessoalmente na audiência do Fórum. Atenciosamente, Dr. B.


Processo findo,paternidade confirmada, a hora, enfim, da conversa entre pai e filho .Fez questão de que ocorresse na casa do filho, onde satisfaria de vez todas as curiosidades.
Primeira surpresa: não era um casebre em favela, como supunha. Apartamento modesto, em bairro regular. Segunda surpresa: morava sozinho . Terceira :estante cheia de livros na sala.
- Agora, o que o senhor quer de mim?
- Nada.
A resposta foi a maior das surpresas.
- Como assim,nada?
- Só isso: nada. Já tenho tudo de que preciso: casa própria, aposentadoria, nada de filhos criados ou por criar, nem netos. Minha única parente viva era minha mãe. E você, é claro.
- Sua mãe morreu?
- Há 10 anos, no nordeste. Eu não a via há 20, desde que vim para o Rio de Janeiro trabalhar.Durante os anos em que vivi com ela, a única coisa que soube sobre você é que tinha me abandonado quando ela estava grávida. Jamais me revelou sua identidade.
- E como o senhor soube da história toda?
- Por uma amiga dela,a quem fez confidências uma semana antes de morrer. Anos depois,essa amiga soube onde eu morava e mandou-me uma carta, contando tudo. Antes desta revelação, passei a vida inteira remoendo mágoas do pai que me abandonara.
- Meu Deus, eu era um garoto ! Nunca me falaram da gravidez da empregada. Aliás, nunca soube por que ela foi despedida de casa. E, mesmo que soubesse de tudo, como é que, com 12 anos, poderia assumir a paternidade? Esta história com sua mãe só perdura em minha memória, meio século depois, por tratar-se de minha primeira experiência sexual, coisa que homem algum esquece. Mas nunca tive a menor idéia das consequências dela.
- Como vê, vivemos, os dois, por meio século, sem ter idéia de nada.
- Responda-me: por que teve tanto trabalho para me localizar e iniciar este processo?
- Primeiro, queria desculpar-me pelos anos em que o amaldiçoei. Depois, porque acho que todo pai e filho têm de saber da existência um do outro. Fui privilegiado porque não apenas sabia que tenho um pai, como cheguei a identificá-lo. Mas você nunca imaginou que tinha este filho. E, com certeza, jamais acreditaria se alguém o dissesse . O processo na Justiça era , então, a única maneira de fazê-lo acreditar.
- Qual é sua profissão? O que o senhor faz ou fez ?
- Sou jornalista aposentado por invalidez. Muito cigarro, muita cerveja, muito uísque,muito sexo, pouco sono, pouco exercício, muito desleixo e eis-me aqui, velho, enfizemático, com uma expectativa de vida menor do que você, que me gerou.

Antes de entrar no carro, deu uma última olhada no prédio, talvez esperando ver o filho à janela do apartamento. Não estava. Missão cumprida, devia o velho estar pensando, no sofá da sala, cigarro na mão.
Nada mais, material ou espiritual, dava consistência àquela relação, à exceção das folhas registradas em cartório.A maneira como tudo terminara provocava-lhe mais alívio do que constrangimento. O que parecia, de início, muito importante, agora não era mais.
Partida acionada, deu-se conta de que, o tempo todo, desde o primeiro dia no escritório, chamara o filho de senhor e o filho o chamara de você. Mas isso também não tinha importância. Precisava, agora, era de uma boa massagem.

terça-feira, 27 de maio de 2008

NA UTI DA ALA 2



As enfermeiras não sabem mais o que fazer com o paciente da UTI da Ala 2, que está dando muito trabalho, arriscando a própria vida. Não pára de se mexer e demonstra irritação. Sabem que o doente não pode falar, por causa do tubo de respiração que lhe penetra a traquéia, mas ouve-as e, por isso, dizem-lhe para ficar calmo , em seu próprio benefício, mas ele faz gestos nervosos , querendo retirar os aparelhos. Ninguém sabe quem é. Fora encontrado inconsciente, caído em uma calçada, sem nenhum documento consigo.
O doente da UTI da Ala 2 não se conforma por estar ali, paralisado, sem poder falar com ninguém. Saiu do estado de inconsciência, ouve as enfermeiras comentarem o que lhe ocorrera. Tenta falar, mas não consegue. Pode mexer um pouco o braço direito e procura, com sofridos movimentos, chamar a atenção das duas mulheres. Elas pedem que se acalme, dizem-lhe para não se movimentar muito e, com palavras cuidadosas, tentam explicar-lhe o que ocorrera, informando-o sobre seu estado clínico. Mas ele não quer receber explicações, quer explicar-se. Em vão.
O médico alerta as enfermeiras de que a ansiedade e a tensão são prejudiciais para a recuperação do doente da UTI da Ala 2 e que, por isso, caso se mostre muito agitado, devem sedá-lo. Isso já havia sido feito uma vez e as enfermeiras estão preocupadas ante a possibilidade de terem de fazê-lo de novo. Repetem os conselhos para que o doente se acalme, evitando, assim, a medicação. Mas o paciente parece cada vez mais nervoso e sua irritação aumenta quando olha para o relógio da parede em frente.
O doente da UTI da Ala 2 quer que compreendam que às oito horas da noite aproximam-se. Se não conseguirem identificá-lo, não poderão avisar à sua mulher, que o está esperando naquele horário. Como manter-se, portanto, calmo, se é impossíve desviar os olhos do maldito relógio na parede em frente, cujos ponteiros movimentam-se mais ameçadores do que o pêndulo do conto de Poe?
As enfermeiras da UTI da Ala 2 já se preparam para aplicar a segunda dose de sedativo no paciente, que não pára de se mexer, arriscando-se a soltar todos os conectores que lhe monitoram o organismo. E intuindo o que está prestes a acontecer novamente, ele intensifica os parcos movimentos que lhe permitem a fraqueza: levantar o braço, o joelho e os músculos da face, todos do lado direito do corpo.
O que o doente da UTI da Ala 2 pretende é alertar que já são sete horas da noite e, sendo sedado de novo, poderá não acordar antes das oito. E não conseguirá comunicar-lhes, a tempo, que precisam avisar à sua mulher de que não chegará no horário previsto. Só quer uma chance para revelar um número de telefone. O doente da UTI da Ala 2 desespera-se porque não consegue comunicar o desejo de se comunicar.
Minutos após ter-se ausentado, uma das enfermeiras da UTI da Ala 2 retorna, confabula com a companheira e aplicam-lhe apenas meia dose de sedativo, conforme a nova determinação do médico. A idéia é conter os movimentos bruscos e, ao mesmo tempo, mantê-lo consciente, eliminando os riscos de agravamento do quadro.
Meio sedado, o paciente da UTI da Ala 2 sente-se lasso, de raciocínio lento e a ansiedade é substituída por melancolia quando olha o relógio da parede em frente. Parece flutuar e o esforço , agora, não é para se comunicar com as enfermeiras e, sim, recapitular fatos recentes da vida. Não lembra como tudo começou, mas a verdade é que seu relacionamento com Mara anda complicado. Os 12 anos de casamento, com todas as suas idiossincrasias , estão desaguando nos últimos 12 meses , recheando-os de desconfortos psicológicos. Transpuseram montanhas antes e, agora, não superamn formigueiros. Entre eles, os horários. Irritava-a profundamente que ele não cumprisse horários, magoava-o que ela se irritasse. Talvez, inconscientemente, para compensar todas as concessões anteriores ( não fumar, não beber, não falar alto, não palitar os dentes, não visitar os amigos, não andar depressa , não assistir ao futebol na TV, não discutir política, não...) é que ele não conseguia cumprir o quesito “ chegar- na- hora- certa- do almoço- e- do- jantar”, o que a levava à beira da histeria. E, há um mês, antes que tudo desmoronasse, firmaram um acordo: não precisava vir almoçar em casa, mas, à noite, tinha de chegar às oito horas. Em caso de atraso, avisar antes. Se fosse chegar atrasado e não avisasse, não precisava chegar mais.
As enfermeiras não sabem e talvez nunca saibam por que é que o paciente da UTI da Ala 2 está dando tanto trabalho, arriscando a própria vida.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

JUNTOS, JUNTINHOS



- Oi, Télia,tudo bem?
- Oi, tudo bem? O que você trouxe hoje?
- Discos
- Verdade? De quem?
- Ora, nem precisa perguntar? Dos Beatles.
- Boa escolha
- São os que mais gosto
- Pode ir lá.
Ele já conhecia o caminho.Cruzou a pequena sala de TV, dirigiu-se ao escritório nos fundos de um corredor. Antes de fechar a porta, ouviu a pergunta gritada da cozinha:
- E a Rejane, onde foi hoje?
Respondeu, também gritando, ao mesmo tempo em que, com gestos rápidos e nervosos, retirava os discos das capas.
- Ao fisioterapeuta. Ficará lá pelo menos por duas horas.
- Um bom tempo.
Fechou a porta do escritório. Escolheu um disco, colocou-o no aparelho com a mão direita, enquanto que, com a esquerda, acionava os botões. Os mecanismos mal se movimentavam e ele, de olhos fechados, já estava recostado no pequeno sofá, ao lado da escrivaninha. Do jeito que sempre quis. Sonhando. Era Paul McCartney. O contrabaixo em suas mãos, o mais obediente dos servos.Cantava docemente o sonho das meninas. Queriam beijá-lo, mordê-lo, amá-lo, mas ele, indiferente, acariciava apenas as cordas do instrumento.O toque de sua boca era reservado somente ao microfone. Longe, nos agudos, perto nas  emissões dos graves. A  alma passeando leve, flutuante.
- Ei!
O som, a princípio, confundindo-se com a música.Depois, bem próximo e identificável.Télia chamava. Um salto e estava perto da porta, que abriu imediatamente.
- Pensei que você tivesse dormido.
- Acho que cochilei um pouco.
- Está na hora.
- É mesmo. Já arrumo tudo. Vai dar tempo.
Um dia não daria. Porque ele, com certeza, talvez não quisesse. Ou porque não o controlasse.Mas um dia, com certeza, ganharia, sem esforço, o seu instante de solidão.Não precisaria aguardar conveniências: a hora do fisioterapeuta, a ida ao supermercado; o horário do cabeleireiro.
Télia, abençoada Télia! O que seria dele sem a sua irmã? Sem aquele escritório e aquela compreensão? Télia conhecia sua história. Acompanhara seus primeiros tempos de namoro com Rejane. Não fora madrinha de casamento porque a noiva já tinha sua preferência: uma prima.
Conhecera Rejane na escola. Ele, professor de português/inglês, recém-chegado. Ela, professora de geografia. Empatia rápida, namoro quase imediato, o casamento inevitável.E a constatação: Rejane não o deixava só. Considerava dádiva o fato de trabalharem na mesma escola. “ Sempre juntinhos, sempre juntinhos”, repetia , e o abraçava , cabeça levemente recostada em seu ombro., o que o enternecia e deixava vaidoso. Aquela necessidade de Rejane de tê-lo sempre por perto, à vista, palpável reforçava-lhe a auto-estima.
Iam juntos à escola. Quando coincidiam os intervalos de suas aulas, ela o procurava na sala dos professores. Tomavam cafezinho juntos.Se ela saísse antes, o esperava. O contrário.
Certo dia, comentara o fato com Télia, não escondendo certo orgulho.Ela não se mostrara tão animada.
- Sei não. Você não está se violentando?
Ela sabia do que falava. Conhecia, desde os tempos de solteiro, suas necessidades de solidão, seu hábito de trancar-se no quarto por horas, para ouvir música, principalmente dos Beatles. Acostumara-se a vê-lo silencioso, desde adolescente , mergulhado em leituras, isolado do mundo. Mas ele não deu crédito à observação da irmã. Como estaria se violentando se a mulher que amava necessitava da presença dele como do ar que respirava?
O primeiro ano de casamento passou sem que nem mesmo alguns aparentes excessos ( assim os achava Télia) constituíssem problemas. Rejane não gostava que se fechasse a porta do banheiro. Para quê, afinal, fazer isso no lar de um casal? Trancar-se no quarto para ouvir discos, ler, não é, antes de mais nada, uma atitude egoísta?Não teria Rejane razão ao constatar que longos períodos de leitura os afastavam um do outro? Sair sozinho com amigos, por que, se tinha, agora, uma esposa com quem sair? Ficar só, por quê? Casara-se para ficar só?



Até que um dia inventou-se o compact-disc. Até que um dia lançou-se uma coleção de todas as músicas dos Beatles em compact-disc. Até que um dia sobrou-lhe dinheiro para comprar um aparelho de reprodução de compact-disc.E, de quebra, toda a coleção dos reis do ié-ié-ié, que iria ouvir sem os chiados de suas já vetustas bolachas de vinil. John, Paul, George e Ringo, na plenitude da pureza de som. Compact-disc.
A primeira audição seria um momento sagrado. A reclusão se fazia necessária. Fechou-se no quarto, ajeitou a parafernália.
Télia tinha razão. Se não se violentara antes, violentou-se naquele dia.Rejane quase quebrara a porta. Acusou-o de estar esfriando o relacionamento, de egoísmo. Não suportando a ira, levantara a possibilidade de que estivesse interessado por outra mulher.Sim. Sem dúvida trancara-se no quarto para ficar pensando nela. Quem sabe, até se masturbando.
A muito custo conteve a explosão.Desligou o aparelho de som,guardou os discos. Carinhos, abraços, beijos. A mulher acalmou-se. Fez-lhe prometer que jamais faria aquilo. Não mais faria o quê? Ouvir música sozinho no quarto? Este crime conjugal imperdoável? Resignou-se, fez a promessa. Seu casamento era mais importante.



A partir de então, Rejane tornara-se mais aderente. E o gosto amargo da primeira concessão não o abandonaria jamais. Trabalho juntos, passeios juntos, cafezinhos juntos, lanches juntos, ver TV, juntos, visitas a parentes, juntos; juntos, juntos, juntos.
Os momentos ocasionais de separação eram frutos de conveniências dela: fisioterapia, cabeleireiro, compras, coisas para as quais Rejane, curiosamente, dispensava sua presença.
- Então, te espero na casa da Télia.
Ela concordava. Era na casa da Télia que ele ficava sozinho. Paradoxal que precisasse de outra pessoa para ter solidão. Refugiava-se com os discos e livros, controlando o tempo.A mulher, ao voltar, deveria encontrá-lo com Télia, na varanda, na cozinha, na sala de estar... Não prometera isolar-se jamais? Não interpor aos dois uma barreira de silêncio? Télia era o elo de ligação confiável, uma espécie de controladora de tensão enquanto um dos pólos da bateria estivesse temporariamente desativado.
Até quando?

quarta-feira, 21 de maio de 2008

LAURA, DA PADARIA



- Que é isso?
- Fica quieto. Este revolver não é de brinquedo. Portanto,não tente dar uma de besta. Vamos sair da portaria e subir ao apartamento. Sua mulher está comigo, mas veio de livre e espontânea vontade. Permita que me apresente: sou o irmão da Laura, da padaria.


***
- Queria pedir desculpas pelo que aconteceu aquele dia.
- Que é isso!
- Foi muito chato.
- Se soubesse que seu patrão ouviria, não teria reclamado do sanduíche.
- Ele é muito ignorante. O senhor nem estava brigando.Só dizendo que tinha pedido sanduíche de queijo.
- Eu ia comer o de presunto do mesmo jeito.Também gosto.
- É, mas o português foi logo me mandando ir pra dentro. Fiquei até com vergonha.
- Mas agora está tudo bem, né?
- Está. Agradeço o senhor por ter falado para ele que o caso não tinha importância.
- Tudo bem.
- Meu nome é Laura.
- Prazer.


***
-Você pensou que nunca ia ser descoberto, não é mesmo? Que ia continuar levando sua vidinha sem nenhum problema.Acontece que resolvi levantar tudo. Falei com as meninas da padaria; com o zelador do prédio. Não foi difícil descobrir quem era sua mulher, entrar em contato com ela, contar tudo e trazê-la aqui, para confirmar na sua frente.Aliás, vocês aqui do prédio precisam dar uma dura no zelador.Ele fala demais, principalmente depois de umas duas cervejas. A coisa ficou mais fácil ainda porque sou investigador de polícia e interrogar é comigo mesmo.

***
- Moro em Praia Grande, com meu irmão e minha cunhada. Ele é investigador de polícia e vive dizendo que é perigoso trabalhar aqui em Santos porque chego tarde em casa. Mas foi o único emprego que arranjei e eu já não agüentava mais viver de favor na casa deles.Agora tenho dinheiro para minhas coisas e ainda dou uma ajuda preles dois. Gosto das meninas da padaria, dos padeiros. A única pessoa chata é o português. O senhor acha que estou falando muito? O senhor é meio calado, as meninas dizem que sou a única que consegue conversar com o senhor, mas só eu falo.
- Não é bem assim, eu também falo.
- Mas não diz muita coisa. Chega de manhã, toma café; passa de noite, faz o lanche e vai embora. Não é que nem os outros fregueses, que conversam, dizem piadas pra gente, aparecem com os amigos.
- É o meu jeito
- O senhor é casado?
- Sou.
- Mas nunca vi o senhor com sua esposa.
-Não moro com ela.
-Como assim?
-A gente vive em casas separadas: ela lá na Ponta da Praia e eu aqui, no José Menino.
-Nossa! E isso dá certo?
-Ainda não sei direito.


***
- Sua mulher me disse que vocês fizeram um trato de viverem em casas separadas para salvar o casamento. Só que ela não esperava que você fosse tão sem-vergonha, não é mesmo?Quando se sentiu livre,a primeira coisa que fez foi arranjar um caso.E justamente minha irmã, uma menina ainda. Não tem vergonha, não?Um homem de 50 anos tendo caso com uma menina de 18?Já contei tudo para sua mulher e sugeri que viéssemos até aqui para a confirmação. Como você vê, ela concordou.
- Para que essa violência, este revolver? Adelaide, por que você não fala nada?
- Ela não tem que falar. E, como Laura nunca me disse nada sobre seus namorados, investiguei bem e tenho as evidências. Sei até que você e ela passaram uma noite juntos, neste apartamento. Vamos, confirme tudo.Agora! Na frente de sua mulher.


***
- Tem uma moça aqui embaixo querendo falar com o senhor. A Laura.
- Pode mandar subir.
- Preciso que o senhor me ajude.Meti-me em encrenca. Estou grávida.Tentei conversar com meu namorado sobre o que fazer e ele disse que isso não é problema dele. Meu irmão não pode saber de nada. Do jeito que é, vai me expulsar de casa.Para piorar a situação, discuti hoje com o português e fui demitida. Fiquei a tarde inteira zanzando pela praia, sem coragem de ir para casa de cabeça quente. Procurei a única amiga que tenho aqui em Santos, para ver se eu podia dormir lá, como fiz outras vezes, mas ela tinha ido viajar. Aí me lembrei de vir aqui. O senhor disse que sua mulher quase nunca vem, por isso acho que não vou causar nenhum problema. Posso dormir aqui? Amanhã vou embora bem cedinho.
- Pode. Fico na sala e você no quarto.


***
- Já que você trouxe a Adelaide, por que também não trouxe a Laura para esta conversa? Aí ficava tudo explicado.
- Ela não pôde vir. Nunca mais vai poder ir para lugar nenhum. Ela morreu. Entendeu? Morreu! O médico disse que foi hemorragia , causada por uma tentativa de aborto. Foi então que resolvi descobrir o cara que a engravidou e  acabar com sua raça. Uma bala na cara do safado, pensei. Depois, quando soube que era você , mudei de idéia. Por que estragar minha vida com isso? Descobri que poderia estragar a sua, sem acabar com ela.E é o que estou fazendo agora. Quanto à senhora, é sua vez de se entender com ele.


***
- Já que ele foi embora,Adelaide, posso explicar tudo?
- Não.

terça-feira, 20 de maio de 2008

SETE BILHETES



Assim que entrou na sala da casa, de regresso do hospital, onde a patroa , Dona Bia, acabara de ser internada, vítima de crise nervosa, a empregada viu alguns papéis sobre a mesinha de centro. Ao lado, um envelope amarelo, grande. Não reparara neles quando chegara por volta das 8 horas desta manhã, pois tivera de socorrer Dona Bia, encontrada semidesfalecida no quarto. Mal tivera tempo de ligar para pedir ajuda à irmã da patroa, residente a uma quadra dali, e que possuía automóvel.
Agora, precisava colocar a casa em ordem. Quando saíra para sua folga semanal, na tarde de sábado, achara a patroa um pouco esquisita, mas, também, pudera: fazia duas semanas que perdera o marido, assassinado por assaltantes Mas não esperava encontrá-la em estado tão deplorável nesta manhã de segunda., a ponto de precisar levá-la ao hospital.
Notou que os papéis sobre a mesinha de centro eram parecidos com bilhetes. O envelope não trazia chancela do Correio e tinha algumas frases escritas no verso. Inquiriu o porteiro pelo interfone:
- Você lembra quem deixou este envelope para minha patroa?
- Foi a secretária do falecido Dr. Miguel que me entregou esta manhã.Ela disse que não trouxe antes porque esperou a patroa voltar daquela viagem que fez após a morte do patrão. Eu mesmo entreguei o envelope pessoalmente para Dona Bia e ela parecia estar bem.
Dona Isis, a secretária, costumava trazer papéis do escritório de advocacia do patrão, por isso era conhecida dos porteiros.
Os fatos da noite em que o Dr. Miguel morreu deram a bilhetes um significado especial naquela casa. A empregada não resistiu à tentação de ler os que estavam na mesinha de centro.

Primeiro

Escrito em papel de caderno escolar ,não parecia bem um bilhete. Era mais uma troca de mensagens entre duas garotas: "Jéssica, você tem alguma coisa com o Edu?/ Não, já acabou faz tempo./ Tem certeza? Não quero magoar você./
Tenho. Já esqueci o Edu./OK. Tá bom. Gosto muito de você, você sabe".
Segundo

“ Nossa lembrança de ...felizes em Pr...” O texto truncado estava redigido atrás de uma foto, rasgada ao meio e da qual sobrara apenas uma imagem inteira, de um jovem sorridente. A imagem extraviada deveria pertencer a uma mulher, visto ser feminina a mão, de longos dedos e unhas pintadas, rasgada à altura do pulso,pousada sobre o ombro direito do rapaz. Embaixo, mais fragmento de texto: ...” amor...embro...002”

Terceiro

“ Que bom se a gente tivesse sózinhos, né? Não dava pra despensar essa tua sobrinha?” , dizia, ferindo o vernáculo, o terceiro bilhete, escrito em um guardanapo, o texto borrado aqui e ali pelo que deveriam ser manchas de gordura ou bebida.

Quarto

Impresso de uma correspondência enviada por e-mail:"Corri para ver se alguém tinha enviado uma mensagem para mim. Corri, cansei e não encontrei nada.Tudo bem, não enviaram. Mas eu continuo insistindo. Envio várias mensagens. Pensei muito em você, como sempre. Isso não é novidade" .

Quinto

Na folha arrancada de uma agenda: “ Miguel, aí estão os quatro bilhetes. Um eu achei atrás da igreja; o outro, no lixo do meu prédio e o terceiro, o e-mail, na porta da Prefeitura. . A foto rasgada é de um primo meu, que a esqueceu em minha casa no dia que rompeu com a namorada.. Acho que, agora, juntando aquele que lhe dei, encontrado no ponto do ônibus - o do papel com coraçõezinhos vermelhos - já dá para tocar seu plano maluco. Sei que é meio estranha esta minha mania de colecionar bilhetes que acho por aí, porém, mais esquisita, ainda, e essa sua idéia de usar alguns deles em um projeto literário. O que vai escrever? Um romance, um conto, um ensaio? Que tipo de ligação vai fazer com bilhetes tão diferentes, de procedências tão distintas? Em todo caso, você é que está com a mania de escritor, deve saber o que está fazendo. Um abraço do Jair.”

Sexto




Escrito no próprio envelope amarelo. Letra do Dr. Miguel, a empregada a conhecia bem. Endereçado à secretária dele:” Dona Isis, por favor guarde consigo este envelope e me entrega na segunda-feira. Não deixe no escritório porque são coisas pessoais. Um abraço e um bom fim de semana”.

Sétimo

O sétimo bilhete, o dos coraçõezinhos vermelhos, não fazia parte do conteúdo do envelope amarelo. Estava na lembrança da empregada, que o lera na manhã seguinte à noite em que o patrão fora morto.Dizia: “ Quando é que você vai arranjar um tempo para nós dois? Estou morrendo de saudades. Inventa alguma história para a bruxa da sua mulher, ela é burra, vai acreditar”.
O bilhete fora encontrado pela patroa no bolso de um paletó e a deixara furiosa, a ponto de não permitir ao marido entrar em casa à noite. Ele não pôde, sequer, falar com ela pelo interfone ou celular. Perambulando , quem sabe a caminho de algum hotel , o Dr. Miguel foi assassinado por dois assaltantes em uma dessas esquinas escuras da cidade.

sexta-feira, 16 de maio de 2008

O HOMEM E O MENINO



- Moço, o senhor poderia arranjar um dinheiro para eu voltar pra minha casa?
Interpelado em meio ao vaivém de milhares de pessoas rumo ao local do desfile de bandas, o homem parou. O garoto deveria ter entre 8 e 10 anos. Vestia-se de maneira modesta- bermuda, camiseta, tênis- mas não estava sujo. Cabelos aparados, unhas limpas.
- Onde é sua casa?
- Em São Bernardo.
- Como é que veio parar aqui? Onde estão seus pais?
- Vim com meu irmão, ver o desfile das bandas. A gente se perdeu um do outro.Estou andando por aí há um tempão para ver se acho ele, mas não adianta. Queria ir pra casa.
- Seus pais sabem que vocês estão aqui?
- Não. A gente ia voltar hoje mesmo.
- Vem comigo.
- E dirigiram-se até um posto volante da polícia militar, perto da praça. O homem explicou o caso a um soldado.
- Podemos tentar localizar o irmão dele usando o serviço de som do palanque oficial- explicou o guarda
E foi o que fez, durante uma hora, sem resultado.
- Que outra coisa a gente podia fazer? Indagou o homem preocupado com o horário. Esperavam-no em casa.
- Tentaremos avisar os pais do garoto, mas não sei como vai ser isso, pois eles não têm telefone e o menino não conhece ninguém que tenha. A saída é pedir para a PM de São Bernardo ir para a casa dele avisar . Isso vai demorar. O senhor sabe ,estamos no carnaval.
Toda a polícia mobilizada para muitas coisas.
- E enquanto essa situação não se resolve, o que ocorre com o garoto?
- Fica aqui com a gente.
- Mas isso pode durar a noite toda.
- Não podemos fazer mais nada.
- E se eu levar o garoto para a minha casa? Deixo minha identificação, telefone e endereço com vocês. Uma viatura pode nos acompanhar até lá . Moro aqui perto.
Por que fez a proposta, não soube responder. A verdade é que o menino despertara-lhe algumas emoções. Lembrava outro garoto pobre- ele mesmo- de um bairro de Cubatão, a 12 quilômetros dali, que sonhava também em ver o carnaval nas praias de Santos.Mas nunca tivera a coragem de fazê-lo, quem sabe por falta de um irmão mais velho que o escoltasse na aventura.
Sim, aquele menino era um pouco ele, na aparência de pobreza decente; na inocência de confiar em desconhecidos. Possívelmente, como ele, cresceria, estudaria com sacrifício, viraria engenheiro, arranjaria um bom emprego. Talvez se casasse também com uma moça de família rica...
Tal reflexão fez com que hesitasse, por instantes, no propósito de levá-lo para casa. Mas, com os diabos, não podia deixá-lo , talvez a noite toda, na praça com policiais atarefados, ligados em tudo,menos em um menino perdido.
E foram. O homem e o menino para a casa do homem.

- Por que demorou tanto?
A ansiedade da mulher fez com que não reparasse na presença do garoto.
- Deixa entrar que já explico.
Mal acabara a explicação e ela interrompeu, quase aos gritos:
- Ficou doido? Trazer um moleque desconhecido para casa; expor desse jeito e mim e meus filhos?
- Espera um pouco, é só um garotinho. Quando a polícia localizar os pais dele, telefona e o problema está resolvido.
-E esse irmão dele. Quem é? Você não tem ouvido falar em menores delinqüentes?
- Calma! Não assusta o menino! Ele não é o que você está pensando.
- Como é que vou saber? Por que não o deixou com a polícia? Já não tinha feito a sua parte, levando-o até a viatura?
- Não podia deixar um garoto dessa idade a noite toda na praça. Eu me imaginei na situação dele.
- Tinha de ser! Você tinha de ter uma recaída da infância! Do tempo de Cubatão, pobrezinho. Viu o garoto e começou a ter pena de si mesmo. É aquilo que sempre falo: você melhorou de vida, saiu da favela, mas a favela não saiu de você. E, como se não bastasse, quer trazê-la para dentro de casa.
- Você está exagerando.
- Não estou exagerando nada. Vou ligar para meu pai vir me pegar e às crianças.Se você insiste em manter o garoto em casa, nós saímos.
Falavam alto e nem percebiam a presença do menino. Somente quando ela calou-se e dirigiu-se ao telefone, ouviu-se o fio de voz, hesitante:
- Pode deixar que eu vou embora.
E saiu pela porta que haviam esquecido de fechar. O homem atrás. Caminharam alguns minutos em silêncio, quebrado pelo homem:
- Espera aí. Vou pegar o carro e levar você para casa.
E foram. Menino e o homem, par a casa do menino.

Em menos de uma hora, estavam em São Bernardo. O irmão mais velho já havia chegado à moradia humilde da periferia, narrado a aventura e participado o sumiço do irmão.Os pais, antes preocupados, ao virem os dois, sentiram alívio. Prometeram ao homem não punir os filhos.
- São apenas crianças. O susto já foi castigo suficiente.
Tudo resolvido, tomou o caminho de volta.Antes de sair da cidade e pegar a Via Anchieta, parou em um bar. Raramente consumia bebida alcoólica, porém a ocasião pedia uma latinha de cerveja. Relaxar? Comemorar? Ficou ali, no balcão, refletindo.
Acudir o garoto, levando-o de volta para casa, como que socorrendo a si mesmo, 30 anos atrás, deixara-o satisfeito. Afrontar a mulher, abandonando-a irritada no meio da sala - atitudes que jamais tomara antes- deixaram-no apreensivo. Por que agira assim? Só por que o garoto lembrava a criança que fora? Ou porque ainda não liberara a favela dentro de si, como sempre recordava a mulher? Um herói que provara solidariedade e apreço às origens, ou o irresponsável que expusera a família à sanha de delinquentes mirins?Com muitas perguntas e nenhuma resposta, o homem era um menino perdido.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

MACHOS INOCENTES

Como classificar o comportamento de um homem que não conseguia ficar em locais onde houvesse namorados se acariciando? Que, junto com familiares, assistindo a novelas de TV, saía da sala a uma simples trocade beijos entre personagens?


Não, Honorato não era evangélico, carola católico ou muçulmano. Casado, duas filhas e um filho, hoje todos adultos, não lhe feriam a suceptibilidade mulheres de shorts, saias curtas , justas; biquínis, ou mesmo seios nus.. A nudez no cinema,nas revistas, na TV não o perturbavam. Meneios pseudosensuais de travestis e homossexuais não lhe traziam maior incômodo. O que lhe acarretava desconforto eram as manifestações públicas de carinho.

- Sexo é coisa para ficar entre quatro paredes.

Policial aposentado, quando, na ativa, fazendo rondas na zona do meretrício, expulsava mulheres que agarravam-se aos clientes nas ruas.

- Prá dentro! Prá cima! Vamos acabar com a putaria!

Ficaram famosas suas explosões de ira, os socos, tapas e pontapés que distribuía em tais ocasiões.

Agora, sem o estresse da luta contra criminosos e da convivência com o baixo mundo, perdera muito da agressividade, mas não da idiossincrasia ao que chamava de sacanagem pública. E à proporção que ia envelhecendo, adicionava à mania novos fatores de desagrado. Ficara famoso ( felizmente, apenas no âmbito familiar) seu acesso de raiva ao encontrar os filhos observando a cópula de um casal de rãs no charco atrás da residência.

Os filhos cresceram, chegaram a adolescência, à juventude, as duas mulheres usaram bermuda, saia curta ou justa, calça apertada, casaram, namoraram tiveram filhos. Mas nunca abraçaram ou beijaram seus namorados , depois cônjuges, na frente de Honorato.

Cenas de beijos, abraços, esfregações, na TV, em revistas, no cinema ou mesmo na realidade das ruas tornaram-se, após a aposentadoria, perfeitamente evitáveis. Nos primeiros casos, bastava não ficar diante do aparelho, não folhear as publicações; não ir às salas de projeção. Como saía pouco do bairro, também pouco via namorados e os que o conheciam já sabiam o que não fazer ao passar diante dele

Mas uma coisa não podia evitar ; a presença de cães atrás de cadelas no cio, muito comum nos bairro populares, onde cada quintal tem pelo menos um exemplar de vira-lata, e as ruas, dezenas. Nos meses de julho e agosto, repetem-se os rituais da procriação canina. Honorato passou, nestes períodos , a nutrir especial ódio às perseguições coletivas de cães às cadelas no cio. Ao ver à já prosaica cena de um cão atado a uma fêmea, rodeado pelos demais machos, famintos de sexo, não se continha. Apossava-se dele um misto de vergonha e raiva principalmente se a visualização da cena era compartilhada por outras pessoas, mulheres, em especial.. Desviava o olhar, virava o rosto, apressava o passo, mudava de trajeto. Com o passar do tempo, radicalizou:, chutava os animais, atirava-lhes pedras ou outra coisa contundente ao alcance das mãos. Certo dia, correra ao bar da esquina, comprara duas garrafas de água mineral gelada para despejar em dois viralatas engatados.





II





Como explicar o extraordinário poder de atração daquele odor, imperceptível a narizes humanos, que faz o amarelo, o preto, o malhado, o peludo, o grande, o pequeno, o cotó, o mestiço andejo das ruas; o galgo e demais pedigrees, perseguirem fêmeas, sejam elas quais forem- mesmo pequenas para os grandes, ou grandes para os pequenos- por ruas, avenidas, quintais, morros, charcos, trilhos de trens; entre carros, pernas de homens, barracas de feiras, cadeiras de botequins?

Que dinheiro as humanas não pagariam por esta loção, de que a natureza não as dotou, capaz de levar machos a enfrentarem chutes, paus, pedras, a fome, calor, frio, dentadas, por instantes de sexo com suas fêmeas? Que dá poderes estranhos, como o de saltar obstáculos várias vezes superiores às suas alturas; enfrentar adversários mais robustos e ferozes; esquecer o aconchego dos lares, subsolos de barracos ou casinhas de alvenaria em jardins de mansões? Do pulguento vira-lata do morro ao lulu shamporizado da filha do prefeito, nenhum invulnerável à fragrância saída das entranhas das fêmeas que os convida irrestívelmente à cópula.

Naquela quinta-feira ensolarada lá estavam aqueles cinco cegos, surdos e mudos de desejo como tantos outros milhares de cães em outros tantos milhares de locais e dias, em julho e agosto, a perseguirem uma cadela no cio. E como as tantas outras, lá estava ela correndo de um lado para outro, rejeitando investidas ora com mordidas, ora sentando, ora correndo em círculos. Cederia, em determinado momento, a um dos perseguidores, não necessariamente o mais forte, não necessariamente o mais rápido . Mas até aquele momento, aos cinco cabia correr, aproximar-se, fustigar, lutar para que o simples desejo se transformasse em dádiva.

Ainda arisca, a cadela resolveu atravessar aquela esquina. Por instantes, algo grande, sólido,barulhento e rápido ficou entre ela e eles. E quando o obstáculo visual não era mais presente, ela estava deitada no chão: mais uma das muitas manobras de rejeição, como a de correr em circulos, sentar, morder? Eles acreditavam nisso e , como tantas outras vezes, aproximaram-se. A fragrância do sexo, intensa, fazia com que tentassem formas estranhas de cópula, procurando adaptar-se ao corpo estendido no chão. Nas costas? Na cara? Na barriga? Contorcendo-se, chinchando, como dizem os humanos, cobriam a fêmea, como formigas sobre o corpo de uma barata morta.

Foi quando ouviu-se o primeiro estalo e caiu o malhado. O espaço livre foi imediatamente ocupado pelo marrom, que caiu ao segundo estalo, permitindo que o preto se aproximasse e caísse, também, à repetição do inesperado som.. Em segundos, eram cinco machos no chão, filetes de sangue escorrendo-lhes de buracos nos corpos.

Não sabiam, sexos atormentados pela fragrância do cio, ainda latente na atmosfera, que a fêmea fora atropelada por um automóvel; que os estalos eram tiros; que o atirador era o ex-investigador Honorato, no extremo da indignação ao ver tão estranhas tentativas de coito . Não saberiam jamais que, dali a minutos, chegaria a Polícia Militar, que Honorato – logo ele, investigador aposentado- se negaria a entregar a arma a um PM, que haveria um tiroteio, que Honorato morreria.

Eram machos inocentes.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

SÓ DE FOGO




Quando a gente se paquerava, eu disse pra ela: meu trabalho é este mesmo, não tem nada demais, é só um trabalho como outro qualquer, tás me entendendo?Uma coisa que a gente aprende um dia e que depois só sabe fazer aquilo, tás entendendo?
Mas ela ficava toda abestalhada e , quando eu estava no serviço , dava um jeito de passar lá, tás entendendo? E nem me via direito, a não ser que tivesse um binóculo, porque a gente fica muito, mas muito alto mesmo, tás me entendendo? Ela ia pro trabalho dela e, se o prédio que eu tava ficava perto, ela passava lá e ficava olhando o tempo todo que desse. Eu nunca a via , tás entendendo? Porque, não sei se já disse, quando trabalho só me ligo no serviço e estou bem avoado, tás me entendendo.?
No tempo da paquera, a coisa rolava assim: no domingo no forró do Mingo, ela sempre dava um jeito de sentar na minha mesa. A gente foi se acertando e ela dizendo que tinha sido conquistada pela minha coragem, me vendo pendurado lá em cima, tás entendendo? Eu nunca compreendi muito bem essa fissura de mulher, mas mulher é assim mesmo e o que se há de fazer? Não vou negar que até ficava meio besta com a admiração da Foquinha ( que eu chamo ela assim, não me lembro muito bem por quê).
A gente só se via no domingo no forró do MIngo e, pra encurtar a história,a gente resolveu morar junto. Teve outros particulares no meio, mas isso não é coisa pra esse papo, tás me entendendo?
Mas tinha uma coisa que eu tinha que explicar antes do ajuntamento e que se eu tivesse conseguido esse papo de agora não tava rolando. Eu tinha que deixar bem claro: olhaqui, Foquinha, tem um negócio no meu trabalho que você tem de saber, senão fica difícil pra gente se entender, certo?
Aí eu tinha que ter explicado que não é mole ficar pendurado lá em cima, quarenta metros do chão, limpando vidraça, parede, o vento te balançando e todo mundo lá embaixo, formiga.
Eu tinha que jogar as cartas na mesa: só subo de fogo. Se o trabalho dura um dia, é um dia de fogo. Se é uma semana no trampo, uma semana de foguete.. Pinga pura, coragem engarrafada, tás me entendendo?
Tem um porém: e se eu falasse tudo isso e ela deixasse de me achar o bam-bam-bam do pedaço dela? Resolvesse procurar outro cara corajoso de verdade pra admirar e ficar gamada? Tu aí, abria o jogo e perdia a mulher?
Eu não. Tás me entendendo? E vai daí que me liguei só nos preparativos do ajuntamento, sabe como é? E logo já tava levando as coisas para a meia-água nos fundos da casa do Vadão. E no começo foi tudo bom porque no começo tudo é muito bom.A cachaça é boa no começo, a coceira da frieira também.E tem que na lua -de-mel ( vamos chamar assim), eu não tava com trabalho e foi uma semana de bem-ótimo, tás me entendendo?
Mas a vida precisa continuar e o Vadão já tinha me falado de um prédio no centro. Vidros sujos, poeira nos parapeitos, aquela coisa de sempre. Já disse que, de cara limpa, não dá. São duas cordas, presas em duas vigas no topo do prédio e a cada meio metro de cada corda, um nó.O banquinho, que os caras chamam de balancim, fica preso num gancho que a gente prende no nó.Você vai descendo assim: tira a bunda do banquinho, engancha o dedão do pé no nó debaixo, solta o banquinho do nó de cima com uma mão e, com a outra, se segura na corda, tás entendendo. Prende o gancho no nó de baixo, senta de novo e continua a limpeza, certo?Quando tu faz a mudança., tu fica pendurado só na mão e no pé, no ar, balançando feito pipa de papel de seda. Meu irmão, só de fogo.
E vai que na primeira semana depois da lua-de-mel, eu chegava mamado em casa todo dia. A Foquinha achou até graça e vi que a coisa tava nos controles, certo? E o meu trabalho não é de mês corrido, como o de todo mundo. É uns dias em casa, outros no trampo e, quando não trabalho, não bebo, porque não é preciso, tás entendendo?
Ai, pintou coisa nova.
Foi a mulher do Vadão, tenho certeza.Foi ela que enfiou na cabeça da Foquinha este negócio de virar crente, evangélico, como dizem hoje, tás me entendendo? No começo, nem me toquei no assunto. Coisa de mulher, tu fala. Ela vai, tu fica, tu na tua, ela na dela, tás me entendendo? De vez em quando, uma indiretazinha, de que você tem de se salvar, que precisa ler a Bíblia, orar na igreja e coisa e tal, mas eu acho que sou um bom sujeito, trabalhador, não faço mal a ninguém e, por isso, não vejo porque não vou ser salvo se não for pro culto ou não ler a Bíblia, tás entendendo?
Passa uns tempos e Foquinha foi ficando mais encasquetada com a salvação da alma. E um dia, foi rápida e rasteira: a gente tem que casar. O pastor disse que não podemos só viver juntos, sem a bênção da igreja. É pecado. Tentei dizer que o mundo todo vive assim, que pecado é casamento infeliz, mas não teve papo, tás me entendendo? Ela disse que se eu quisesse perder a alma, que perdesse sozinho, mas não tinha o direito de levar ela pro inferno junto.
Jogo pesado, né? Mas também não ia ser eu que ia criar problema, porque, abençoado ou não, eu queria era ficar com a Foquinha, tás me entendendo? E concordei com tudo e ela veio com mais porém: pra casar , eu tinha que me converter , virar irmão da igreja, me entregar pra Jesus, certo? E , num caso assim, precisava evitar as coisas ruins do mundo.
Como a bebida alcóolica.
Pra você não tem problema, disse ela, porque você não é viciado, só tem que parar com aqueles foguetinhos de vez em quando- e ela até sorriu quando lembrou isso, o que quer dizer que, até àquela hora, não tinha crise com os foguetinhos, tás me entendendo?
Agora tinha.
Te põe no meu lugar: digo pra ela que tenho de beber senão não trabalho e se não trabalho não tem sustento? E aí ela descobre que não sou o corajoso que fez ela gamar só de me olhar lá em cima no balancim? Que preciso encher a cara pra encarar a altura?
Não bebo mais, caso com ela, tento trabalhar de cara limpa e despenco já na primeira vez, porque, como te disse, lá em cima, só de fogo?
A vida ficou complicada, tás entendendo?
E então num destes dias , quando os caminhos estão muito  fechados para o nosso entendimento, em que a gente tem de desabafar senão explode, contei  minha história na hora do almoço no serviço, estava eu, o Mingo e um ajudante, tas me entendendo?
O Mingo não sabia direito o que falar, ele é um cara que está sempre pronto para ajudar os amigos,mas neste caso, o silêncio dele , para mim  que conheço bem o cara, já dizia tudo: não podia fazer nada. Mas o ajudante, que conheço de pouco tempo,mas foi arranjado pelo Mingo e se foi o Mingo que arranjou, tudo bem, disse que meu problema não era muito difícil de resolver.
Qual é o negócio da mulher, é você não beber? perguntou . E o teu negócio é beber só na hora do trabalho, pra ter coragem? Acontece, meu irmão, que não é só cachaça que  dá coragem.
E a partir daquele dia, Foquinha não me viu mais de fogo, tas entendendo? Se a condição para ser homem de Deus,evangélico e tal, era não beber bebida alcoólica, tudo jóia. Não bebo mais. Porque naquele dia fiquei conhecendo a maconha.
Tás me entendendo?



terça-feira, 13 de maio de 2008

O OUTRO LADO



Querida filha, refleti muito antes de lhe mandar esta carta. Creio que este é o momento de fazê-lo. Você já tem 21 anos e, sem dúvida, terá condições de compreendê-la.
A última vez em que falei com você faz exatamente 17 anos. Foi quando a visitei duas semanas após separar-me de sua mãe. Depois, aconteceram muitas coisas que nos impediram de qualquer contato pessoal. Sua vida tomou um rumo e a minha, outro. Você deve ter ouvido muita coisa a meu respeito, a maior parte delas não muito elogiosa. Mas não é isso o que importa, agora. Esta carta não tem por objetivo apresentar minhas defesas, nem condenar ninguém. A finalidade dela é permitir a existência do” outro lado” em sua vida. O que significa isso? Significa que você precisa conhecer a minha versão de nossa história. Assim, você será uma pessoa mais completa.Terá mais respaldo para emitir qualquer julgamento. Não viverá na dúvida. Saberá se é preciso mudar conceitos ou reafirmar os conceitos que já tem. Creio que lhe devo isso. Portanto, gostaria de me colocar à disposição para uma conversa franca e adulta. Fica a seu critério marcar o dia, a hora e o lugar. Um beijo de seu pai.

-
O que você achou?
- Meio esquisito pois, ao que me consta, ele nunca lhe escreveu. Mas parece que só quer uma conversa.
- Agora, depois de tantos anos? Não vou lhe dar essa chance.
- Pelo que pude entender, ele não está pedindo nenhuma chance. Ao contrário: está lhe oferecendo uma .
- Como assim?
- Ele diz que você precisa conhecer o outro lado.
- O outro lado do quê?
- Da história de vocês três: dele, sua, de sua mãe...
- Muita pretensão.Você acha que eu e minha mãe vamos perdoá-lo? Um sujeito que deixou a gente por outra mulher?
- Mas ele não está pedindo perdão. Presta atenção nesta frase: “Você deve ter ouvido falar muita coisa a meu respeito, a maior parte delas não muito elogiosa. Mas não é isto o que importa, agora”. O que quis dizer com isso? Que não está preocupado com julgamentos; se será condenado ou absolvido.
- Então, por que precisa falar comigo?
- Ele não disse isso. Colocou-se à disposição para que você fale com ele.
- Mas por quê?
- Repito: ele quer que você tenha conhecimento do outro lado da história.
- Para quê?
- “ Assim você será uma pessoa mais completa. Terá mais respaldo para emitir qualquer julgamento. Não viverá na dúvida. Saberá se é preciso rever conceitos ou reafirmar os conceitos que já tem”: estas frases respondem à sua pergunta?
- Mas se ele pensa que nós esquecemos tudo, está muito enganado.Não vai ser em uma conversinha fiada que irá me dobrar.
- Mas não pretende enganá-la. Pela carta a gente vê que quer ter somente uma conversa franca com você. Ele se considera devedor disso. Não aceita a idéia de que você possa fazer julgamentos com base em apenas uma versão dos fatos. Ele acha que você será infeliz pois nunca saberá se foi justa ou não.
- Ah, minha querida amiga, com relação a meu pai sempre fui justíssima. Ele abandonou minha mãe de repente e fugiu com outra mulher. Deixou a minha mãe sem dinheiro e cheia de dívidas.Nunca se preocupou comigo, com minha saúde, com minha vida escolar. Só pagava pensão porque tinha medo de ser preso. Assim mesmo, mentia sobre quanto ganhava para não ter de pagar o que era justo. Envolveu-se com gente que não presta. Isso por causa da outra mulher dele, que não é flor que se cheire. Quando vivia com minha mãe batia nela. Era neurótico. A família dele, então,nem se fala. Um bando de favelados. Não conheço meus avós, meus tios, nem quero conhecer. É gente mal conceituada.
- Puxa! Você tem bastante informação sobre seu pai.
- E ainda é pouco. Você nem imagina o que sei mais. E é por isso que vou rasgar essa carta idiota, jogar fora e continuar o resto de minha vida sem falar com ele.
- Tudo bem. Você sabe que sempre respeito sua opinião e suas decisões. Mas, só para encerrar: quem foi que deu todas as informações que lhe permitiram essa rejeição incondicional a seu pai?
- Minha mãe, oras!

sexta-feira, 9 de maio de 2008

NA FILA PARA VER BOYBOY



O Boyboy é demais. Quantas noites e dias sonhei em assistir a este show. Essa fila não anda? Será que vai dar para ficar na frente do palco? Quero ver o Boyboy bem de pertinho! Hummm! Aquelas reboladinhas que ele dá... Não sai do meu lado, senão a gente se perde uma da outra e o meu bloquinho de autógrafo está na sua bolsa. Quando a fila andar, não deixa espaço, senão alguma dessas metrecas fura. Cuidado! Só faltava quando a gente chegar na bilheteria, não ter ingresso. Eu morria. Se o Paulinho estivesse aqui , a gente nem precisava ficar na fila. Ele daria um jeito de conseguir os ingressos antes .Acho que só para isso ele servia, mesmo. Como? Não te disse ainda por que acabamos? Sei lá, por um monte de coisa. Ei, dona, pára de empurrar minha bunda! A fila não andou ainda, não vê? Então, pois é, o Paulinho deu pra beber. Você tem razão, ele só bebe um chope e mesmo assim de 15 em 15 dias . Mas, sei lá...Lembra o Gadú, que eu namorava antes dele? Não saía de uma balada com as próprias pernas. Tomava todas. Quanto vexame passei. Aquela vez que vomitou no vestido da Cris. Então.Esse chopinho do Paulinho pode virar mania e , pelo amor de Deus, não quero outro Gadú na minha vida. Se liga, a fila está andando! Então, minha filha, o Paulinho já estava assim, entende, problema pra caramba. Comendo demais. Uma vez, no MacDonalds, mandou ver um superdog e ainda tomou meia coca litro. O que é isso? Você acha que eu ia querer um pançudo do meu lado? Concordo quando você diz que ele é magro, mas pode um dia ficar gordo, certo? Que nem o Gonzaga, que eu namorava lá na minha outra cidade . Um glutão, que só pensava em comida. Tinha quinze anos e vivia fazendo regime. Larguei dele quando ficou diabético. E fiquei uns dois meses só paquerando magrelos. Trauma, minha querida. Cuidado! A Soraia está lá na frente, perto do pipoqueiro. Finge que não vê, vira para o outro lado! Ela vai querer que gente compre o ingresso dela. Muito folgada! Ela que vá para o fim da fila. Só faltava essa. Você gosta do cabelo do Boyboy? Eu acho do caraca! E quando ele balança a cabeça, então.. Uauuu!! Fazendo aquela careta de homem mau, parece que vai atirar a guitarra nas meninas da platéia? Hoje vou gritar : Boyboy, joga o microfone na minha cabeça!! Falar nisso, sabe outra coisa que eu não gostava do Paulinho? A grosseria. Esse negócio dele ser uma pessoa educada, que todo mundo falava, que não gritava nunca, incapaz de dizer palavrão, cheio de com licença e muito obrigado? Não posso negar. Mas fica sabendo que naquele dia do aniversário da Fran, gritou comigo. Isso mesmo. Eu estava olhando para um enfeite no teto, ou era para quem estava entrando, não lembro, e só ouvi o berro: Dircinha!! Uma falta de educação e depois ainda disse que era porque eu não tinha ouvido quando ele me chamou antes. Você sabe que não suporto que gritem comigo, pois me lembra muito bem os berros que meu pai dava em casa, por qualquer coisinha, e a gente vivia sobressaltada, parecia um trovão. Graças a Deus que minha mãe se separou dele. Agüentei tanto meu pai e imagina se eu ia ficar esperando o Paulinho virar um trovão igual a ele. Legal, a Soraia não viu a gente. Se não achar algum trouxa que lhe compre o ingresso, vai ter de encarar o fim da fila e tomara que não encontre mais nenhum na bilheteria. Não sei se você sabe, mas ela andava de olho no Paulinho. Que faça bom proveito.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

O ANARQUISTA



Há tempos, precisei resolver alguns assuntos em Santos e desci ao litoral em uma segunda –feira. Feitos os primeiros contatos, deixadas pendências para a tarde, resolvi comer algo no Bar Carioca, especialmente indicado por amigos que diziam ser servido, ali, o melhor pastel da cidade. O bar fica na Praça Mauá, ao lado da Prefeitura e Câmara Municipal, servindo como ponto de encontro de políticos, não só locais, como também de fora . Para estes, é o tradicional lugar do cafezinho ritualístico que permite aos jornais registrarem-nos em cenas de convívio popular.
No dia em que lá estive, à hora do almoço, em uma das mesas de canto, um grupo discutia política municipal . Acomodei-me em mesa próxima e , lembrando recomendação dos amigos, pedi três pastéis de carne e uma latinha de cerveja. A iguaria confirmava os elogios. Os dentes encontravam carne logo à primeira mordida, ao contrário do que ocorre normalmente, quando percorrem muitos espaços vazios na massa até encontrarem o recheio. Um tempero diferente,nem forte, nem fraco: denso. Enfim, era plenamente justificada a fama dos pastéis do Carioca.
Comia, saboreando cada naco,olhando o movimento lá fora na praça: chegada e saída de ônibus municipais; tráfego de funcionários públicos, empregados de lojas, bancários, indo e vindo do almoço, os desocupados e vagabundos de sempre cochilando nos bancos .Achava curioso o movimento dos que entravam ou saíam dos banheiros públicos subterrâneos. Se você não acompanha atentamente o percurso, parecem sumir ou surgir do nada.
Prestava atenção ao vulto imponente do prédio da Prefeitura, edificação em estilo neoclássico, erguida nos anos 1930.
Eis que, entre meu olhar e o prédio, intromete-se o vulto de um homem magro,muito branco, óculos de aros negros e grossos, camisa social bege e calça preta, meio frouxa. Dirige-se lentamente ao balcão, pede um café cremoso, puro. Servido, pega a xícara e caminha em direção à mesa dos políticos , que calam-se quando se aproxima. Começa a falar:
- Governos não prestam. Dizia Henry Thoureau: o melhor governo é o governo nenhum. E dizem os espanhóis: si hay gobierno, soy contra.Governos interferem na vida das pessoas e sempre para prejudicar. Os homens devem viver em estado de anarquia. Mas não no sentido pejorativo do termo. Do grego an, sem, e archos, governo: sem governo, entendem? Lembrem-se: o melhor governo é o governo nenhum.
Falava baixo, mas de maneira audível , e pausada. Terminado o discurso, bebeu calmamente o café e se retirou, tão tranqüilo como entrara.
Causou estranheza, não a atitude do homem. O discurso fora simples e coerente, os gestos suaves e elegantes. Não admirou-me, também , o fato dos políticos ficarem em silêncio. Sem dúvida conheciam-no e deveriam ter motivos para ouvirem-no respeitosamente. Impressionou-me, sim, o que ocorreu após o término da fala e saída do homem. Ninguém respondeu, nem comentou nada. Retornaram á conversação de antes, sem nenhuma referência ao ocorrido, como se nada tivesse acontecido.
Comentei o fato com o garçom.
- Ninguém liga mais para o Benildo - respondeu, enquanto recolhia o pratinho onde repousavam apenas casquinhas de massa do que outrora foram três pastéis.
Lembrou que, há pelo menos dois anos, Benildo, aposentado há um ano da Prefeitura, onde fora escriturário, fazia o mesmo discurso sempre que via um grupo de políticos . No começo, alguns ainda argumentavam, tentavam iniciar um debate, mas como ele ficava sempre repetindo a mesma coisa, viram que não valia a pena o esforço. Agora, limitam-se a ouvi-lo, cientes de que, logo após falar, ele se retirará, sem aguardar respostas.
- Então ele é uma espécie de retardado?- indaguei
-Não era assim. Sempre foi meio caladão, mas não tinha nenhuma esquisitice. Dava-se bem com os colegas da repartição, com o pessoal aqui do bar. Uns três anos antes de se aposentar, tinha até melhorado de vida. Teria recebido uma herança ou coisa parecida. Dizem que o que deixou o Benildo meio ruim da cabeça foi a separação da mulher. Eu acredito nisso. Ele a adorava. Ninguém sabe porque se separaram. O Benildo sempre foi muito reservado quanto à sua vida pessoal.
Quase tudo parecia justificar o comportamento esquisito de Benildo. Afinal, não seria o primeiro, nem o último a ficar meio desorientado após uma desilusão amorosa. O que eu não conseguia era estabelecer uma ligação entre o drama afetivo de Benildo e seu discurso contra governos. Seria mais lógico se fizesse discursos contra mulheres, contra o casamento. Enfim, como a resposta a tal enigma não tinha a menor importância, a não ser satisfazer uma curiosidade, decidir voltar minha atenção para o que realmente me interessava. Paguei a conta e fui tratar da segunda parte do assunto que me trouxera a Santos.
O funcionário aposentado antigovernista, de camisa social, calças frouxas, óculos de aros grossos teria desaparecido completamente de minhas lembranças não fora uma dessas causalidades que mais parecem tramas sobrenaturais voltadas a nos fazer penetrar em outros destinos.
Ao final da tarde, dirigindo-me para a Rua Amador Bueno, a duas quadras da Prefeitura, onde ficava o estacionamento em que deixara meu carro, vejo Benildo sair de uma papelaria. Trazia uma pequena pasta na mão direita e parecia distraído, o que deve ter sido notado, também, por um garoto que, acelerando os passos, arrebatou-lhe a pasta e atravessou a rua, iniciando uma corrida justamente em minha direção. Não deve ter-me visto, e eu aproveitei para atravessar-me em seu caminho.. Caímos e a pasta ficou ao alcance de minha mão direita. Agarrei-a, o moleque tentou tomá-la, mas ofereci resistência. Desistiu do intento levantou-se e reatou a corrida, sumindo na primeira esquina.
Acabava de levantar-me, cercado por alguns curiosos, sacudindo a sujeita da roupa com a mão esquerda, enquanto que, com a direita, segurava fortemente a pasta, quando vejo Benildo aproximar-se, ar preocupado.
- Tudo bem com o senhor? Está machucado?
- Não. Só um pouco cheio de poeira. Veja: recuperei sua pasta.
- O senhor nem imagina como estou agradecido. Nesta pasta estão documentos importantes que eu ia amanhã levar a meu advogado.
Era curioso observar como Benildo, mesmo em uma situação como aquela, não perdia a suavidade de gestos e voz. Sua excitação era apenas perceptível por um brilho maior no olhar, um ligeiro tremor na mão que me estendia, menos para pegar a pasta do que para apertar a minha. Diante da impossibilidade de fazê-lo- a pasta impedia- apertou-me o punho.
Os poucos curiosos afastaram-se, tecendo comentários sobre a insegurança das ruas; a ação de pivetes no centro da cidade, a falta de policiamento, etc.
- O senhor não quer se limpar melhor? Lavar-se? Vamos até aquela lanchonete. A gente aproveita e toma um café.
Confesso que, em outra circunstância , premido pela necessidade de retornar ao planalto antes de escurecer ( detesto dirigir à noite), teria agradecido , entregue a pasta e ido embora. Mas a inusitada circunstância que me fizera, de novo, estar diante de tão singular personagem fez com que aceitasse o convite.
Em minutos estávamos em uma mesinha da lanchonete, com duas xícaras de café cremoso e dois pãezinhos de queijo à nossa frente.
- Já é a segunda vez, só esta semana, que levo uma trombada desses moleques. Eles ficam perambulando pelo centro, só esperando a oportunidade para roubar alguém. Da outra vez, me levaram a carteira, que, felizmente, não tinha dinheiro, nem documentos importantes. Mas desta vez, se levassem a pasta, eu ia ter muitos problemas.
E, com a mesma calma com que fez o pequeno discurso sobre a desimportância dos governos, Benildo explicou a importância da pasta. Ela continha papéis comprobatórios de que sua renda não aumentara nos últimos seis meses. Seu advogado iria, no outro dia, anexá-los ao processo de divórcio, no Fórum.
- Tenho de pagar uma pensão alimentícia à minha ex-mulher equivalente a 30% de meus ganhos mensais líquidos. A cada seis meses, ela pede investigações sobre meus ganhos reais pois acredita que eles aumentam e eu sonego tais informações para não pagar mais pensão. Entra com petição na Justiça e sou intimado a prestar esclarecimentos.
Uma história comum, acrecentando mais contradição à tese de que aquele homem fazia discursos sistemáticos contra governos devido a um trauma provoca do pela separação conjugal. O garçom estava errado. A explicação só podia ser outra, de percepção mais complexa pois Benildo não aparentava ser alguém com transtornos mentais. Ali, à minha frente, bebendo, a pequenos goles, o café cremoso, cortando com os dedos pedaçinhos de pão de queijo a levando-os à boca, era a imagem da normalidade . Um funcionário aposentado lanchando com um amigo ao cair da tarde.
- Você deveria pedir ao juiz mudança no critério de fixação da pensão –
sugeri.
Mostrou interesse em saber como. Contei-lhe que também era divorciado e que enfrentara, muitos anos antes, problema semelhante ao dele. A pensão, que pagava a meu filho e não à ex-esposa, equivalia a um terço de meus rendimentos líquidos. Achando que eu mentia sobre os ganhos reais, a mulher vivia pedindo informações , via judicial,sobre eles. Até que um dia a Justiça aceitou meu pedido para que a pensão fosse calculada de outra forma. Foi fixada em dois salários mínimos e meio por mês. Assim, mesmo que eu viesse a ter meus rendimentos triplicados, a pensão continuaria a mesma, aumentando somente quando houvesse reajustes do salário mínimo.
- Claro que o novo sitema tem seus inconvenientes. Por exemplo: mesmo que seus rendimentos diminuam, continuará pagando mensalmente o mesmo valor . E caso venha a ficar desempregado, a obrigação mensal será igual.. Como você é aposentado, acho que este não será um problema.
- Como o senhor sabe que sou aposentado?
Para uma resposta satisfatória tive de falar da cena que presenciara de manhã no Bar Carioca e dos esclarecimentos dados pelo garçom.. Sua reação foi previsível:
- Então o senhor, como muita gente aqui na cidade, também deve achar que sou meio maluco?
- Bem...
- Não precisa justificar-se. Eu também acharia se estivesse em seu lugar. Mas saiba que tudo o que falei para aquele grupo de vereadores é o que penso. É bem provável que se eu vivesse no século 19, nos tempos do anarquismo, estaria jogando bombas e causando catástrofes, como aquele anarquista que assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando e provocou a Primeira Guerra Mundial. É claro que os tempos são outros e não tenho idade nem saúde para sair soltando granadas por aí. Mas nada impede que eu diga publicamente àqueles que estão no poder ou que querem chegar a ele, no caso os políticos, o que penso da inutilidade e da nocividade dos governos. Divirto-me quando vou embora, sem lhes dar chances de contestarem meus argumentos. Os que me conhecem, nem tentam. Sabem que é tempo perdido.
Toda essa explicação era dada com a tranquilidade e simplicidade de gestos a que já estava me habituando.
- Bem, não vou prendê-lo mais. Saiba que serei sempre grato pelo que fez hoje. Recuperar meus documentos foi o de menos. O senhor arriscou a vida por mim, pois estes moleques costumam ser violentos nestas ocasiões.
- Realmente, preciso mesmo ir.
Dei-lhe meu cartão, despedimo-nos e, enquanto rodava serra acima, refletindo sobre tudo aquilo, lamentei ter me retirado sem saber a verdadeira razão pela qual , de uns anos para cá, como ele próprio dissera, Benildo passara a nutrir desprezo por qualquer forma de governo, a ponto de ter aquele comportamento incomum.


Os esclarecimentos vieram em forma de carta, que recebi quase um ano depois, quando Benildo e sua esquisitice já não faziam parte de minhas lembranças.
Prezado senhor
Quando receber esta carta, já não estarei mais aqui. Não se impressione: não tenho nenhuma doença terminal, nem pretendo matar-me.A esta altura, estou em Portugal, onde reside uma tia minha, enviuvada recentemente e que convidou-me a morar com ela, em sua quinta. Como já não tenho nada que me prenda ao Brasil, aceitei a oferta.
Não esqueci nosso primeiro e último encontro. Além da gratidão pelo seu feito, senti-me na obrigação moral de lhe contar minha história recente. Por quê? Porque foi a única pessoa nos últimos anos que me concedeu real atenção e a quem, contrariando meus hábitos, revelei alguma coisa de minha vida pessoal.
Casei-me há 10 anos. Dila era filha de um vereador, conhecêmo-nos em uma dessas solenidades de prefeitura e câmara municipal. Atraiu-me primeiro sua beleza: não era nenhuma modelo, mas satisfazia plenamente às minhas pouco exigentes expectativas quanto à estética feminina Com os meses de convivência, surgiram as demais identificações. Agradava-me sobretudo a valorização que ela dava e meus mínimos atos. Isso fazia grande bem à minha auto-estima, não só por partir de mulher que eu amava, mas por causa de minha personalidade. Sempre fui pessoa reservada, tímida, previsível, voltada para a leitura, o que não me deu muita cultura, nem notoriedade, mas aumentou-me a capacidade de autocrfítica e maior conscientização sobre a própria mediocridade. Dila fazia com que me sentisse melhor. E menos rigoroso em minhas autoanálises. Não é preciso dizer que os primeiros tempos de casamento foram felizes, pois eles sempre são. Meu vencimentos na prefeitura, se não nos permitiam uma vida de fausto, possibilitavam o conforto característico dos pequenos burocratas públicos.
Depois, começaram as contrariedades, causadas, principalmente, por problemas financeiros.Tivemos dificuldades, decorrentes, em parte, pela crise conjuntural do país, em parte por meu espírito pouco prático, que me levou a algumas bobagens financeiras. Dila passou a queixar-se da falta de dinheiro, não para as coisas essenciais ( alimentação, vestuário, etc), mas para outros gastos. Dizia que suas amigas sempre possuíam as melhores roupas, faziam as melhores viagens, que os móveis, as casas, os carros dos conhecidos eram sempre melhores que os nossos; que eu era acomodado. As críticas, de início tímidas, apenas caracterizadas por queixas, foram tornando-se explícitas. Surpreendeu-me, um a dia, a primeira qualificação direta: “ Você é um acomodado!”. Teve um forte impacto sobre minha sensibilidade já propensa ao autodescrédito. Imagine Dila, a quem eu tanto amava e cujos elogios sempre contribuiram para inflar-me o ego, chamando-me de acomodado. Quando, porém, o conceito evoluiu para “ incompetente”, o desconforto transformou-se em desconsolo..
O tempo passava e não via como mudar a situação. Não podia suportar a permanente desaprovação de Dila, mas, ao mesmo tempo, como sair daquilo? Sou advogado , tenho até registro na OAB, mas quando e como iria exercer a profissão, se meu regime de trabalho na Prefeitura era de dedicação exclusiva? Comentava isso com Dila, que sempre tinha algum argumento com o qual expunha , ou minha acomodação, ou minha incompetência. Podia- dizia- prestar concurso para outro órgão público; podia sair da Prefeitura e passar a advogar. Qualquer coisa era melhor do que aquele marasmo em que vivíamos, provocado pelas dificuldades financeiras.
Eu não queria arriscar. Não entendia por que, a Dila, a situação mostrava-se tão calamitosa. Não tínhamos nosso próprio apartamento, em bairro decente? Não nos alimentávamos bem? Não tínhamos automóvel ( já gasto pelo tempo, é verdade)? Não fazíamos nossas viagens anuais , durante as minhas férias, a Campos de Jordão ou Litoral Norte? Quanta gente não tinha casa própria, carro, passava fome e até estava desempregada?A tais ponderações, ela respondia com uma frase que atirava-me ao mais fundo dos fossos: “ É só a isso que sua incompetência pode nos levar?
Amava Dila e talvez ame-a ainda. Doía-me, mais do que tudo, saber que já não confiava em mim e , o que é pior, dizia isso de maneira cada vez mais agressiva e implacável.
Foi quando ocorreu o milagre. Um daqueles rotineiros jogos de loteria, que fazia todas as sextas-feiras antes de ir para casa, para o descanso de fim de semana, foi premiado.A quantia, se não me fazia milionário, permitiria que eu solucionase todos os problemas financeiros presentes e vivesse uma vida folgada no futuro. Fiquei zonzo ao constatar tanta sorte. A sensação de felicidade era até angustiante. Pensava em Dila. Agora ela teria melhores roupas que suas amigas; poderíamos ter um carro novo e muito melhor; móveis novos, até uma casa nova.Faríamos viagens ao Exterior. Como Dila seria feliz e como eu ficaria feliz com isso!.
Não bebo nada alcóolico,mas achei que merecia comemorar o fato com pelo menos uma latinha de cerveja. Não sei se foi por causa do efeito do álcool, mesmo na pequena quantidade ingerida; não sei se foi devido à simples pausa na lanchonete antes de ir para a casa: a verdade é que um instante de reflexão conseguiu abrir caminho em meio a euforia. Ocorreu-me que a boa nova não faria Dila necessariamente mudar de idéia quanto à minha competência como provedor de um lar. É claro que ficaria feliz com o que acabara de ocorrer, mas isso seria atribuído somente à sorte, uma incrível e providencial sorte. Mais nada. Talvez meu único mérito consistisse em ter feito o jogo, mas eu não fazia isso rotineiramente há tantos anos? Qual a novidade, o espírito de iniciativa?.
Se o senhor não acha possível que alguém possa ficar triste logo após ganhar na loteria , acredite agora.: eu fiquei Não por muito tempo pois, logo a seguir, veio-me o plano.
Não revelei nada a Dila. No outro dia ,entrei em contato com minha mãe, que, desde a viuvez, morava sozinha, em um velho sítio da família, em Miracatu, no Vale do Ribeira, e convenci-a assumir a propriedade do bilhete premiado. Eu cuidaria de acompanhá-la à Caixa Econômica e ajudá-la em todos os tramites burocráticos em casos assim. Em contrapartida, ela me daria os cartões de saques de aplicações, depósitos, etc, com as respectivas senhas. Por que escolhi minha mãe? Por razões óbvias. Não poderia entregar uma fortuna daquelas a um desconhecido. Como não tenho irmãos, mais dia, menos dia, todo dinheiro viria ter às minhas mãos por herança. Nada mais seguro e mais secreto. Tudo foi feito sem o conhecimento de Dila, é claro.
O dinheiro permitia uma renda mensal três vezes maior do que ganhava na prefeitura.De imediato,saquei uma quantia considerável, com a qual melhorei as condições do sítio, de onde minha mãe não pretendia mudar-se. Dei-lhe todo c onforto que merecia, além de assegurar-lhe uma quantia mensal muito maior do que a irrisória pensão de viúva.
Comecei a seguir, em casa, ao projeto de “ ascensão financeira graças à minha competência”. Disse, inicialmente, que havia conquistado uma vaga de assistente em um escritório de advocacia. Só precisava trabalhar aos sábados ou à noite , em casa mesmo. Isso aumentaria meus ganhos. Os primeiros recursos decorrentes deste trabalho, ainda modestos, não animaram muito Dila, que continuou insatisfeita com nossa precariedade econômica. Mas isso estava nos meus planos. Minha ascensão profissional teria de ser gradativa, para não dar margem a desconfianças. Em virtude das novas relações profissionais decorrentes da tal consultoria, seria natural que passasse a receber propostas de novos trabalhos. Foi o que dei a entender uns dois meses depois. Passei a a retirar mais dinheiro das aplicações. E assim por diante. À proporção que inventava um novo serviço, uma nova consultoria, etc, aumentava o valor de minhas retiradas . Cheguei a comprar um escritório no centro da cidade, mas informei que apenas alugara as salas. Para dar maior credibilidade às minhas muitas atribuições, passei a vir mais tarde para casa, permanecendo algumas horas no escritório após o expediente na prefeitura . Às vezes, ficava sábados inteiros lá, dando conta de uma suposta carga de serviços pendentes. Dila nunca procurava enfronhar-se sobre o que eu fazia, o que não constituia novidade, pois em todos nossos anos de casados nunca se preocupou muito com detalhes sobre meu trabalho.
Fiz questão que conhecesse o escritório e volta e meia a levava até lá, a pretexto de pegar algum papel, uma pasta.
Passados os meses, já sentia na forma como me tratava a confiança restaurada, mais do que isso, admiração . O Benildo acomodado, incompetente, morrera. Creia-me: mais do que todo o conforto que o dinheiro me proporcionava, era isso que me fazia feliz; foi por isso que arquitetei tão inusitado plano.Trocamos de apartamento, de carro, de móveis, viajávamos, íamos a espetáculos, cuidávamos melhor de nossa aparência, enfim, fazíamos sem preocupações as coisas boas que o dinheiro proporciona
A essa altura, o senhor deve estar curioso sobre como preenchia o tempo em que ficava fora de casa, no escritório ou em viagens, fingindo trabalhar. Nada que me desabonasse moralmente, asseguro-lhe. E não poderia ser de outra forma, pois Dila era a mulher a quem amava e a quem dedicava toda minha lealdade. Aproveitava os momentos do falso trabalho para fazer coisas de que gostava, meio idiotas, das quais Dila nunca compartilharia. Passava horas na Gibiteca do Boqueirão lendo revistas em quadrinhos antigos; visitava sebos, fazendo algo maravilhoso que é folhear livros velhos, em busca de antigos recados, remotas anotações; fazia viagens para ver sítios arqueológicos, prédios históricos,múmias.
Mas um dia, tudo acabou. O governo federal, para combater a inflação, congelou por tempo indeterminado, todos os ativos do País. Ninguém poderia mais sacar rendimentos de aplicações financeiras. Das contas correntes, só era permitido retirar uma quantia mínima ou salários. .
Não é difícil imaginar o resto. Precisei revelar a Dila a origem de meus recursos. Consegui provar o acerto na loteria, a abertura das contas e as aplicações. Mas, desgraçadamente, não a convenci de meus reais propósitos. Como acreditar que alguém tivesse idéia tão maluca somente para recuperar a credibilidade pessoal perante a esposa? Não. Provavelmente tinha outra mulher ou outras mulhres. Jamais acreditaria que, nas horas ou dias que passava ausente de casa , a pretexto de trabalhar, estaria fazendo aquelas coisas idiotas de que lhe falava. Quem escondia da esposa ter ganho um elevado prêmio da loteria, esconderia qualquer outra coisa.Não. Se, antes, desacreditava de minha competência para manter um lar, agora não confiava em minha fidelidade e integridade moral. Pediu o divórcio.
Entende, agora, porque detesto governos?