terça-feira, 27 de maio de 2008

NA UTI DA ALA 2



As enfermeiras não sabem mais o que fazer com o paciente da UTI da Ala 2, que está dando muito trabalho, arriscando a própria vida. Não pára de se mexer e demonstra irritação. Sabem que o doente não pode falar, por causa do tubo de respiração que lhe penetra a traquéia, mas ouve-as e, por isso, dizem-lhe para ficar calmo , em seu próprio benefício, mas ele faz gestos nervosos , querendo retirar os aparelhos. Ninguém sabe quem é. Fora encontrado inconsciente, caído em uma calçada, sem nenhum documento consigo.
O doente da UTI da Ala 2 não se conforma por estar ali, paralisado, sem poder falar com ninguém. Saiu do estado de inconsciência, ouve as enfermeiras comentarem o que lhe ocorrera. Tenta falar, mas não consegue. Pode mexer um pouco o braço direito e procura, com sofridos movimentos, chamar a atenção das duas mulheres. Elas pedem que se acalme, dizem-lhe para não se movimentar muito e, com palavras cuidadosas, tentam explicar-lhe o que ocorrera, informando-o sobre seu estado clínico. Mas ele não quer receber explicações, quer explicar-se. Em vão.
O médico alerta as enfermeiras de que a ansiedade e a tensão são prejudiciais para a recuperação do doente da UTI da Ala 2 e que, por isso, caso se mostre muito agitado, devem sedá-lo. Isso já havia sido feito uma vez e as enfermeiras estão preocupadas ante a possibilidade de terem de fazê-lo de novo. Repetem os conselhos para que o doente se acalme, evitando, assim, a medicação. Mas o paciente parece cada vez mais nervoso e sua irritação aumenta quando olha para o relógio da parede em frente.
O doente da UTI da Ala 2 quer que compreendam que às oito horas da noite aproximam-se. Se não conseguirem identificá-lo, não poderão avisar à sua mulher, que o está esperando naquele horário. Como manter-se, portanto, calmo, se é impossíve desviar os olhos do maldito relógio na parede em frente, cujos ponteiros movimentam-se mais ameçadores do que o pêndulo do conto de Poe?
As enfermeiras da UTI da Ala 2 já se preparam para aplicar a segunda dose de sedativo no paciente, que não pára de se mexer, arriscando-se a soltar todos os conectores que lhe monitoram o organismo. E intuindo o que está prestes a acontecer novamente, ele intensifica os parcos movimentos que lhe permitem a fraqueza: levantar o braço, o joelho e os músculos da face, todos do lado direito do corpo.
O que o doente da UTI da Ala 2 pretende é alertar que já são sete horas da noite e, sendo sedado de novo, poderá não acordar antes das oito. E não conseguirá comunicar-lhes, a tempo, que precisam avisar à sua mulher de que não chegará no horário previsto. Só quer uma chance para revelar um número de telefone. O doente da UTI da Ala 2 desespera-se porque não consegue comunicar o desejo de se comunicar.
Minutos após ter-se ausentado, uma das enfermeiras da UTI da Ala 2 retorna, confabula com a companheira e aplicam-lhe apenas meia dose de sedativo, conforme a nova determinação do médico. A idéia é conter os movimentos bruscos e, ao mesmo tempo, mantê-lo consciente, eliminando os riscos de agravamento do quadro.
Meio sedado, o paciente da UTI da Ala 2 sente-se lasso, de raciocínio lento e a ansiedade é substituída por melancolia quando olha o relógio da parede em frente. Parece flutuar e o esforço , agora, não é para se comunicar com as enfermeiras e, sim, recapitular fatos recentes da vida. Não lembra como tudo começou, mas a verdade é que seu relacionamento com Mara anda complicado. Os 12 anos de casamento, com todas as suas idiossincrasias , estão desaguando nos últimos 12 meses , recheando-os de desconfortos psicológicos. Transpuseram montanhas antes e, agora, não superamn formigueiros. Entre eles, os horários. Irritava-a profundamente que ele não cumprisse horários, magoava-o que ela se irritasse. Talvez, inconscientemente, para compensar todas as concessões anteriores ( não fumar, não beber, não falar alto, não palitar os dentes, não visitar os amigos, não andar depressa , não assistir ao futebol na TV, não discutir política, não...) é que ele não conseguia cumprir o quesito “ chegar- na- hora- certa- do almoço- e- do- jantar”, o que a levava à beira da histeria. E, há um mês, antes que tudo desmoronasse, firmaram um acordo: não precisava vir almoçar em casa, mas, à noite, tinha de chegar às oito horas. Em caso de atraso, avisar antes. Se fosse chegar atrasado e não avisasse, não precisava chegar mais.
As enfermeiras não sabem e talvez nunca saibam por que é que o paciente da UTI da Ala 2 está dando tanto trabalho, arriscando a própria vida.

Nenhum comentário: