terça-feira, 20 de maio de 2008

SETE BILHETES



Assim que entrou na sala da casa, de regresso do hospital, onde a patroa , Dona Bia, acabara de ser internada, vítima de crise nervosa, a empregada viu alguns papéis sobre a mesinha de centro. Ao lado, um envelope amarelo, grande. Não reparara neles quando chegara por volta das 8 horas desta manhã, pois tivera de socorrer Dona Bia, encontrada semidesfalecida no quarto. Mal tivera tempo de ligar para pedir ajuda à irmã da patroa, residente a uma quadra dali, e que possuía automóvel.
Agora, precisava colocar a casa em ordem. Quando saíra para sua folga semanal, na tarde de sábado, achara a patroa um pouco esquisita, mas, também, pudera: fazia duas semanas que perdera o marido, assassinado por assaltantes Mas não esperava encontrá-la em estado tão deplorável nesta manhã de segunda., a ponto de precisar levá-la ao hospital.
Notou que os papéis sobre a mesinha de centro eram parecidos com bilhetes. O envelope não trazia chancela do Correio e tinha algumas frases escritas no verso. Inquiriu o porteiro pelo interfone:
- Você lembra quem deixou este envelope para minha patroa?
- Foi a secretária do falecido Dr. Miguel que me entregou esta manhã.Ela disse que não trouxe antes porque esperou a patroa voltar daquela viagem que fez após a morte do patrão. Eu mesmo entreguei o envelope pessoalmente para Dona Bia e ela parecia estar bem.
Dona Isis, a secretária, costumava trazer papéis do escritório de advocacia do patrão, por isso era conhecida dos porteiros.
Os fatos da noite em que o Dr. Miguel morreu deram a bilhetes um significado especial naquela casa. A empregada não resistiu à tentação de ler os que estavam na mesinha de centro.

Primeiro

Escrito em papel de caderno escolar ,não parecia bem um bilhete. Era mais uma troca de mensagens entre duas garotas: "Jéssica, você tem alguma coisa com o Edu?/ Não, já acabou faz tempo./ Tem certeza? Não quero magoar você./
Tenho. Já esqueci o Edu./OK. Tá bom. Gosto muito de você, você sabe".
Segundo

“ Nossa lembrança de ...felizes em Pr...” O texto truncado estava redigido atrás de uma foto, rasgada ao meio e da qual sobrara apenas uma imagem inteira, de um jovem sorridente. A imagem extraviada deveria pertencer a uma mulher, visto ser feminina a mão, de longos dedos e unhas pintadas, rasgada à altura do pulso,pousada sobre o ombro direito do rapaz. Embaixo, mais fragmento de texto: ...” amor...embro...002”

Terceiro

“ Que bom se a gente tivesse sózinhos, né? Não dava pra despensar essa tua sobrinha?” , dizia, ferindo o vernáculo, o terceiro bilhete, escrito em um guardanapo, o texto borrado aqui e ali pelo que deveriam ser manchas de gordura ou bebida.

Quarto

Impresso de uma correspondência enviada por e-mail:"Corri para ver se alguém tinha enviado uma mensagem para mim. Corri, cansei e não encontrei nada.Tudo bem, não enviaram. Mas eu continuo insistindo. Envio várias mensagens. Pensei muito em você, como sempre. Isso não é novidade" .

Quinto

Na folha arrancada de uma agenda: “ Miguel, aí estão os quatro bilhetes. Um eu achei atrás da igreja; o outro, no lixo do meu prédio e o terceiro, o e-mail, na porta da Prefeitura. . A foto rasgada é de um primo meu, que a esqueceu em minha casa no dia que rompeu com a namorada.. Acho que, agora, juntando aquele que lhe dei, encontrado no ponto do ônibus - o do papel com coraçõezinhos vermelhos - já dá para tocar seu plano maluco. Sei que é meio estranha esta minha mania de colecionar bilhetes que acho por aí, porém, mais esquisita, ainda, e essa sua idéia de usar alguns deles em um projeto literário. O que vai escrever? Um romance, um conto, um ensaio? Que tipo de ligação vai fazer com bilhetes tão diferentes, de procedências tão distintas? Em todo caso, você é que está com a mania de escritor, deve saber o que está fazendo. Um abraço do Jair.”

Sexto




Escrito no próprio envelope amarelo. Letra do Dr. Miguel, a empregada a conhecia bem. Endereçado à secretária dele:” Dona Isis, por favor guarde consigo este envelope e me entrega na segunda-feira. Não deixe no escritório porque são coisas pessoais. Um abraço e um bom fim de semana”.

Sétimo

O sétimo bilhete, o dos coraçõezinhos vermelhos, não fazia parte do conteúdo do envelope amarelo. Estava na lembrança da empregada, que o lera na manhã seguinte à noite em que o patrão fora morto.Dizia: “ Quando é que você vai arranjar um tempo para nós dois? Estou morrendo de saudades. Inventa alguma história para a bruxa da sua mulher, ela é burra, vai acreditar”.
O bilhete fora encontrado pela patroa no bolso de um paletó e a deixara furiosa, a ponto de não permitir ao marido entrar em casa à noite. Ele não pôde, sequer, falar com ela pelo interfone ou celular. Perambulando , quem sabe a caminho de algum hotel , o Dr. Miguel foi assassinado por dois assaltantes em uma dessas esquinas escuras da cidade.

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