Querida filha, refleti muito antes de lhe mandar esta carta. Creio que este é o momento de fazê-lo. Você já tem 21 anos e, sem dúvida, terá condições de compreendê-la.
A última vez em que falei com você faz exatamente 17 anos. Foi quando a visitei duas semanas após separar-me de sua mãe. Depois, aconteceram muitas coisas que nos impediram de qualquer contato pessoal. Sua vida tomou um rumo e a minha, outro. Você deve ter ouvido muita coisa a meu respeito, a maior parte delas não muito elogiosa. Mas não é isso o que importa, agora. Esta carta não tem por objetivo apresentar minhas defesas, nem condenar ninguém. A finalidade dela é permitir a existência do” outro lado” em sua vida. O que significa isso? Significa que você precisa conhecer a minha versão de nossa história. Assim, você será uma pessoa mais completa.Terá mais respaldo para emitir qualquer julgamento. Não viverá na dúvida. Saberá se é preciso mudar conceitos ou reafirmar os conceitos que já tem. Creio que lhe devo isso. Portanto, gostaria de me colocar à disposição para uma conversa franca e adulta. Fica a seu critério marcar o dia, a hora e o lugar. Um beijo de seu pai.
- O que você achou?
- Meio esquisito pois, ao que me consta, ele nunca lhe escreveu. Mas parece que só quer uma conversa.
- Agora, depois de tantos anos? Não vou lhe dar essa chance.
- Pelo que pude entender, ele não está pedindo nenhuma chance. Ao contrário: está lhe oferecendo uma .
- Como assim?
- Ele diz que você precisa conhecer o outro lado.
- O outro lado do quê?
- Da história de vocês três: dele, sua, de sua mãe...
- Muita pretensão.Você acha que eu e minha mãe vamos perdoá-lo? Um sujeito que deixou a gente por outra mulher?
- Mas ele não está pedindo perdão. Presta atenção nesta frase: “Você deve ter ouvido falar muita coisa a meu respeito, a maior parte delas não muito elogiosa. Mas não é isto o que importa, agora”. O que quis dizer com isso? Que não está preocupado com julgamentos; se será condenado ou absolvido.
- Então, por que precisa falar comigo?
- Ele não disse isso. Colocou-se à disposição para que você fale com ele.
- Mas por quê?
- Repito: ele quer que você tenha conhecimento do outro lado da história.
- Para quê?
- “ Assim você será uma pessoa mais completa. Terá mais respaldo para emitir qualquer julgamento. Não viverá na dúvida. Saberá se é preciso rever conceitos ou reafirmar os conceitos que já tem”: estas frases respondem à sua pergunta?
- Mas se ele pensa que nós esquecemos tudo, está muito enganado.Não vai ser em uma conversinha fiada que irá me dobrar.
- Mas não pretende enganá-la. Pela carta a gente vê que quer ter somente uma conversa franca com você. Ele se considera devedor disso. Não aceita a idéia de que você possa fazer julgamentos com base em apenas uma versão dos fatos. Ele acha que você será infeliz pois nunca saberá se foi justa ou não.
- Ah, minha querida amiga, com relação a meu pai sempre fui justíssima. Ele abandonou minha mãe de repente e fugiu com outra mulher. Deixou a minha mãe sem dinheiro e cheia de dívidas.Nunca se preocupou comigo, com minha saúde, com minha vida escolar. Só pagava pensão porque tinha medo de ser preso. Assim mesmo, mentia sobre quanto ganhava para não ter de pagar o que era justo. Envolveu-se com gente que não presta. Isso por causa da outra mulher dele, que não é flor que se cheire. Quando vivia com minha mãe batia nela. Era neurótico. A família dele, então,nem se fala. Um bando de favelados. Não conheço meus avós, meus tios, nem quero conhecer. É gente mal conceituada.
- Puxa! Você tem bastante informação sobre seu pai.
- E ainda é pouco. Você nem imagina o que sei mais. E é por isso que vou rasgar essa carta idiota, jogar fora e continuar o resto de minha vida sem falar com ele.
- Tudo bem. Você sabe que sempre respeito sua opinião e suas decisões. Mas, só para encerrar: quem foi que deu todas as informações que lhe permitiram essa rejeição incondicional a seu pai?
- Minha mãe, oras!
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