sexta-feira, 30 de maio de 2008

PENTE DE MOTEL


Eu a imagino lá, sentada no sofá , de frente para a porta de entrada do apartamento, fingindo autocontrole. Ao falar, em tais ocasiões, força uma voz sussurrada, uma coisa de quem está começando a ficar rouco.Para mim, que a conheço bem , a falsa calma é denunciada por tiques nervosos que, nela, só nela- é incrível, meu Deus!- é diferente de todo mundo.Balançar uma das pernas cruzadas? Não. Retorcer as mãos, dedos entrelaçados? De forma alguma. Nervosa, tentando aparentar calma, ela faz movimentos no lado esquerdo do rosto. Um repuxar rápido, apertando o olho, leva-a a subir o canto do lábio , tudo como a querer, pela esquerda, fazer o queixo tocar a fronte.O estranho movimento é repetido a cada 30 segundos.
 Conversamos várias vezes sobre  sua descoberta: o pente de motel no bolso do paletó cinza. “ Love`s”, o nome ridículo impresso em vermelho sobre o rosa-leite-com groselha. Descobrira-o em uma revista de rotina. Não era seu hábito revolver-me bolsos, era zelo quando a roupa ia ser lavada. E lá estava o pente. Pequeno, de plástico mole. Quem o inventou talvez ache que negros não vão a motéis. Pentear carapinhas com tal objeto retorcendo –se ao menor puxão? Há 15 dias, o instrumento de minha tortura. Nada a convenceria quanto à sua origem.
- Alguém do escritório colocou-o aí de gozação.
A face esquerda repuxando, o olho esmagado por pálpebras, o queixo querendo subir; o sussurro:
    -Você disse que ninguém lhe faz brincadeiras no escritório, pois é considerado o chefe mais sério.
O sussurro.Por que ela não gritava como outra esposa qualquer? Por que não lhe jogara uma das panelas na cabeça, o colocara porta afora? Não. Nem na descoberta fatídica fizera isso. Surgira na sala com o objeto na mão. A face esquerda...etc.E o sussurro.Tudo bem. Então, alguém o colocara lá. Talvez fosse até eu mesmo. Sem querer pegara em algum lugar
- Em algum lugar, onde? Pente de motel só se encontra em motel.
E no bolso de meu paletó cinza, é claro.Durante quinze dias, na saída e na chegada, o mantra:
- Já tem uma explicação para mim?
Há três dias, decidiu ela mesma terminar a tortura diária. Disse que, se eu não tivesse  uma história convincente, não precisava voltar para casa após o trabalho.
E, enquanto eu me retirava, sentou-se no sofá, o pente entre as mãos. O insuportável sussurro de pré-rouquidão; o  intragável repuxar da face paralisada foram gestos que conheci e aprendi a odiar por duas  semanas porque não conseguia explicar a presença do maldito objeto no bolso de meu paletó.
Mas agora sei.


No dia  em que me foi dado o prazo fatal, não sabia. E, ironia,  tive que passar a noite em  um motel , situado à margem da estrada que percorro caminho do trabalho.  Karinho`s. Deus meu , por que nomes de motéis têm de ser tão obviamente  idiotas?
Recordo de minha primeira pousada ali, a primeira fora de casa desde meu casamento. Deixei a roupa que usei durante o dia cuidadosamente dobrada sobre a mesinha da saleta de entrada.Teria de vesti-la de novo no outro dia, no serviço, e não convinha que estivesse amarfanhada.
Reparei nos utensílios  sobre o gabinete da pia: toucas de plástico,preservativos,miniaturas de  sabonetes, perfumes, escovas , pasta de dente.
E pentes.Com o nome  do motel gravado. Propaganda? Mas alguém leva isso para casa? Casados não o fazem,por motivos óbvios; solteiros também não,porque são de má qualidade, quebradiços,feios.Qual a utilidade da propaganda no pente,então? Mistérios de motel.
Não telefonei para casa;mas deixarei o celular ligado. Alimentava a esperança de que ela me ligasse, levada pelo inusitado de minha primeira ausência noturna após tantos anos casados.
Não ligou. Confirmava, assim, a intenção  de só aceitar contato comigo se fosse para obter explicações convincentes.
De manhã,  cheguei  no serviço e dirigi-me diretamente para minha sala.O momento delicado que vivia, somado à roupa repetida, deixava-me inseguro. Queria evitar ao máximo contatos  pessoais. Felizmente, não havia reunião agendada, nem entre chefias, nem com funcionários.
Perguntei à secretária se havia ligações para mim Não. Pedi e trouxeram-me, minutos depois, café com leite e pão com manteiga, torrado na chapa..Nada de inusitado.Muitas outras vezes fiz igual desjejum no escritório.
Rotina semelhante repetiu-se por mais três dias.Continuei no motel. Comprei mais algumas peças de roupa,  utensílios pessoais. Nenhum contato por parte dela. Também resisti e não a procurei. Mas sabia ser uma situação insuportável  por muito tempo. Até mesmo por razões práticas, não dava para continuar vivendo em um motel. Sem falar que ninguém, no serviço e em meu circulo mais próximo de amizades, conhecia meu novo cotidiano. Procurava portar-me como se nada de anormal estivesse acontecendo.
E eis que no quarto dia,acendeu-se a luz. Foi quando aquele chefe de divisão da empresa entrou em minha sala. O cinza de seu terno atingiu-me como cor fosforecente.
A lembrança veio rápida.Na última reunião de chefias, ocorrida há um mês,  vestíamos ternos semelhantes.Fazia calor e todos colocamos os paletós nos encostos das cadeiras. Meu Deus, como não pensei nisso antes? Ao sairmos da reunião, pegamos os paletós trocados. O pente de motel estava no bolso do paletó dele, não no meu.
 Contei-lhe toda a história, ele a  ouviu com expressão entre divertida, curiosa e preocupada. Sem dúvida, jamais passou  por sua cabeça que eu um dia  lhe faria tais  confidências . Nem pela minha. Mas tratava-se de minha vida e, nesta hora, o executivo fechado, de poucas brincadeiras, precisa despir-se da sisudez.
Confirmou a possibilidade de ser mesmo dele o paletó , com o pente  no bols . Estivera dias antes, com a mesma roupa, em um motel, com uma de suas várias namoradas.
 Entretanto, como essa confirmação iria ajudar-me?  Os paletós são muito parecidos, em cor e tamanho.Argumentou : mesmo  que ele fosse , pessoalmente, contar à minha mulher o ocorrido,  levando o paletó trocado como prova, como convencê-la de  que aquilo não era apenas parte do álibi entre colegas? Que o verdadeiro paletó , depositário da prova do crime, era, mesmo, aquele  no armário de casa?
Pedi para examinar o  paletó.E uma luz substituiu o cinza do dia.

Estou aqui,diante dela,que sussura:
- E então, tem a resposta?
Ao perguntar,  não me olha. Fita o embrulho que seguro. Ao invés de responder, peço que me traga o paletó depositado na gaveta do quarto.Ela atende.
Quando volta, peço que examine atentamente  .Ela o faz. Sempre em silêncio. Terminado o exame, fita-me novamente, com uma interrogação no olhar. Como previ, ela não observou o detalhe. Mostro-lhe o embrulho que trago.
-  Aqui está o terno de um colega que, há 30 dias, participou comigo de uma reunião de trabalho. Como você vê, é idêntico ao meu.
Estendo o paletó e peço que o examine.Ela o revira entre as mãos.
- É igual ao seu. O que quer dizer tudo  isso, afinal?
- Esse é o meu paletó. No dia da reunião, meu colega pegou-o por engano. E,também sem notar, , peguei o dele, que tinha o pente no bolso.
Olhou-me incrédula e seu sussurro, agora,tinha algo de raiva.
-  Acredita que sou idiota? Você pode muito bem ter comprado um terno igualzinho ao seu  e inventado essa história.
- Então,peço que você pegue a calça do meu terno lá no quarto.
-Ela o faz. Sua rapidez  mostrava que, agora, a curiosidade move-lhe os gestos.
Solicito de novo.
- Veja as etiquetas do paletó e da calça.
Então ela nota. São diferentes.Seu olhar traza, agora, algo de perplexidade.
Mostro-lhe as etiquetas da calça e do terno do meu amigo. Desnecessário dizer que também são diferentes.  
Então, não resisto ao gesto teatral: destroco as peças, juntando cada uma delas a seu par original.
- Este é meu terno. Este é o terno de meu amigo. Este é meu paletó.Este é o de meu colega.
Olha-me desconfiada. Mas não se dá por vencida. Pensa por alguns segundos, em busca de alguma explicação mais condizente com suas teses. Não lhe dou  tempo para maiores raciocínios.Preciso terminar logo com aquilo.
- Você sabe que eu não tive condições de trocar as peças no tempo em que estive aqui após o encontro do pente , pois você trancou o terno na gaveta.Você sabe que estas peças que trouxe agora me foram dadas realmente por meu colega de trabalho.E, para que não paire nenhuma dúvida, veja isso aqui.
E  entrego-lhe o extrato de cartão de crédito de meu colega, mostrando que seu terno fora comprado há seis meses, angtes de todos estes acontecimentos. Ou seja, eu não poderia ter comprado as peças agora,  para criar um álibi.
Não, ela não se atira em meus braços pedindo-me  perdão. Não, ela não vai para o quarto chorar, arrependida. Não, ela não ri,mesmo nervosamente, solicitando-me que esqueçamos episódio tão ridículo.
Ela entrega o terno de meu amigo e pede-me que o devolva . Recolhe minhas peças e as leva  para quarto. E depois, não me dirige mais a palavra.

Amanhece. Como sempre, acordo antes dela, preparo o café, faço o desjejum e e preparo- me para sair, antes dela levantar-se. Nada diferente de antes, se não a ouvisse chamar do quarto.
- Quero  me esclareça uma coisa, mas não precisa ser agora.Não quero atrasá-lo.Pode ser quando você voltar.
Pergunto  o quê. Ela sussurra:

- Onde você esteve e o que fez nos três dias  em que não dormiu em casa?  

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