Eu a imagino lá, sentada no sofá , de frente para a
porta de entrada do apartamento, fingindo autocontrole. Ao falar, em tais
ocasiões, força uma voz sussurrada, uma coisa de quem está começando a ficar
rouco.Para mim, que a conheço bem , a falsa calma é denunciada por tiques
nervosos que, nela, só nela- é incrível, meu Deus!- é diferente de todo
mundo.Balançar uma das pernas cruzadas? Não. Retorcer as mãos, dedos
entrelaçados? De forma alguma. Nervosa, tentando aparentar calma, ela faz movimentos
no lado esquerdo do rosto. Um repuxar rápido, apertando o olho, leva-a a subir
o canto do lábio , tudo como a querer, pela esquerda, fazer o queixo tocar a
fronte.O estranho movimento é repetido a cada 30 segundos.
Conversamos
várias vezes sobre sua descoberta: o
pente de motel no bolso do paletó cinza. “ Love`s”, o nome ridículo impresso em
vermelho sobre o rosa-leite-com groselha. Descobrira-o em uma revista de
rotina. Não era seu hábito revolver-me bolsos, era zelo quando a roupa ia ser
lavada. E lá estava o pente. Pequeno, de plástico mole. Quem o inventou talvez
ache que negros não vão a motéis. Pentear carapinhas com tal objeto retorcendo
–se ao menor puxão? Há 15 dias, o instrumento de minha tortura. Nada a
convenceria quanto à sua origem.
- Alguém do escritório colocou-o aí de gozação.
A face esquerda repuxando, o olho esmagado por
pálpebras, o queixo querendo subir; o sussurro:
-Você
disse que ninguém lhe faz brincadeiras no escritório, pois é considerado o
chefe mais sério.
O sussurro.Por que ela não gritava como outra
esposa qualquer? Por que não lhe jogara uma das panelas na cabeça, o colocara
porta afora? Não. Nem na descoberta fatídica fizera isso. Surgira na sala com o
objeto na mão. A face esquerda...etc.E o sussurro.Tudo bem. Então, alguém o colocara
lá. Talvez fosse até eu mesmo. Sem querer pegara em algum lugar
- Em algum lugar, onde? Pente de motel só se
encontra em motel.
E no bolso de meu paletó cinza, é claro.Durante
quinze dias, na saída e na chegada, o mantra:
- Já tem uma explicação para mim?
Há três dias, decidiu ela mesma terminar a tortura
diária. Disse que, se eu não tivesse uma
história convincente, não precisava voltar para casa após o trabalho.
E, enquanto eu me retirava, sentou-se no sofá, o pente
entre as mãos. O insuportável sussurro de pré-rouquidão; o intragável repuxar da face paralisada foram
gestos que conheci e aprendi a odiar por duas semanas porque não conseguia explicar a
presença do maldito objeto no bolso de meu paletó.
Mas agora sei.
No dia em que me foi dado o prazo fatal, não sabia.
E, ironia, tive que passar a noite em um motel , situado à margem da estrada que
percorro caminho do trabalho. Karinho`s.
Deus meu , por que nomes de motéis têm de ser tão obviamente idiotas?
Recordo de minha primeira
pousada ali, a primeira fora de casa desde meu casamento. Deixei a roupa que
usei durante o dia cuidadosamente dobrada sobre a mesinha da saleta de entrada.Teria
de vesti-la de novo no outro dia, no serviço, e não convinha que estivesse
amarfanhada.
Reparei nos
utensílios sobre o gabinete da pia:
toucas de plástico,preservativos,miniaturas de
sabonetes, perfumes, escovas , pasta de dente.
E pentes.Com o nome do motel gravado. Propaganda? Mas alguém leva
isso para casa? Casados não o fazem,por motivos óbvios; solteiros também
não,porque são de má qualidade, quebradiços,feios.Qual a utilidade da
propaganda no pente,então? Mistérios de motel.
Não telefonei para
casa;mas deixarei o celular ligado. Alimentava a esperança de que ela me
ligasse, levada pelo inusitado de minha primeira ausência noturna após tantos
anos casados.
Não ligou. Confirmava,
assim, a intenção de só aceitar contato
comigo se fosse para obter explicações convincentes.
De manhã, cheguei
no serviço e dirigi-me diretamente para minha sala.O momento delicado
que vivia, somado à roupa repetida, deixava-me inseguro. Queria evitar ao
máximo contatos pessoais. Felizmente,
não havia reunião agendada, nem entre chefias, nem com funcionários.
Perguntei à secretária se
havia ligações para mim Não. Pedi e trouxeram-me, minutos depois, café com
leite e pão com manteiga, torrado na chapa..Nada de inusitado.Muitas outras
vezes fiz igual desjejum no escritório.
Rotina semelhante repetiu-se
por mais três dias.Continuei no motel. Comprei mais algumas peças de roupa, utensílios pessoais. Nenhum contato por parte
dela. Também resisti e não a procurei. Mas sabia ser uma situação insuportável por muito tempo. Até mesmo por razões
práticas, não dava para continuar vivendo em um motel. Sem falar que ninguém,
no serviço e em meu circulo mais próximo de amizades, conhecia meu novo
cotidiano. Procurava portar-me como se nada de anormal estivesse acontecendo.
E eis que no quarto
dia,acendeu-se a luz. Foi quando aquele chefe de divisão da empresa entrou em
minha sala. O cinza de seu terno atingiu-me como cor fosforecente.
A lembrança veio
rápida.Na última reunião de chefias, ocorrida há um mês, vestíamos ternos semelhantes.Fazia calor e
todos colocamos os paletós nos encostos das cadeiras. Meu Deus, como não pensei
nisso antes? Ao sairmos da reunião, pegamos os paletós trocados. O pente de
motel estava no bolso do paletó dele, não no meu.
Contei-lhe toda a história, ele a ouviu com expressão entre divertida, curiosa e
preocupada. Sem dúvida, jamais passou por
sua cabeça que eu um dia lhe faria
tais confidências . Nem pela minha. Mas
tratava-se de minha vida e, nesta hora, o executivo fechado, de poucas
brincadeiras, precisa despir-se da sisudez.
Confirmou a possibilidade
de ser mesmo dele o paletó , com o pente
no bols . Estivera dias antes, com a mesma roupa, em um motel, com uma
de suas várias namoradas.
Entretanto, como essa confirmação iria
ajudar-me? Os paletós são muito
parecidos, em cor e tamanho.Argumentou : mesmo que ele fosse , pessoalmente, contar à minha
mulher o ocorrido, levando o paletó
trocado como prova, como convencê-la de que
aquilo não era apenas parte do álibi entre colegas? Que o verdadeiro paletó ,
depositário da prova do crime, era, mesmo, aquele no armário de casa?
Pedi para examinar o paletó.E uma luz substituiu o cinza do dia.
Estou aqui,diante
dela,que sussura:
- E então, tem a
resposta?
Ao perguntar, não me olha. Fita o embrulho que seguro. Ao
invés de responder, peço que me traga o paletó depositado na gaveta do quarto.Ela
atende.
Quando volta, peço que
examine atentamente .Ela o faz. Sempre
em silêncio. Terminado o exame, fita-me novamente, com uma interrogação no
olhar. Como previ, ela não observou o detalhe. Mostro-lhe o embrulho que trago.
- Aqui está o terno de um colega que, há 30
dias, participou comigo de uma reunião de trabalho. Como você vê, é idêntico ao
meu.
Estendo o paletó e peço
que o examine.Ela o revira entre as mãos.
- É igual ao seu. O que
quer dizer tudo isso, afinal?
- Esse é o meu paletó. No
dia da reunião, meu colega pegou-o por engano. E,também sem notar, , peguei o
dele, que tinha o pente no bolso.
Olhou-me incrédula e seu
sussurro, agora,tinha algo de raiva.
- Acredita que sou idiota? Você pode muito bem
ter comprado um terno igualzinho ao seu
e inventado essa história.
- Então,peço que você
pegue a calça do meu terno lá no quarto.
-Ela o faz. Sua rapidez mostrava que, agora, a curiosidade move-lhe os
gestos.
Solicito de novo.
- Veja as etiquetas do
paletó e da calça.
Então ela nota. São
diferentes.Seu olhar traza, agora, algo de perplexidade.
Mostro-lhe as etiquetas
da calça e do terno do meu amigo. Desnecessário dizer que também são
diferentes.
Então, não resisto ao
gesto teatral: destroco as peças, juntando cada uma delas a seu par original.
- Este é meu terno. Este
é o terno de meu amigo. Este é meu paletó.Este é o de meu colega.
Olha-me desconfiada. Mas
não se dá por vencida. Pensa por alguns segundos, em busca de alguma explicação
mais condizente com suas teses. Não lhe dou tempo para maiores raciocínios.Preciso
terminar logo com aquilo.
- Você sabe que eu não
tive condições de trocar as peças no tempo em que estive aqui após o encontro
do pente , pois você trancou o terno na gaveta.Você sabe que estas peças que trouxe
agora me foram dadas realmente por meu colega de trabalho.E, para que não paire
nenhuma dúvida, veja isso aqui.
E entrego-lhe o extrato de cartão de crédito de
meu colega, mostrando que seu terno fora comprado há seis meses, angtes de
todos estes acontecimentos. Ou seja, eu não poderia ter comprado as peças
agora, para criar um álibi.
Não, ela não se atira em
meus braços pedindo-me perdão. Não, ela
não vai para o quarto chorar, arrependida. Não, ela não ri,mesmo nervosamente,
solicitando-me que esqueçamos episódio tão ridículo.
Ela entrega o terno de
meu amigo e pede-me que o devolva . Recolhe minhas peças e as leva para quarto. E depois, não me dirige mais a
palavra.
Amanhece. Como sempre,
acordo antes dela, preparo o café, faço o desjejum e e preparo- me para sair,
antes dela levantar-se. Nada diferente de antes, se não a ouvisse chamar do
quarto.
- Quero me esclareça uma coisa, mas não precisa ser
agora.Não quero atrasá-lo.Pode ser quando você voltar.
Pergunto o quê. Ela sussurra:
- Onde você esteve e o
que fez nos três dias em que não dormiu
em casa?
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