Como classificar o comportamento de um homem que não conseguia ficar em locais onde houvesse namorados se acariciando? Que, junto com familiares, assistindo a novelas de TV, saía da sala a uma simples trocade beijos entre personagens?
Não, Honorato não era evangélico, carola católico ou muçulmano. Casado, duas filhas e um filho, hoje todos adultos, não lhe feriam a suceptibilidade mulheres de shorts, saias curtas , justas; biquínis, ou mesmo seios nus.. A nudez no cinema,nas revistas, na TV não o perturbavam. Meneios pseudosensuais de travestis e homossexuais não lhe traziam maior incômodo. O que lhe acarretava desconforto eram as manifestações públicas de carinho.
- Sexo é coisa para ficar entre quatro paredes.
Policial aposentado, quando, na ativa, fazendo rondas na zona do meretrício, expulsava mulheres que agarravam-se aos clientes nas ruas.
- Prá dentro! Prá cima! Vamos acabar com a putaria!
Ficaram famosas suas explosões de ira, os socos, tapas e pontapés que distribuía em tais ocasiões.
Agora, sem o estresse da luta contra criminosos e da convivência com o baixo mundo, perdera muito da agressividade, mas não da idiossincrasia ao que chamava de sacanagem pública. E à proporção que ia envelhecendo, adicionava à mania novos fatores de desagrado. Ficara famoso ( felizmente, apenas no âmbito familiar) seu acesso de raiva ao encontrar os filhos observando a cópula de um casal de rãs no charco atrás da residência.
Os filhos cresceram, chegaram a adolescência, à juventude, as duas mulheres usaram bermuda, saia curta ou justa, calça apertada, casaram, namoraram tiveram filhos. Mas nunca abraçaram ou beijaram seus namorados , depois cônjuges, na frente de Honorato.
Cenas de beijos, abraços, esfregações, na TV, em revistas, no cinema ou mesmo na realidade das ruas tornaram-se, após a aposentadoria, perfeitamente evitáveis. Nos primeiros casos, bastava não ficar diante do aparelho, não folhear as publicações; não ir às salas de projeção. Como saía pouco do bairro, também pouco via namorados e os que o conheciam já sabiam o que não fazer ao passar diante dele
Mas uma coisa não podia evitar ; a presença de cães atrás de cadelas no cio, muito comum nos bairro populares, onde cada quintal tem pelo menos um exemplar de vira-lata, e as ruas, dezenas. Nos meses de julho e agosto, repetem-se os rituais da procriação canina. Honorato passou, nestes períodos , a nutrir especial ódio às perseguições coletivas de cães às cadelas no cio. Ao ver à já prosaica cena de um cão atado a uma fêmea, rodeado pelos demais machos, famintos de sexo, não se continha. Apossava-se dele um misto de vergonha e raiva principalmente se a visualização da cena era compartilhada por outras pessoas, mulheres, em especial.. Desviava o olhar, virava o rosto, apressava o passo, mudava de trajeto. Com o passar do tempo, radicalizou:, chutava os animais, atirava-lhes pedras ou outra coisa contundente ao alcance das mãos. Certo dia, correra ao bar da esquina, comprara duas garrafas de água mineral gelada para despejar em dois viralatas engatados.
II
Como explicar o extraordinário poder de atração daquele odor, imperceptível a narizes humanos, que faz o amarelo, o preto, o malhado, o peludo, o grande, o pequeno, o cotó, o mestiço andejo das ruas; o galgo e demais pedigrees, perseguirem fêmeas, sejam elas quais forem- mesmo pequenas para os grandes, ou grandes para os pequenos- por ruas, avenidas, quintais, morros, charcos, trilhos de trens; entre carros, pernas de homens, barracas de feiras, cadeiras de botequins?
Que dinheiro as humanas não pagariam por esta loção, de que a natureza não as dotou, capaz de levar machos a enfrentarem chutes, paus, pedras, a fome, calor, frio, dentadas, por instantes de sexo com suas fêmeas? Que dá poderes estranhos, como o de saltar obstáculos várias vezes superiores às suas alturas; enfrentar adversários mais robustos e ferozes; esquecer o aconchego dos lares, subsolos de barracos ou casinhas de alvenaria em jardins de mansões? Do pulguento vira-lata do morro ao lulu shamporizado da filha do prefeito, nenhum invulnerável à fragrância saída das entranhas das fêmeas que os convida irrestívelmente à cópula.
Naquela quinta-feira ensolarada lá estavam aqueles cinco cegos, surdos e mudos de desejo como tantos outros milhares de cães em outros tantos milhares de locais e dias, em julho e agosto, a perseguirem uma cadela no cio. E como as tantas outras, lá estava ela correndo de um lado para outro, rejeitando investidas ora com mordidas, ora sentando, ora correndo em círculos. Cederia, em determinado momento, a um dos perseguidores, não necessariamente o mais forte, não necessariamente o mais rápido . Mas até aquele momento, aos cinco cabia correr, aproximar-se, fustigar, lutar para que o simples desejo se transformasse em dádiva.
Ainda arisca, a cadela resolveu atravessar aquela esquina. Por instantes, algo grande, sólido,barulhento e rápido ficou entre ela e eles. E quando o obstáculo visual não era mais presente, ela estava deitada no chão: mais uma das muitas manobras de rejeição, como a de correr em circulos, sentar, morder? Eles acreditavam nisso e , como tantas outras vezes, aproximaram-se. A fragrância do sexo, intensa, fazia com que tentassem formas estranhas de cópula, procurando adaptar-se ao corpo estendido no chão. Nas costas? Na cara? Na barriga? Contorcendo-se, chinchando, como dizem os humanos, cobriam a fêmea, como formigas sobre o corpo de uma barata morta.
Foi quando ouviu-se o primeiro estalo e caiu o malhado. O espaço livre foi imediatamente ocupado pelo marrom, que caiu ao segundo estalo, permitindo que o preto se aproximasse e caísse, também, à repetição do inesperado som.. Em segundos, eram cinco machos no chão, filetes de sangue escorrendo-lhes de buracos nos corpos.
Não sabiam, sexos atormentados pela fragrância do cio, ainda latente na atmosfera, que a fêmea fora atropelada por um automóvel; que os estalos eram tiros; que o atirador era o ex-investigador Honorato, no extremo da indignação ao ver tão estranhas tentativas de coito . Não saberiam jamais que, dali a minutos, chegaria a Polícia Militar, que Honorato – logo ele, investigador aposentado- se negaria a entregar a arma a um PM, que haveria um tiroteio, que Honorato morreria.
Eram machos inocentes.
quinta-feira, 15 de maio de 2008
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