sexta-feira, 16 de maio de 2008

O HOMEM E O MENINO



- Moço, o senhor poderia arranjar um dinheiro para eu voltar pra minha casa?
Interpelado em meio ao vaivém de milhares de pessoas rumo ao local do desfile de bandas, o homem parou. O garoto deveria ter entre 8 e 10 anos. Vestia-se de maneira modesta- bermuda, camiseta, tênis- mas não estava sujo. Cabelos aparados, unhas limpas.
- Onde é sua casa?
- Em São Bernardo.
- Como é que veio parar aqui? Onde estão seus pais?
- Vim com meu irmão, ver o desfile das bandas. A gente se perdeu um do outro.Estou andando por aí há um tempão para ver se acho ele, mas não adianta. Queria ir pra casa.
- Seus pais sabem que vocês estão aqui?
- Não. A gente ia voltar hoje mesmo.
- Vem comigo.
- E dirigiram-se até um posto volante da polícia militar, perto da praça. O homem explicou o caso a um soldado.
- Podemos tentar localizar o irmão dele usando o serviço de som do palanque oficial- explicou o guarda
E foi o que fez, durante uma hora, sem resultado.
- Que outra coisa a gente podia fazer? Indagou o homem preocupado com o horário. Esperavam-no em casa.
- Tentaremos avisar os pais do garoto, mas não sei como vai ser isso, pois eles não têm telefone e o menino não conhece ninguém que tenha. A saída é pedir para a PM de São Bernardo ir para a casa dele avisar . Isso vai demorar. O senhor sabe ,estamos no carnaval.
Toda a polícia mobilizada para muitas coisas.
- E enquanto essa situação não se resolve, o que ocorre com o garoto?
- Fica aqui com a gente.
- Mas isso pode durar a noite toda.
- Não podemos fazer mais nada.
- E se eu levar o garoto para a minha casa? Deixo minha identificação, telefone e endereço com vocês. Uma viatura pode nos acompanhar até lá . Moro aqui perto.
Por que fez a proposta, não soube responder. A verdade é que o menino despertara-lhe algumas emoções. Lembrava outro garoto pobre- ele mesmo- de um bairro de Cubatão, a 12 quilômetros dali, que sonhava também em ver o carnaval nas praias de Santos.Mas nunca tivera a coragem de fazê-lo, quem sabe por falta de um irmão mais velho que o escoltasse na aventura.
Sim, aquele menino era um pouco ele, na aparência de pobreza decente; na inocência de confiar em desconhecidos. Possívelmente, como ele, cresceria, estudaria com sacrifício, viraria engenheiro, arranjaria um bom emprego. Talvez se casasse também com uma moça de família rica...
Tal reflexão fez com que hesitasse, por instantes, no propósito de levá-lo para casa. Mas, com os diabos, não podia deixá-lo , talvez a noite toda, na praça com policiais atarefados, ligados em tudo,menos em um menino perdido.
E foram. O homem e o menino para a casa do homem.

- Por que demorou tanto?
A ansiedade da mulher fez com que não reparasse na presença do garoto.
- Deixa entrar que já explico.
Mal acabara a explicação e ela interrompeu, quase aos gritos:
- Ficou doido? Trazer um moleque desconhecido para casa; expor desse jeito e mim e meus filhos?
- Espera um pouco, é só um garotinho. Quando a polícia localizar os pais dele, telefona e o problema está resolvido.
-E esse irmão dele. Quem é? Você não tem ouvido falar em menores delinqüentes?
- Calma! Não assusta o menino! Ele não é o que você está pensando.
- Como é que vou saber? Por que não o deixou com a polícia? Já não tinha feito a sua parte, levando-o até a viatura?
- Não podia deixar um garoto dessa idade a noite toda na praça. Eu me imaginei na situação dele.
- Tinha de ser! Você tinha de ter uma recaída da infância! Do tempo de Cubatão, pobrezinho. Viu o garoto e começou a ter pena de si mesmo. É aquilo que sempre falo: você melhorou de vida, saiu da favela, mas a favela não saiu de você. E, como se não bastasse, quer trazê-la para dentro de casa.
- Você está exagerando.
- Não estou exagerando nada. Vou ligar para meu pai vir me pegar e às crianças.Se você insiste em manter o garoto em casa, nós saímos.
Falavam alto e nem percebiam a presença do menino. Somente quando ela calou-se e dirigiu-se ao telefone, ouviu-se o fio de voz, hesitante:
- Pode deixar que eu vou embora.
E saiu pela porta que haviam esquecido de fechar. O homem atrás. Caminharam alguns minutos em silêncio, quebrado pelo homem:
- Espera aí. Vou pegar o carro e levar você para casa.
E foram. Menino e o homem, par a casa do menino.

Em menos de uma hora, estavam em São Bernardo. O irmão mais velho já havia chegado à moradia humilde da periferia, narrado a aventura e participado o sumiço do irmão.Os pais, antes preocupados, ao virem os dois, sentiram alívio. Prometeram ao homem não punir os filhos.
- São apenas crianças. O susto já foi castigo suficiente.
Tudo resolvido, tomou o caminho de volta.Antes de sair da cidade e pegar a Via Anchieta, parou em um bar. Raramente consumia bebida alcoólica, porém a ocasião pedia uma latinha de cerveja. Relaxar? Comemorar? Ficou ali, no balcão, refletindo.
Acudir o garoto, levando-o de volta para casa, como que socorrendo a si mesmo, 30 anos atrás, deixara-o satisfeito. Afrontar a mulher, abandonando-a irritada no meio da sala - atitudes que jamais tomara antes- deixaram-no apreensivo. Por que agira assim? Só por que o garoto lembrava a criança que fora? Ou porque ainda não liberara a favela dentro de si, como sempre recordava a mulher? Um herói que provara solidariedade e apreço às origens, ou o irresponsável que expusera a família à sanha de delinquentes mirins?Com muitas perguntas e nenhuma resposta, o homem era um menino perdido.

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