segunda-feira, 26 de maio de 2008

JUNTOS, JUNTINHOS



- Oi, Télia,tudo bem?
- Oi, tudo bem? O que você trouxe hoje?
- Discos
- Verdade? De quem?
- Ora, nem precisa perguntar? Dos Beatles.
- Boa escolha
- São os que mais gosto
- Pode ir lá.
Ele já conhecia o caminho.Cruzou a pequena sala de TV, dirigiu-se ao escritório nos fundos de um corredor. Antes de fechar a porta, ouviu a pergunta gritada da cozinha:
- E a Rejane, onde foi hoje?
Respondeu, também gritando, ao mesmo tempo em que, com gestos rápidos e nervosos, retirava os discos das capas.
- Ao fisioterapeuta. Ficará lá pelo menos por duas horas.
- Um bom tempo.
Fechou a porta do escritório. Escolheu um disco, colocou-o no aparelho com a mão direita, enquanto que, com a esquerda, acionava os botões. Os mecanismos mal se movimentavam e ele, de olhos fechados, já estava recostado no pequeno sofá, ao lado da escrivaninha. Do jeito que sempre quis. Sonhando. Era Paul McCartney. O contrabaixo em suas mãos, o mais obediente dos servos.Cantava docemente o sonho das meninas. Queriam beijá-lo, mordê-lo, amá-lo, mas ele, indiferente, acariciava apenas as cordas do instrumento.O toque de sua boca era reservado somente ao microfone. Longe, nos agudos, perto nas  emissões dos graves. A  alma passeando leve, flutuante.
- Ei!
O som, a princípio, confundindo-se com a música.Depois, bem próximo e identificável.Télia chamava. Um salto e estava perto da porta, que abriu imediatamente.
- Pensei que você tivesse dormido.
- Acho que cochilei um pouco.
- Está na hora.
- É mesmo. Já arrumo tudo. Vai dar tempo.
Um dia não daria. Porque ele, com certeza, talvez não quisesse. Ou porque não o controlasse.Mas um dia, com certeza, ganharia, sem esforço, o seu instante de solidão.Não precisaria aguardar conveniências: a hora do fisioterapeuta, a ida ao supermercado; o horário do cabeleireiro.
Télia, abençoada Télia! O que seria dele sem a sua irmã? Sem aquele escritório e aquela compreensão? Télia conhecia sua história. Acompanhara seus primeiros tempos de namoro com Rejane. Não fora madrinha de casamento porque a noiva já tinha sua preferência: uma prima.
Conhecera Rejane na escola. Ele, professor de português/inglês, recém-chegado. Ela, professora de geografia. Empatia rápida, namoro quase imediato, o casamento inevitável.E a constatação: Rejane não o deixava só. Considerava dádiva o fato de trabalharem na mesma escola. “ Sempre juntinhos, sempre juntinhos”, repetia , e o abraçava , cabeça levemente recostada em seu ombro., o que o enternecia e deixava vaidoso. Aquela necessidade de Rejane de tê-lo sempre por perto, à vista, palpável reforçava-lhe a auto-estima.
Iam juntos à escola. Quando coincidiam os intervalos de suas aulas, ela o procurava na sala dos professores. Tomavam cafezinho juntos.Se ela saísse antes, o esperava. O contrário.
Certo dia, comentara o fato com Télia, não escondendo certo orgulho.Ela não se mostrara tão animada.
- Sei não. Você não está se violentando?
Ela sabia do que falava. Conhecia, desde os tempos de solteiro, suas necessidades de solidão, seu hábito de trancar-se no quarto por horas, para ouvir música, principalmente dos Beatles. Acostumara-se a vê-lo silencioso, desde adolescente , mergulhado em leituras, isolado do mundo. Mas ele não deu crédito à observação da irmã. Como estaria se violentando se a mulher que amava necessitava da presença dele como do ar que respirava?
O primeiro ano de casamento passou sem que nem mesmo alguns aparentes excessos ( assim os achava Télia) constituíssem problemas. Rejane não gostava que se fechasse a porta do banheiro. Para quê, afinal, fazer isso no lar de um casal? Trancar-se no quarto para ouvir discos, ler, não é, antes de mais nada, uma atitude egoísta?Não teria Rejane razão ao constatar que longos períodos de leitura os afastavam um do outro? Sair sozinho com amigos, por que, se tinha, agora, uma esposa com quem sair? Ficar só, por quê? Casara-se para ficar só?



Até que um dia inventou-se o compact-disc. Até que um dia lançou-se uma coleção de todas as músicas dos Beatles em compact-disc. Até que um dia sobrou-lhe dinheiro para comprar um aparelho de reprodução de compact-disc.E, de quebra, toda a coleção dos reis do ié-ié-ié, que iria ouvir sem os chiados de suas já vetustas bolachas de vinil. John, Paul, George e Ringo, na plenitude da pureza de som. Compact-disc.
A primeira audição seria um momento sagrado. A reclusão se fazia necessária. Fechou-se no quarto, ajeitou a parafernália.
Télia tinha razão. Se não se violentara antes, violentou-se naquele dia.Rejane quase quebrara a porta. Acusou-o de estar esfriando o relacionamento, de egoísmo. Não suportando a ira, levantara a possibilidade de que estivesse interessado por outra mulher.Sim. Sem dúvida trancara-se no quarto para ficar pensando nela. Quem sabe, até se masturbando.
A muito custo conteve a explosão.Desligou o aparelho de som,guardou os discos. Carinhos, abraços, beijos. A mulher acalmou-se. Fez-lhe prometer que jamais faria aquilo. Não mais faria o quê? Ouvir música sozinho no quarto? Este crime conjugal imperdoável? Resignou-se, fez a promessa. Seu casamento era mais importante.



A partir de então, Rejane tornara-se mais aderente. E o gosto amargo da primeira concessão não o abandonaria jamais. Trabalho juntos, passeios juntos, cafezinhos juntos, lanches juntos, ver TV, juntos, visitas a parentes, juntos; juntos, juntos, juntos.
Os momentos ocasionais de separação eram frutos de conveniências dela: fisioterapia, cabeleireiro, compras, coisas para as quais Rejane, curiosamente, dispensava sua presença.
- Então, te espero na casa da Télia.
Ela concordava. Era na casa da Télia que ele ficava sozinho. Paradoxal que precisasse de outra pessoa para ter solidão. Refugiava-se com os discos e livros, controlando o tempo.A mulher, ao voltar, deveria encontrá-lo com Télia, na varanda, na cozinha, na sala de estar... Não prometera isolar-se jamais? Não interpor aos dois uma barreira de silêncio? Télia era o elo de ligação confiável, uma espécie de controladora de tensão enquanto um dos pólos da bateria estivesse temporariamente desativado.
Até quando?

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