quinta-feira, 8 de maio de 2008

O ANARQUISTA



Há tempos, precisei resolver alguns assuntos em Santos e desci ao litoral em uma segunda –feira. Feitos os primeiros contatos, deixadas pendências para a tarde, resolvi comer algo no Bar Carioca, especialmente indicado por amigos que diziam ser servido, ali, o melhor pastel da cidade. O bar fica na Praça Mauá, ao lado da Prefeitura e Câmara Municipal, servindo como ponto de encontro de políticos, não só locais, como também de fora . Para estes, é o tradicional lugar do cafezinho ritualístico que permite aos jornais registrarem-nos em cenas de convívio popular.
No dia em que lá estive, à hora do almoço, em uma das mesas de canto, um grupo discutia política municipal . Acomodei-me em mesa próxima e , lembrando recomendação dos amigos, pedi três pastéis de carne e uma latinha de cerveja. A iguaria confirmava os elogios. Os dentes encontravam carne logo à primeira mordida, ao contrário do que ocorre normalmente, quando percorrem muitos espaços vazios na massa até encontrarem o recheio. Um tempero diferente,nem forte, nem fraco: denso. Enfim, era plenamente justificada a fama dos pastéis do Carioca.
Comia, saboreando cada naco,olhando o movimento lá fora na praça: chegada e saída de ônibus municipais; tráfego de funcionários públicos, empregados de lojas, bancários, indo e vindo do almoço, os desocupados e vagabundos de sempre cochilando nos bancos .Achava curioso o movimento dos que entravam ou saíam dos banheiros públicos subterrâneos. Se você não acompanha atentamente o percurso, parecem sumir ou surgir do nada.
Prestava atenção ao vulto imponente do prédio da Prefeitura, edificação em estilo neoclássico, erguida nos anos 1930.
Eis que, entre meu olhar e o prédio, intromete-se o vulto de um homem magro,muito branco, óculos de aros negros e grossos, camisa social bege e calça preta, meio frouxa. Dirige-se lentamente ao balcão, pede um café cremoso, puro. Servido, pega a xícara e caminha em direção à mesa dos políticos , que calam-se quando se aproxima. Começa a falar:
- Governos não prestam. Dizia Henry Thoureau: o melhor governo é o governo nenhum. E dizem os espanhóis: si hay gobierno, soy contra.Governos interferem na vida das pessoas e sempre para prejudicar. Os homens devem viver em estado de anarquia. Mas não no sentido pejorativo do termo. Do grego an, sem, e archos, governo: sem governo, entendem? Lembrem-se: o melhor governo é o governo nenhum.
Falava baixo, mas de maneira audível , e pausada. Terminado o discurso, bebeu calmamente o café e se retirou, tão tranqüilo como entrara.
Causou estranheza, não a atitude do homem. O discurso fora simples e coerente, os gestos suaves e elegantes. Não admirou-me, também , o fato dos políticos ficarem em silêncio. Sem dúvida conheciam-no e deveriam ter motivos para ouvirem-no respeitosamente. Impressionou-me, sim, o que ocorreu após o término da fala e saída do homem. Ninguém respondeu, nem comentou nada. Retornaram á conversação de antes, sem nenhuma referência ao ocorrido, como se nada tivesse acontecido.
Comentei o fato com o garçom.
- Ninguém liga mais para o Benildo - respondeu, enquanto recolhia o pratinho onde repousavam apenas casquinhas de massa do que outrora foram três pastéis.
Lembrou que, há pelo menos dois anos, Benildo, aposentado há um ano da Prefeitura, onde fora escriturário, fazia o mesmo discurso sempre que via um grupo de políticos . No começo, alguns ainda argumentavam, tentavam iniciar um debate, mas como ele ficava sempre repetindo a mesma coisa, viram que não valia a pena o esforço. Agora, limitam-se a ouvi-lo, cientes de que, logo após falar, ele se retirará, sem aguardar respostas.
- Então ele é uma espécie de retardado?- indaguei
-Não era assim. Sempre foi meio caladão, mas não tinha nenhuma esquisitice. Dava-se bem com os colegas da repartição, com o pessoal aqui do bar. Uns três anos antes de se aposentar, tinha até melhorado de vida. Teria recebido uma herança ou coisa parecida. Dizem que o que deixou o Benildo meio ruim da cabeça foi a separação da mulher. Eu acredito nisso. Ele a adorava. Ninguém sabe porque se separaram. O Benildo sempre foi muito reservado quanto à sua vida pessoal.
Quase tudo parecia justificar o comportamento esquisito de Benildo. Afinal, não seria o primeiro, nem o último a ficar meio desorientado após uma desilusão amorosa. O que eu não conseguia era estabelecer uma ligação entre o drama afetivo de Benildo e seu discurso contra governos. Seria mais lógico se fizesse discursos contra mulheres, contra o casamento. Enfim, como a resposta a tal enigma não tinha a menor importância, a não ser satisfazer uma curiosidade, decidir voltar minha atenção para o que realmente me interessava. Paguei a conta e fui tratar da segunda parte do assunto que me trouxera a Santos.
O funcionário aposentado antigovernista, de camisa social, calças frouxas, óculos de aros grossos teria desaparecido completamente de minhas lembranças não fora uma dessas causalidades que mais parecem tramas sobrenaturais voltadas a nos fazer penetrar em outros destinos.
Ao final da tarde, dirigindo-me para a Rua Amador Bueno, a duas quadras da Prefeitura, onde ficava o estacionamento em que deixara meu carro, vejo Benildo sair de uma papelaria. Trazia uma pequena pasta na mão direita e parecia distraído, o que deve ter sido notado, também, por um garoto que, acelerando os passos, arrebatou-lhe a pasta e atravessou a rua, iniciando uma corrida justamente em minha direção. Não deve ter-me visto, e eu aproveitei para atravessar-me em seu caminho.. Caímos e a pasta ficou ao alcance de minha mão direita. Agarrei-a, o moleque tentou tomá-la, mas ofereci resistência. Desistiu do intento levantou-se e reatou a corrida, sumindo na primeira esquina.
Acabava de levantar-me, cercado por alguns curiosos, sacudindo a sujeita da roupa com a mão esquerda, enquanto que, com a direita, segurava fortemente a pasta, quando vejo Benildo aproximar-se, ar preocupado.
- Tudo bem com o senhor? Está machucado?
- Não. Só um pouco cheio de poeira. Veja: recuperei sua pasta.
- O senhor nem imagina como estou agradecido. Nesta pasta estão documentos importantes que eu ia amanhã levar a meu advogado.
Era curioso observar como Benildo, mesmo em uma situação como aquela, não perdia a suavidade de gestos e voz. Sua excitação era apenas perceptível por um brilho maior no olhar, um ligeiro tremor na mão que me estendia, menos para pegar a pasta do que para apertar a minha. Diante da impossibilidade de fazê-lo- a pasta impedia- apertou-me o punho.
Os poucos curiosos afastaram-se, tecendo comentários sobre a insegurança das ruas; a ação de pivetes no centro da cidade, a falta de policiamento, etc.
- O senhor não quer se limpar melhor? Lavar-se? Vamos até aquela lanchonete. A gente aproveita e toma um café.
Confesso que, em outra circunstância , premido pela necessidade de retornar ao planalto antes de escurecer ( detesto dirigir à noite), teria agradecido , entregue a pasta e ido embora. Mas a inusitada circunstância que me fizera, de novo, estar diante de tão singular personagem fez com que aceitasse o convite.
Em minutos estávamos em uma mesinha da lanchonete, com duas xícaras de café cremoso e dois pãezinhos de queijo à nossa frente.
- Já é a segunda vez, só esta semana, que levo uma trombada desses moleques. Eles ficam perambulando pelo centro, só esperando a oportunidade para roubar alguém. Da outra vez, me levaram a carteira, que, felizmente, não tinha dinheiro, nem documentos importantes. Mas desta vez, se levassem a pasta, eu ia ter muitos problemas.
E, com a mesma calma com que fez o pequeno discurso sobre a desimportância dos governos, Benildo explicou a importância da pasta. Ela continha papéis comprobatórios de que sua renda não aumentara nos últimos seis meses. Seu advogado iria, no outro dia, anexá-los ao processo de divórcio, no Fórum.
- Tenho de pagar uma pensão alimentícia à minha ex-mulher equivalente a 30% de meus ganhos mensais líquidos. A cada seis meses, ela pede investigações sobre meus ganhos reais pois acredita que eles aumentam e eu sonego tais informações para não pagar mais pensão. Entra com petição na Justiça e sou intimado a prestar esclarecimentos.
Uma história comum, acrecentando mais contradição à tese de que aquele homem fazia discursos sistemáticos contra governos devido a um trauma provoca do pela separação conjugal. O garçom estava errado. A explicação só podia ser outra, de percepção mais complexa pois Benildo não aparentava ser alguém com transtornos mentais. Ali, à minha frente, bebendo, a pequenos goles, o café cremoso, cortando com os dedos pedaçinhos de pão de queijo a levando-os à boca, era a imagem da normalidade . Um funcionário aposentado lanchando com um amigo ao cair da tarde.
- Você deveria pedir ao juiz mudança no critério de fixação da pensão –
sugeri.
Mostrou interesse em saber como. Contei-lhe que também era divorciado e que enfrentara, muitos anos antes, problema semelhante ao dele. A pensão, que pagava a meu filho e não à ex-esposa, equivalia a um terço de meus rendimentos líquidos. Achando que eu mentia sobre os ganhos reais, a mulher vivia pedindo informações , via judicial,sobre eles. Até que um dia a Justiça aceitou meu pedido para que a pensão fosse calculada de outra forma. Foi fixada em dois salários mínimos e meio por mês. Assim, mesmo que eu viesse a ter meus rendimentos triplicados, a pensão continuaria a mesma, aumentando somente quando houvesse reajustes do salário mínimo.
- Claro que o novo sitema tem seus inconvenientes. Por exemplo: mesmo que seus rendimentos diminuam, continuará pagando mensalmente o mesmo valor . E caso venha a ficar desempregado, a obrigação mensal será igual.. Como você é aposentado, acho que este não será um problema.
- Como o senhor sabe que sou aposentado?
Para uma resposta satisfatória tive de falar da cena que presenciara de manhã no Bar Carioca e dos esclarecimentos dados pelo garçom.. Sua reação foi previsível:
- Então o senhor, como muita gente aqui na cidade, também deve achar que sou meio maluco?
- Bem...
- Não precisa justificar-se. Eu também acharia se estivesse em seu lugar. Mas saiba que tudo o que falei para aquele grupo de vereadores é o que penso. É bem provável que se eu vivesse no século 19, nos tempos do anarquismo, estaria jogando bombas e causando catástrofes, como aquele anarquista que assassinou o arquiduque Francisco Ferdinando e provocou a Primeira Guerra Mundial. É claro que os tempos são outros e não tenho idade nem saúde para sair soltando granadas por aí. Mas nada impede que eu diga publicamente àqueles que estão no poder ou que querem chegar a ele, no caso os políticos, o que penso da inutilidade e da nocividade dos governos. Divirto-me quando vou embora, sem lhes dar chances de contestarem meus argumentos. Os que me conhecem, nem tentam. Sabem que é tempo perdido.
Toda essa explicação era dada com a tranquilidade e simplicidade de gestos a que já estava me habituando.
- Bem, não vou prendê-lo mais. Saiba que serei sempre grato pelo que fez hoje. Recuperar meus documentos foi o de menos. O senhor arriscou a vida por mim, pois estes moleques costumam ser violentos nestas ocasiões.
- Realmente, preciso mesmo ir.
Dei-lhe meu cartão, despedimo-nos e, enquanto rodava serra acima, refletindo sobre tudo aquilo, lamentei ter me retirado sem saber a verdadeira razão pela qual , de uns anos para cá, como ele próprio dissera, Benildo passara a nutrir desprezo por qualquer forma de governo, a ponto de ter aquele comportamento incomum.


Os esclarecimentos vieram em forma de carta, que recebi quase um ano depois, quando Benildo e sua esquisitice já não faziam parte de minhas lembranças.
Prezado senhor
Quando receber esta carta, já não estarei mais aqui. Não se impressione: não tenho nenhuma doença terminal, nem pretendo matar-me.A esta altura, estou em Portugal, onde reside uma tia minha, enviuvada recentemente e que convidou-me a morar com ela, em sua quinta. Como já não tenho nada que me prenda ao Brasil, aceitei a oferta.
Não esqueci nosso primeiro e último encontro. Além da gratidão pelo seu feito, senti-me na obrigação moral de lhe contar minha história recente. Por quê? Porque foi a única pessoa nos últimos anos que me concedeu real atenção e a quem, contrariando meus hábitos, revelei alguma coisa de minha vida pessoal.
Casei-me há 10 anos. Dila era filha de um vereador, conhecêmo-nos em uma dessas solenidades de prefeitura e câmara municipal. Atraiu-me primeiro sua beleza: não era nenhuma modelo, mas satisfazia plenamente às minhas pouco exigentes expectativas quanto à estética feminina Com os meses de convivência, surgiram as demais identificações. Agradava-me sobretudo a valorização que ela dava e meus mínimos atos. Isso fazia grande bem à minha auto-estima, não só por partir de mulher que eu amava, mas por causa de minha personalidade. Sempre fui pessoa reservada, tímida, previsível, voltada para a leitura, o que não me deu muita cultura, nem notoriedade, mas aumentou-me a capacidade de autocrfítica e maior conscientização sobre a própria mediocridade. Dila fazia com que me sentisse melhor. E menos rigoroso em minhas autoanálises. Não é preciso dizer que os primeiros tempos de casamento foram felizes, pois eles sempre são. Meu vencimentos na prefeitura, se não nos permitiam uma vida de fausto, possibilitavam o conforto característico dos pequenos burocratas públicos.
Depois, começaram as contrariedades, causadas, principalmente, por problemas financeiros.Tivemos dificuldades, decorrentes, em parte, pela crise conjuntural do país, em parte por meu espírito pouco prático, que me levou a algumas bobagens financeiras. Dila passou a queixar-se da falta de dinheiro, não para as coisas essenciais ( alimentação, vestuário, etc), mas para outros gastos. Dizia que suas amigas sempre possuíam as melhores roupas, faziam as melhores viagens, que os móveis, as casas, os carros dos conhecidos eram sempre melhores que os nossos; que eu era acomodado. As críticas, de início tímidas, apenas caracterizadas por queixas, foram tornando-se explícitas. Surpreendeu-me, um a dia, a primeira qualificação direta: “ Você é um acomodado!”. Teve um forte impacto sobre minha sensibilidade já propensa ao autodescrédito. Imagine Dila, a quem eu tanto amava e cujos elogios sempre contribuiram para inflar-me o ego, chamando-me de acomodado. Quando, porém, o conceito evoluiu para “ incompetente”, o desconforto transformou-se em desconsolo..
O tempo passava e não via como mudar a situação. Não podia suportar a permanente desaprovação de Dila, mas, ao mesmo tempo, como sair daquilo? Sou advogado , tenho até registro na OAB, mas quando e como iria exercer a profissão, se meu regime de trabalho na Prefeitura era de dedicação exclusiva? Comentava isso com Dila, que sempre tinha algum argumento com o qual expunha , ou minha acomodação, ou minha incompetência. Podia- dizia- prestar concurso para outro órgão público; podia sair da Prefeitura e passar a advogar. Qualquer coisa era melhor do que aquele marasmo em que vivíamos, provocado pelas dificuldades financeiras.
Eu não queria arriscar. Não entendia por que, a Dila, a situação mostrava-se tão calamitosa. Não tínhamos nosso próprio apartamento, em bairro decente? Não nos alimentávamos bem? Não tínhamos automóvel ( já gasto pelo tempo, é verdade)? Não fazíamos nossas viagens anuais , durante as minhas férias, a Campos de Jordão ou Litoral Norte? Quanta gente não tinha casa própria, carro, passava fome e até estava desempregada?A tais ponderações, ela respondia com uma frase que atirava-me ao mais fundo dos fossos: “ É só a isso que sua incompetência pode nos levar?
Amava Dila e talvez ame-a ainda. Doía-me, mais do que tudo, saber que já não confiava em mim e , o que é pior, dizia isso de maneira cada vez mais agressiva e implacável.
Foi quando ocorreu o milagre. Um daqueles rotineiros jogos de loteria, que fazia todas as sextas-feiras antes de ir para casa, para o descanso de fim de semana, foi premiado.A quantia, se não me fazia milionário, permitiria que eu solucionase todos os problemas financeiros presentes e vivesse uma vida folgada no futuro. Fiquei zonzo ao constatar tanta sorte. A sensação de felicidade era até angustiante. Pensava em Dila. Agora ela teria melhores roupas que suas amigas; poderíamos ter um carro novo e muito melhor; móveis novos, até uma casa nova.Faríamos viagens ao Exterior. Como Dila seria feliz e como eu ficaria feliz com isso!.
Não bebo nada alcóolico,mas achei que merecia comemorar o fato com pelo menos uma latinha de cerveja. Não sei se foi por causa do efeito do álcool, mesmo na pequena quantidade ingerida; não sei se foi devido à simples pausa na lanchonete antes de ir para a casa: a verdade é que um instante de reflexão conseguiu abrir caminho em meio a euforia. Ocorreu-me que a boa nova não faria Dila necessariamente mudar de idéia quanto à minha competência como provedor de um lar. É claro que ficaria feliz com o que acabara de ocorrer, mas isso seria atribuído somente à sorte, uma incrível e providencial sorte. Mais nada. Talvez meu único mérito consistisse em ter feito o jogo, mas eu não fazia isso rotineiramente há tantos anos? Qual a novidade, o espírito de iniciativa?.
Se o senhor não acha possível que alguém possa ficar triste logo após ganhar na loteria , acredite agora.: eu fiquei Não por muito tempo pois, logo a seguir, veio-me o plano.
Não revelei nada a Dila. No outro dia ,entrei em contato com minha mãe, que, desde a viuvez, morava sozinha, em um velho sítio da família, em Miracatu, no Vale do Ribeira, e convenci-a assumir a propriedade do bilhete premiado. Eu cuidaria de acompanhá-la à Caixa Econômica e ajudá-la em todos os tramites burocráticos em casos assim. Em contrapartida, ela me daria os cartões de saques de aplicações, depósitos, etc, com as respectivas senhas. Por que escolhi minha mãe? Por razões óbvias. Não poderia entregar uma fortuna daquelas a um desconhecido. Como não tenho irmãos, mais dia, menos dia, todo dinheiro viria ter às minhas mãos por herança. Nada mais seguro e mais secreto. Tudo foi feito sem o conhecimento de Dila, é claro.
O dinheiro permitia uma renda mensal três vezes maior do que ganhava na prefeitura.De imediato,saquei uma quantia considerável, com a qual melhorei as condições do sítio, de onde minha mãe não pretendia mudar-se. Dei-lhe todo c onforto que merecia, além de assegurar-lhe uma quantia mensal muito maior do que a irrisória pensão de viúva.
Comecei a seguir, em casa, ao projeto de “ ascensão financeira graças à minha competência”. Disse, inicialmente, que havia conquistado uma vaga de assistente em um escritório de advocacia. Só precisava trabalhar aos sábados ou à noite , em casa mesmo. Isso aumentaria meus ganhos. Os primeiros recursos decorrentes deste trabalho, ainda modestos, não animaram muito Dila, que continuou insatisfeita com nossa precariedade econômica. Mas isso estava nos meus planos. Minha ascensão profissional teria de ser gradativa, para não dar margem a desconfianças. Em virtude das novas relações profissionais decorrentes da tal consultoria, seria natural que passasse a receber propostas de novos trabalhos. Foi o que dei a entender uns dois meses depois. Passei a a retirar mais dinheiro das aplicações. E assim por diante. À proporção que inventava um novo serviço, uma nova consultoria, etc, aumentava o valor de minhas retiradas . Cheguei a comprar um escritório no centro da cidade, mas informei que apenas alugara as salas. Para dar maior credibilidade às minhas muitas atribuições, passei a vir mais tarde para casa, permanecendo algumas horas no escritório após o expediente na prefeitura . Às vezes, ficava sábados inteiros lá, dando conta de uma suposta carga de serviços pendentes. Dila nunca procurava enfronhar-se sobre o que eu fazia, o que não constituia novidade, pois em todos nossos anos de casados nunca se preocupou muito com detalhes sobre meu trabalho.
Fiz questão que conhecesse o escritório e volta e meia a levava até lá, a pretexto de pegar algum papel, uma pasta.
Passados os meses, já sentia na forma como me tratava a confiança restaurada, mais do que isso, admiração . O Benildo acomodado, incompetente, morrera. Creia-me: mais do que todo o conforto que o dinheiro me proporcionava, era isso que me fazia feliz; foi por isso que arquitetei tão inusitado plano.Trocamos de apartamento, de carro, de móveis, viajávamos, íamos a espetáculos, cuidávamos melhor de nossa aparência, enfim, fazíamos sem preocupações as coisas boas que o dinheiro proporciona
A essa altura, o senhor deve estar curioso sobre como preenchia o tempo em que ficava fora de casa, no escritório ou em viagens, fingindo trabalhar. Nada que me desabonasse moralmente, asseguro-lhe. E não poderia ser de outra forma, pois Dila era a mulher a quem amava e a quem dedicava toda minha lealdade. Aproveitava os momentos do falso trabalho para fazer coisas de que gostava, meio idiotas, das quais Dila nunca compartilharia. Passava horas na Gibiteca do Boqueirão lendo revistas em quadrinhos antigos; visitava sebos, fazendo algo maravilhoso que é folhear livros velhos, em busca de antigos recados, remotas anotações; fazia viagens para ver sítios arqueológicos, prédios históricos,múmias.
Mas um dia, tudo acabou. O governo federal, para combater a inflação, congelou por tempo indeterminado, todos os ativos do País. Ninguém poderia mais sacar rendimentos de aplicações financeiras. Das contas correntes, só era permitido retirar uma quantia mínima ou salários. .
Não é difícil imaginar o resto. Precisei revelar a Dila a origem de meus recursos. Consegui provar o acerto na loteria, a abertura das contas e as aplicações. Mas, desgraçadamente, não a convenci de meus reais propósitos. Como acreditar que alguém tivesse idéia tão maluca somente para recuperar a credibilidade pessoal perante a esposa? Não. Provavelmente tinha outra mulher ou outras mulhres. Jamais acreditaria que, nas horas ou dias que passava ausente de casa , a pretexto de trabalhar, estaria fazendo aquelas coisas idiotas de que lhe falava. Quem escondia da esposa ter ganho um elevado prêmio da loteria, esconderia qualquer outra coisa.Não. Se, antes, desacreditava de minha competência para manter um lar, agora não confiava em minha fidelidade e integridade moral. Pediu o divórcio.
Entende, agora, porque detesto governos?