quarta-feira, 28 de maio de 2008

O FILHO



- Sou seu filho!
De aparência mais velha do que a idade , o homem que falara não parecia acumular os anos que sugeriam a calvície , a boca desprovida dos dentes frontais superiores e os sulcos rugosos de testa e pálpebras. Mãos de dorsos venosos, dedos finos e longos, unhas enegrecidas de tabaco : marcas mais de sofrimento,pobreza ou desleixo do que do passar do tempo
- Sou seu filho.
- Não entendi!, retrucou.
- Exatamente isso: sou seu filho, você é meu pai e esse é o assunto sobre o qual estou tentando lhe falar há duas semanas , mas você nunca me atende.
“E não deveria tê-lo feito nunca. Esse cara é maluco”, pensou, enquanto examinava melhor o outro, sentado à sua frente, no escritório.A roupa era coerente com a degradação física: paletó e calças amarfanhados, a camisa com uma lembrança amarelada de brancura, sapatos foscos, sem meias. Se estivesse de chapéu e gravata, estes seriam amarfanhados também, impossível imaginar o contrário.
- Sou seu filho.
Sentido faria se dissesse “ sou seu pai”, igualmente um absurdo, já que ele completara 65 anos. É claro que a aparência indicava bem menos que isso. Ginástica, massagens, alimentação balanceada, austeridade de hábitos, exames médicos preventivos,cirurgias plásticas e uma década de redução da carga de trabalho explicavam tudo.Sem falar que nunca se casara, o que, sem dúvida, lhe agregara mais uns toques de juventude.
E conhecera o pai, com quem tivera uma convivência de pelo menos meio século até a morte dele, sem nenhuma dúvida quanto à filiação. Se o sujeito dissesse “ sou seu irmão” teria muito mais lógica, sabe-se lá os roteiros da história do velho . Mas, “seu filho”?
Precisava livrar-se do maluco o mais rápido possível.
A estratégia inicial seria não contrariá-lo. Não se contrariam doidos.Pediu licença, com um gesto que lhe pareceu de cumplicidade e foi até a antesala, onde a secretaria, ar preocupado e ansioso, o atendeu.
-Como é que você deixa um sujeito desses entrar aqui para falar comigo?
- Mas eu não sabia que ele era assim.
- Você não falou com ele antes?
- Não. Falei com o advogado dele, com quem marquei a audiência.
- Advogado dele?
- É. Confirmei os dados . Por isso é que demorou quase um mês para acertar o dia e horário Só não sabia que era esse o cliente e que ele vinha sozinho, com um cartão do doutor.
- Mas você não perguntou qual era o assunto?
- O advogado disse que era sigiloso. Só anotei os nomes. Ademais,quando aprovou a agenda , o senhor não fez nenhuma pergunta e eu achei que já sabia do caso.
- Não lembro direito nem o que comi ontem. Ando preocupado demais com a pré-produção daquela maldita novela. Precisamos nos livrar do cara. O truque de sempre.
Há milhões de truques na vida em sociedade.O da secretária, para livrarem-no dos indesejáveis, era simples: avisava-o de que estava atrasado para “aquela reunião importante”.
Voltou à sala.O velho o esperava, na mesma posição de antes, sentado na ponta da cadeira; corpo curvado .
- Quer dizer, então, que é meu filho? Quantos anos o senhor tem?
- Cinquenta e três.
“ Aparenta 70” pensou, atenção atraída agora para entrada da secretária
- O sr. já está atrasado para aquela reunião.
- Ah, sim, a reunião! Muito importante. O senhor me desculpa. A gente pode conversar outro dia. Marca a data com a dona Selma. Precisamos esclarecer alguns pontos. Afinal, o senhor há de convir que, para ser seu pai, precisaria ter transado com sua mãe quando eu tinha 12 anos.
Sem esperar resposta, seguiu o ritual do truque: levantar-se rápido, vestir o paletó, dar a mão para o visitante, deslocar-se a passos largos para a sala de reuniões, enquanto a secretária , eficiente, já se adiantava e conduzia o velho à de recepção.
Rapidez insuficiente para impedir o homem de falar e ele ouvir:
- Mas foi isso mesmo o que aconteceu!
- O quê?
- Você tinha 12 anos quando transou com minha mãe.

Prezado sr. Objetiva esta desculpar-me pelo episódio de ontem, do qual foi protagonista meu cliente. Escrevo do hospital, onde internei-me às pressas por causa de uma crise de rins. Avisei o cliente de que não poderia ir à reunião que marcara no escritório de V.Sa. , expliquei os motivos e fiquei de informá-lo sobre uma nova data. Não poderia imaginar que ele iria sozinho naquele mesmo dia.
Semanas atrás, ele apareceu em meu escritório dizendo-se filho não reconhecido de um famoso produtor e diretor de tv, teatro, cinema e queria provar isso na Justiça. De início, fiquei cético: não era a primeira vez que alguém se dizia filho de uma celebridade. À primeira vista , tudo soava muito frágil , a começar pelo fato do filho parecer mais velho que o suposto pai.
Porém, veja: moça de 18 anos, empregada doméstica, seduz o garoto da casa,de 12 anos, engravida e é expulsa pelo patrão. Havia algo de crível na história, por isso peguei o caso. Mais esclarecimentos darei pessoalmente na audiência do Fórum. Atenciosamente, Dr. B.


Processo findo,paternidade confirmada, a hora, enfim, da conversa entre pai e filho .Fez questão de que ocorresse na casa do filho, onde satisfaria de vez todas as curiosidades.
Primeira surpresa: não era um casebre em favela, como supunha. Apartamento modesto, em bairro regular. Segunda surpresa: morava sozinho . Terceira :estante cheia de livros na sala.
- Agora, o que o senhor quer de mim?
- Nada.
A resposta foi a maior das surpresas.
- Como assim,nada?
- Só isso: nada. Já tenho tudo de que preciso: casa própria, aposentadoria, nada de filhos criados ou por criar, nem netos. Minha única parente viva era minha mãe. E você, é claro.
- Sua mãe morreu?
- Há 10 anos, no nordeste. Eu não a via há 20, desde que vim para o Rio de Janeiro trabalhar.Durante os anos em que vivi com ela, a única coisa que soube sobre você é que tinha me abandonado quando ela estava grávida. Jamais me revelou sua identidade.
- E como o senhor soube da história toda?
- Por uma amiga dela,a quem fez confidências uma semana antes de morrer. Anos depois,essa amiga soube onde eu morava e mandou-me uma carta, contando tudo. Antes desta revelação, passei a vida inteira remoendo mágoas do pai que me abandonara.
- Meu Deus, eu era um garoto ! Nunca me falaram da gravidez da empregada. Aliás, nunca soube por que ela foi despedida de casa. E, mesmo que soubesse de tudo, como é que, com 12 anos, poderia assumir a paternidade? Esta história com sua mãe só perdura em minha memória, meio século depois, por tratar-se de minha primeira experiência sexual, coisa que homem algum esquece. Mas nunca tive a menor idéia das consequências dela.
- Como vê, vivemos, os dois, por meio século, sem ter idéia de nada.
- Responda-me: por que teve tanto trabalho para me localizar e iniciar este processo?
- Primeiro, queria desculpar-me pelos anos em que o amaldiçoei. Depois, porque acho que todo pai e filho têm de saber da existência um do outro. Fui privilegiado porque não apenas sabia que tenho um pai, como cheguei a identificá-lo. Mas você nunca imaginou que tinha este filho. E, com certeza, jamais acreditaria se alguém o dissesse . O processo na Justiça era , então, a única maneira de fazê-lo acreditar.
- Qual é sua profissão? O que o senhor faz ou fez ?
- Sou jornalista aposentado por invalidez. Muito cigarro, muita cerveja, muito uísque,muito sexo, pouco sono, pouco exercício, muito desleixo e eis-me aqui, velho, enfizemático, com uma expectativa de vida menor do que você, que me gerou.

Antes de entrar no carro, deu uma última olhada no prédio, talvez esperando ver o filho à janela do apartamento. Não estava. Missão cumprida, devia o velho estar pensando, no sofá da sala, cigarro na mão.
Nada mais, material ou espiritual, dava consistência àquela relação, à exceção das folhas registradas em cartório.A maneira como tudo terminara provocava-lhe mais alívio do que constrangimento. O que parecia, de início, muito importante, agora não era mais.
Partida acionada, deu-se conta de que, o tempo todo, desde o primeiro dia no escritório, chamara o filho de senhor e o filho o chamara de você. Mas isso também não tinha importância. Precisava, agora, era de uma boa massagem.

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