Se você tivesse vivido
o que ele viveu, talvez fizesse o que
ele fez. Comecemos dizendo que ele saiu da prisão por volta de seis horas desta manhã. Mania de madrugada da
polícia, pois, quando o prenderam, 15 dias atrás, o sol também mal havia
surgido.
Pelo menos chegará em casa sem que ninguém
o veja. Nem seus pais que, desde o dia em que o encarceraram, saíram do
bairro e foram morar com parentes, em
uma região mais distante da cidade.
Sabe como entrar na
casa, abrindo aquela janelinha da área de serviço . Tomará um banho e trocará de roupa.
O que viveu para justificar o que fez?
Sua família é composta
pelos pais, irmã e irmão. O irmão tem 26
anos, 10 a mais do que ele; a irmã , 12.
O irmão não mora com eles . Vive e trabalha em uma cidade vizinha, uns 20 quilômetros dali.
Mas, para a mãe, é como se morasse em outro país. Vive suspirando de saudade e, quando ele vem para casa, em alguma folga,
é como se chegasse o rei.
A irmã é a jóia da família. Muito mimada, principalmente
pelo pai.Presentinhos, carinhos; quando fica doente, uma gripe que seja, é um
Deus nos acuda.
Não se pode dizer que o
tratam mal. Mas vive sempre com a
impressão de que todo o respeito da
família vai para o mais velho,todo o carinho para a mais nova e , para ele , a
sobra.
O pai trabalha o dia todo , a mãe vive
atarefada em casa de manhã à noite, e ele sente-se sempre secundário quando o assunto é atenção para os
filhos. Quem é filho do meio sabe como
funciona isso.
Se há alguma comemoração em casa, Natal, aniversário,essas coisas, e se recebem o pessoal da família, o que acontece? Elogios à
beleza , às boas notas , à boa educação da irmã; demonstrações de saudade, orgulho pelo trabalho e responsabilidade do irmão; quanto a ele, vai bem, obrigado.
Quando era mais novo, ainda procurava atrair a atenção,
mas agora não . Nestas ocasiões, quando
possível, escapa para o quintal ou para seu quarto ( sim, um quarto só dele, o que dividia antes com o
irmão).
Ano passado, , aniversário da irmã, estava no quarto, chegou a hora dos parabéns e esqueceram de chamá-lo. Teve a
impressão de que , se não tivesse ido
para a sala, alertado pela cantoria e palmas, esqueceriam,também, de seu pedaço de
bolo.
É por causa de tudo
isso que é calado e esquivo . Inclusive
na escola. Prefere ficar no seu canto;
quanto menos prestarem atenção nele, melhor. Quando estava no primeiro
grau, ficava no fundo da sala e, como
era um dos mais baixos da classe, os professores
viviam ordenando que se sentasse na fila da frente.
Sua vida tem sido de
casa para a escola e da escola para casa, e mais alguma coisa que não possa
evitar, como visitas a parentes ,ou eventos estudantis.Você pode crer que, se ele
tivesse que manifestar desejos para um
gênio da lâmpada, pediria primeiro para
ser invisível. Por enquanto, já se sente
meio invisível, escondendo-se ou
ninguém prestando muita atenção nele.
Então, aconteceu de
conhecer a Cenira. Foi no começo do ano;
ela, nova na cidade , passou a fazer
parte da mesma classe escolar.É de família turca e tem aquele jeito meio
diferente das mulheres de seu país, os cabelos grandes e negros, os olhos também
e bem redondos. Muito simpática, sem ser exibida, logo fez amizades, conversa e
brinca com todo mundo. Não é preciso de dizer que, no caso dele, não
vai além dos cumprimentos. “ Oi!”, “ Alô!”, “ Tchau”!
É bem verdade que ele
não dá muita chance para maiores efusões. Sempre no canto, sempre sozinho
e calado, torna difícil aproximações . Também nunca fez muita questão
disso. Mas com Cenira é diferente. Ela
acendeu sabe Deus, que chama dentro dele, fazendo-o suspirar por
algo mais que “ oi”, “ alô” e “ tchau”.
Mas por que ela se
aproximaria dele, tendo garotos muito mais
interessantes com quem ter amizades? O
filho do diretor da escola, por exemplo; o sobrinho do prefeito , ou o garoto que toca
violão e canta?
Deve existir alguma coisa
que o faça ser notado também. E foi da incessante busca a uma resposta para tal
questão que surgiu o plano. Que, até
agora, no momento em que se dirige para casa, após aquela temporada na prisão,
transcorre conforme o previsto.
É preciso apressar o
passo e chegar nas residência antes das
seis,sem que ninguém na rua o veja. Poderá tomar um banho,descansar e, perto do maior intervalo entre as aulas,
fazer a grande reaparição na escola .Será memorável,
acredita, porque, depois de sua façanha, já não é mais invisível.É alguém com quem todo
mundo vai querer conversar, fazer perguntas.Aquelas meninas que quase nunca
prestam atenção nele e vivem suspirando pelos bacanas da classe; os
professores; até mesmo, e principalmente , Cenira.
O que ele fez não é
algo que se faça de uma hora para outra. Exigiu inteligência , paciência e
planejamento. Tudo pensado, em detalhes, coisa não tão difícil para quem na vida sempre
teve pouco com que dividir sua atenção.
A idéia surgiu com a
notícia de que 10 brasileiros haviam
sido presos acusados de fazerem parte do Estado Islâmico, o grupo terrorista
que quer transformar o mundo em um califado . A Polícia Federal os descobriu monitorando as redes sociais.Os
investigadores tornaram-se mais atentos e precavidos com a proximidade das
Olimpíadas do Rio de Janeiro por causa da possibilidade de brasileiros, recrutados pela
grupo, realizarem massacres durante os jogos . A polícia agiu
rápido: identificou trocas de mensagens suspeitas e prendeu os seus autores.
Estado islâmico nunca
foi um assunto que lhe interessou muito, nem mesmo a possibilidade do grupo ter
representantes no Brasil causa-lhe espanto. O que chamou sua atenção,mesmo, foi
a fama súbita dos brasileiros presos. Era gente comum, absolutamente anônima
e,de repente,tiveram seus nomes e fotos estampadas nos programas de TV, jornais e revistas de todo o mundo.Três deles não eram
conhecidos, antes, nem por seus vizinhos.
Claro que nem de longe
passou-lhe pela cabeça virar terrorista para deixar de ser invisível. Não quer fazer
mal a ninguém. Gostaria de usufruir unicamente da fama que um episódio destes
pode dar a seus protagonistas. Mas, como
ganhar notoriedade como jovem terrorista
brasileiro e internacional, sem matar ninguém,
explodir nada, cair na clandestinidade e, menos ainda, ser morto ou preso pelo
resto da vida??
Sua inteligência,
aguçada por horas e horas recluso no
quarto, diante do computador, trouxe-lhe, rápida, a resposta. Se as investigações
estavam sendo feitas na internet, principalmente nas redes sociais, seria ali o palco de sua atuação.
Três meses depois, seis
horas de certa manhã, o primeiro sinal de que o plano daria certo:homens
estranhos apresentaram-se à sua casa como agentes da Polícia Federal.
Assustou-se um pouco
com o aparato da captura.Ante o olhar atônito dos pais, agentes mal encarados e silenciosos algemaram-no
e conduziram-no , sem truculência, mas de maneira firme, para um camburão.Minutos
depois , o veículo, escoltado por outro, logo atrás, entrava no subsolo de um
prédio antigo . Saíram do carro, entraram
em um elevador. Silêncio quebrado apenas pelos ruídos de portas
fechando e abrindo. Deixaram-no só em uma cela.
Pôde, então, analisar melhor a situação.Logo ,
os jornais noticiariam a prisão de mais um terrorista brasileiro.Sua foto e nome, sem dúvida, já estariam rolando nas redes
sociais. O mundo, então, tomaria
conhecimento de sua existência. Não que o mundo lhe importasse. Deliciava-se em
imaginar as reações entre seus colegas de escola.Os bacanas estariam escondendo
sua inveja sob observações sarcásticas a seu respeito, do tipo:“ Sempre
desconfiei daquele maluco”.
Mas haveria, também,
reações de medo, talvez até de alguma
histeria: “ Meu Deus,um terrorista entre
nós!” exclamar-se-ia na sala dos professores.
E quem poderia
negar o fascínio entre as meninas? “ O
esquisitão, quem diria, heim”?
Tiraram-no da cela no
outro dia, bem cedo ( a mania policial da madrugada mostrava-lhe seus primeiros
sinais), para o primeiro interrogatório. Não sentia mêdo, afora inusitada sensação de desamparo ao percorrer longos, escuros e úmidos corredores,
até uma sala pequena, mas não menos
escura e úmida. A meticulosidade de seu plano lhe
garantiria o controle da situação.