sexta-feira, 19 de agosto de 2016

INVISÍVEL





Se você tivesse vivido o que ele viveu, talvez fizesse  o que ele  fez. Comecemos dizendo que ele saiu  da prisão por volta de  seis horas desta manhã. Mania de madrugada da polícia, pois, quando o prenderam, 15 dias atrás, o sol também mal havia surgido.
Pelo menos chegará  em casa sem que  ninguém  o veja. Nem seus pais que, desde o dia em que o encarceraram, saíram do bairro e foram morar com  parentes, em uma região mais distante da cidade.
Sabe como entrar na casa, abrindo aquela janelinha da área de serviço .  Tomará um banho e trocará de roupa.
O que  viveu para justificar o que  fez?
Sua família é composta pelos pais, irmã e  irmão. O irmão tem 26 anos, 10 a mais do que ele; a irmã , 12.
O irmão  não mora com eles . Vive e trabalha  em uma cidade vizinha, uns 20 quilômetros dali. Mas, para a mãe, é como se morasse em outro país. Vive suspirando de saudade  e, quando ele vem para casa, em alguma folga, é como se chegasse o  rei.
A irmã é  a jóia da família. Muito mimada, principalmente pelo  pai.Presentinhos, carinhos; quando  fica doente, uma gripe que seja, é um Deus  nos acuda.
Não se pode dizer que o tratam mal. Mas vive  sempre com a impressão de que  todo o respeito da família vai para o mais velho,todo o carinho para a mais nova e , para ele , a sobra.
 O pai trabalha o dia todo , a mãe vive atarefada em casa de manhã à noite, e ele sente-se sempre   secundário quando o assunto é atenção para os filhos.   Quem é filho do meio sabe como funciona  isso.
Se  há alguma comemoração  em casa, Natal, aniversário,essas coisas,  e se recebem  o pessoal da família, o que acontece? Elogios à beleza , às boas notas , à boa educação da irmã; demonstrações  de saudade, orgulho pelo trabalho e  responsabilidade do  irmão; quanto a ele, vai bem, obrigado.
Quando  era mais novo, ainda procurava atrair a atenção, mas agora não .  Nestas ocasiões, quando possível, escapa para o quintal ou para seu quarto ( sim,  um quarto só dele, o que dividia antes com o irmão).
Ano passado,  ,  aniversário  da irmã,  estava no quarto, chegou a hora dos  parabéns e esqueceram de chamá-lo. Teve a impressão de que , se  não tivesse ido para a sala,  alertado pela cantoria e  palmas, esqueceriam,também, de seu pedaço de bolo.
É por causa de tudo isso que é  calado e esquivo . Inclusive na escola. Prefere ficar no seu canto;  quanto menos prestarem atenção nele, melhor. Quando estava no primeiro grau, ficava  no fundo da sala e, como era um dos mais  baixos da classe, os professores viviam ordenando que se sentasse na fila da frente.
Sua vida tem sido de casa para a escola e da escola para casa, e mais alguma coisa que não possa evitar, como visitas a parentes ,ou eventos estudantis.Você pode crer que, se ele tivesse que manifestar  desejos para um gênio da lâmpada, pediria primeiro  para ser invisível. Por enquanto, já se sente  meio invisível,  escondendo-se ou ninguém  prestando  muita atenção nele.
Então, aconteceu de conhecer a Cenira. Foi no começo do  ano; ela, nova na cidade ,  passou a fazer parte da mesma classe escolar.É de família turca e tem aquele jeito meio diferente das mulheres de seu país, os cabelos grandes e negros, os olhos também e bem redondos. Muito simpática, sem ser exibida, logo fez amizades, conversa e brinca  com todo mundo.  Não é preciso de dizer que, no caso dele, não vai além dos cumprimentos. “ Oi!”, “ Alô!”, “ Tchau”!
É bem verdade que ele não dá muita chance para maiores efusões. Sempre no canto, sempre sozinho e  calado, torna difícil  aproximações . Também nunca fez muita questão disso.  Mas com Cenira é diferente. Ela acendeu  sabe Deus, que  chama dentro dele, fazendo-o suspirar por algo mais que “ oi”, “ alô” e “ tchau”.
Mas por que ela se aproximaria dele,  tendo garotos muito mais interessantes com  quem ter amizades? O filho do diretor da escola, por exemplo;  o sobrinho do prefeito , ou o garoto que toca violão e canta?
Deve existir alguma coisa que o faça ser notado também. E foi da incessante busca a uma resposta para tal questão que surgiu o plano.   Que, até agora, no momento em que se dirige para casa, após aquela temporada na  prisão,  transcorre conforme o previsto.

É preciso apressar o passo e  chegar nas residência antes das seis,sem que ninguém na rua o veja. Poderá tomar um banho,descansar  e, perto do maior intervalo entre as aulas, fazer a grande   reaparição na escola .Será memorável, acredita, porque, depois de sua façanha,  já não é mais invisível.É alguém com quem todo mundo vai querer conversar, fazer perguntas.Aquelas meninas que quase nunca prestam atenção nele e vivem suspirando pelos bacanas da classe; os professores; até mesmo, e principalmente , Cenira.
O que ele fez não é algo que se faça de uma hora para outra. Exigiu inteligência , paciência e planejamento. Tudo pensado, em detalhes, coisa  não tão difícil para quem na vida sempre teve  pouco com que dividir sua atenção.
A idéia surgiu com a notícia  de que 10 brasileiros haviam sido presos acusados de fazerem parte do Estado Islâmico, o grupo terrorista que quer transformar o mundo em um califado . A Polícia Federal  os descobriu monitorando as redes sociais.Os investigadores tornaram-se mais atentos e precavidos com a proximidade das Olimpíadas do Rio de Janeiro por causa da  possibilidade de brasileiros, recrutados pela grupo, realizarem   massacres durante os jogos . A polícia agiu rápido: identificou trocas de mensagens suspeitas e prendeu os seus autores. 
Estado islâmico nunca foi um assunto que lhe interessou muito, nem mesmo a possibilidade do grupo ter representantes no Brasil causa-lhe   espanto. O que chamou sua atenção,mesmo, foi a fama súbita dos brasileiros presos. Era gente comum, absolutamente anônima e,de repente,tiveram seus nomes e fotos estampadas nos programas  de TV,  jornais e  revistas de todo o mundo.Três deles não eram conhecidos, antes, nem por seus vizinhos.
Claro que nem de longe passou-lhe pela cabeça virar terrorista para deixar de ser invisível. Não quer fazer mal a ninguém. Gostaria de usufruir unicamente da fama que um episódio destes pode dar a seus protagonistas.  Mas, como ganhar notoriedade como  jovem terrorista brasileiro e  internacional, sem matar ninguém, explodir nada, cair na clandestinidade e, menos ainda, ser morto ou preso pelo resto da vida??
Sua inteligência, aguçada por horas e horas recluso  no quarto, diante do computador, trouxe-lhe, rápida, a resposta. Se as investigações estavam sendo feitas na internet, principalmente nas redes sociais,  seria ali o palco de sua atuação.
Três meses depois, seis horas de certa manhã, o primeiro sinal de que o plano daria certo:homens estranhos apresentaram-se à sua casa como agentes da Polícia Federal. 
Assustou-se um pouco com o aparato da captura.Ante o olhar atônito dos pais,  agentes mal encarados e silenciosos algemaram-no e conduziram-no , sem truculência, mas de maneira firme, para um camburão.Minutos depois , o veículo, escoltado por outro, logo atrás, entrava no subsolo de um prédio antigo . Saíram do carro, entraram  em um elevador.  Silêncio  quebrado apenas pelos ruídos de portas fechando e abrindo. Deixaram-no só em uma cela.
 Pôde, então, analisar melhor a situação.Logo , os jornais noticiariam a prisão de mais um terrorista brasileiro.Sua foto e  nome, sem dúvida, já estariam rolando nas redes sociais. O mundo, então,  tomaria conhecimento de sua existência. Não que o mundo lhe importasse. Deliciava-se em imaginar as reações entre seus colegas de escola.Os bacanas estariam escondendo sua inveja sob observações sarcásticas a seu respeito, do tipo:“ Sempre desconfiei daquele maluco”.
Mas haveria, também, reações de medo, talvez até de  alguma histeria: “ Meu Deus,um  terrorista entre nós!” exclamar-se-ia na sala dos professores.
E quem poderia negar  o fascínio entre as meninas? “ O esquisitão, quem diria, heim”?

Tiraram-no da cela no outro dia, bem cedo ( a mania policial da madrugada mostrava-lhe seus primeiros sinais), para o primeiro interrogatório. Não sentia mêdo, afora inusitada sensação de  desamparo ao  percorrer longos, escuros e úmidos corredores, até uma sala pequena, mas não  menos escura e úmida.  A meticulosidade de seu plano lhe garantiria  o controle da situação.