Naquele dia, Maninho, soldado do tráfico de drogas ,voltava para
casa, após cinco anos preso. Era a
segunda vez que fazia este tipo de retorno. Já cumprira, antes, três anos de
pena. Fora encarcerado pela primeira vez aos 18 anos , retornou às celas aos 22. Seu intervalo de liberdade, após
chegar à maioridade, fora de apenas um ano.
Mas este segundo retorno não seria igual. Pelo
menos ele se esforçaria para que não fosse. Poderiam ser iguais a longa avenida por onde o transportara o
ônibus ou as escadarias, que o levariam ao
alto do morro da Vila Cearense ;
mas diferentes eram seu estado de
espírito e disposição para o futuro.
A
segunda temporada na cadeia tivera influência na mudança radical que pretendia
operar em sua vida. Para isso contribuíra a amizade com Arcano, veterano
presidiário ,cumprindo pena de 25 anos,
por uma verdadeira coleção de crimes.
Arcano
vivia o conformismo, última fase psicológica dos encarcerados de longa data. Sabedor
da importância da manter a esperteza e valentia, necessárias à sobrevivência no
ambiente carcerário, adquirira, entretanto, a serenidade de quem aprendeu o que,
a seu ver, valia pena na vida: a
liberdade e o amor de uma mulher.
E
fora Arcano quem convencera Maninho a
mudar de comportamento para que pudesse manter seu casamento com Judite, assunto de centenas de conversas entre os dois
homens,durante anos. Judite, a bela Judite, como a chamava
Maninho, era a razão de viver do jovem apenado, e o veterano sabia que nada o
desviaria daquele foco obsessivo.
-
Resolva seu problema com a Judite e tudo será resolvido na vida -aconselhou o velho.
Mas
qual era o problema de Maninho com a Judite? A rigor, nenhum. Deram-se bem todo
o tempo em que puderam ficar juntos. A questão não era de relacionamento, mas
de tempo de convivência. Do dia em que optaram por uma vida em comum, apenas recém-saídos
da adolescência, até a data da primeira prisão dele, transcorreram apenas seis
meses. Saiu da cadeia e, um ano depois, estava preso de novo. Em nove anos e
meio, ficaram somente 18 meses juntos.
Arcano
estava convicto de seu diagnóstico e conselho: se Maninho pretendia ter Judite
para si, como companheira permanente, deveria, de fato, compartilhar a vida com
ela.
-
Mulher nenhuma, em sã consciência, consegue viver como viúva de marido vivo-
lembrava-lhe o velho presidiário.
Essa
frase ficou martelando a cabeça de Maninho. Controlar Judite à distância era
inevitável, pela razão óbvia de que, presidiário, não podia estar sempre com
ela. Isso todos os detentos faziam com
suas companheiras.
Mas
isso é convivência que se tenha com a mulher amada? Maninho convenceu-se de que
não. Errara da primeira vez, quando achou que poderia conciliar a vida de
traficante com a conjugal. Fora preso apenas seis meses depois que passaram a
morar juntos. Três anos cumpridos, livre e de volta à casa, repetiu o erro,
sendo preso apenas um ano depois.
Também
na segunda detenção, obteve de Judite a garantia de que aguardaria seu retorno.
Assegurou-se de que a mulher cumpriria a promessa pelos meios já conhecidos da
vigilância externa, feita por companheiros de crime ainda soltos.
Agora,
seria tudo diferente. De novo livre, deixaria definitivamente a criminalidade. Arranjaria
um emprego. Comunicara sua decisão a Arcano, que a aprovou, assegurando-lhe que
era isso que sempre pretendia dele. E
aconselhou-o a se mudar, ir para outra cidade ou até outro estado pois, permanecendo
na comunidade, seria sempre assediado pelos antigos cúmplices, impedindo-lhe
que mantivesse, em paz, uma vida honesta.
-
Fazendo tudo isso, terá as duas coisas
mais importantes para o homem: liberdade
e o amor da mulher amada.
Tudo
isso passava pela cabeça de Maninho,enquanto ia para a casa da irmã de
Judite,com quem ela voltara a morar, depois que ele fora preso.Inácia era
casada, tinha um filho e Judite residia com ela quando a conheceu. Acácia nunca
lhe demonstrara muita afeição ( e ele entendia os motivos), mas nunca lhe fora
hostil. Davam-se bem. Baixinha e com tendência para engordar, era, fisicamente,
o oposto da irmã.
A
beleza de Judite,que tanto fascinava
Maninho, não era em nada semelhante às
das demais jovens da comunidade, mesmo as mais bonitas.Não era feita de
exuberâncias de seios, coxas e bundas, tampouco de roupas coloridas, justas,
curtas; nem de cabelos coloridos e faces
idem. Magra, sem ser esquálida; tinha altura mediana , cabelos na cor castanho
( a mesma dos olhos), lisos e caídos naturalmente, em cachos, sobre os ombros.
O rosto, de linhas suaves, lembrava, a Maninho, os daquelas gravuras de santas que
via, quando garoto, nas revistas religiosas de sua avó. Católica
fervorosa, a mulher o criara, desde que
fora abandonado, ainda bebê, pela mãe,
solteira.
Judite
falava baixo, jamais dizia palavrões e seus gestos eram suaves. Amigos mais
próximos, aqueles de quem Maninho tolerava algumas brincadeiras, referiam-se a
ela como a “ Irmã Judite”.
-
Como é que uma mulher dessas foi gostar de um perdido na vida como você?
dizia-lhe, sempre, Arcano, que a conhecia das visitas semanais ao presídio.
Após a decisão de mudar de vida, que não
comunicara à mulher,por achar que ela não acreditaria, determinara, também, que
não mais o visitasse. Na próxima vez em que se encontrassem, seria fora do
presídio. Não a obrigaria mais a ir àquele ambiente desagradável.
No
dia em que fora solto, transcorrera mais de um ano após a última vez em que a
vira, o que aumentava mais ainda sua
ansiedade pelo reencontro. Não avisou previamente a hora de sua chegada . Por isso, Acácia mostrou a surpresa ao vê-lo á porta.
-
Nossa! É você?
-
Com todos os ossos!
Sorria,
um sorriso que não aliviava a tensão interior.
-
Sua irmã está?
-
Claro. Entra. Senta. Vou chamá-la.
Sentou.
Na ponta do sofá, mãos cruzadas entre as pernas, o que sentia agora assemelhava-se ao que
sentira mais de uma década atrás,naquela mesma sala, quando fora propor a
Judite que fossem morar juntos: um misto de nervosismo,ansiedade e alegria
contida.
Então entrou na sala a mulher. Sim, era
Judite, claro,mas não era Judite. Não aquela gorducha, de cabelos
opacos,amarrados em rabo-de-cavalo, olhar medroso, mãos para trás, como que
algemadas. Não aquela mulher que, ao esboçar um sorriso, mostrou a ausência de
um dente frontal superior.
-
Não esperava que você chegasse agora, só de noite.
Claro,
sua voz era a mesma, mas tinha algo de estalado e insegurança na entonação.
Onde estava a suavidade ,que antes ele sentia
nos ouvidos como se fosse
carícia?
Vestia
um conjunto de moletom, desbotado, calça ligeiramente apertada, realçando, principalmente na cintura, gorduras
a mais.
-
Livre de novo. E dessa vez, juro: nunca mais volto para aquele inferno.
A
voz lhe saíra sem convicção; priorizara mais comunicar a satisfação com a
reconquista da liberdade do que comemorar o
reencontro com a mulher.Abraçou-a; sentiu que ela aconchegou-se a ele,
mas não a estreitou fortemente, como tanto sonhou que faria quando a
encontrasse . Omitiu também o beijo, que ela tampouco cobrou.
-E
você, como tem passado?
A
pergunta soou burocrática, depois de acomodaram-se no sofá . Acácia,
após anunciar que iria fazer um café, retirou-se da sala.
-
Vou levando. As coisas não têm sido muito fáceis, pois meu cunhado está desempregado
faz tempo e eu peguei umas faxinas em casas do bairro para ajudar nas
despesas.E este ano inteiro sem ver você
só tornou as coisas mais sofridas.
Enquanto
ela continuava a falar sobre sua rotina sofrida, bem que ele gostaria de
prestar atenção no relato , consolá-la ,
revelar-lhe sua disposição de mudar de conduta,
acenar-lhe com melhores dias.. Não conseguia. Difícil afastar a sensação
de que não era Judite quem se dirigia a ele . Pelo menos, não a bela
Judite.
-
Olha, preciso ir agora. Vim direto do presídio para cá e lembrei que preciso
resolver uns assuntos. Depois volto para a gente conversar mais e acertar
melhor as coisas. Avisa à Acácia que o café fica para outro dia.
Falava
gaguejando, ao mesmo tempo em que se
levantava. Judite permaneceu sentada enquanto ele dirigia-se à porta, abriu-a e
saia.
Quinze
dias passaram, sem notícias dele, até
que Acácia chegasse com a novidade:
-
Encontrei Maninho hoje, no mercado. Não o tinha visto, ele que me chamou. E
conversamos sobre a situação de vocês dois.
Judite
aproximou-se, lentamente, mas ansiosa. Desde aquele último reencontro após a
saída dele da prisão, nunca mais vira
Maninho,ou soubera qualquer notícia dele. Estes quinze dias de silêncio foram
mais angustiantes do que o ano todo em que ficaram sem qualquer contato, devido
à proibição dele de que o fosse ver na cadeia.
Estes
novos tempos, ela sabia, eram de definição. O clima estranho do último
encontro; o comportamento de Maninho no curto diálogo , a maneira como saíra da
casa, a falta de notícias, nada disso passou-lhe despercebido. Principalmente
pelo contraste entre aquele dia e o dia em que ele chegara em casa, após
cumprir sua primeira pena de prisão, anos atrás.Maninho, então, a abraçara e beijara apaixonadamente, demonstrara em
gestos e palavras o quanto ficara feliz em voltar a vê-la, em voltar a conviver
com ela.
A
irmã interrompeu suas reflexões.
-
Ele disse que não tem aparecido, nem dado notícias, porque tinha muitas coisas
para fazer. Pensou que ia resolver os problemas pendentes em poucos dias, mas
não deu. Depois, à medida em que o tempo foi passando, ele começou a se sentir constrangido de vir aqui
pessoalmente dizer o que ele pretendia dizer. Então, resolveu transmitir por
mim.
Judite
abandonou a atitude passiva recostada no sofá e reclinou-se em direção à irmã,
sem a menor preocupação em esconder a ansiedade.
-
E o que ele disse?
-
Que não vai mais viver com você. Pensou bem e , como acha que só lhe trouxe
problemas este tempo todo, não vai mais atrapalhar sua vida. Vai embora. Viaja
na segunda-feira. Deseja-lhe muita sorte e tem certeza de que você terá no
futuro a felicidade que merece.
-
Então , resumindo, ele acabou nosso casamento?
-
E bem acabado , minha irmã. Depois que nos despedimos, atravessou a rua e sabe
quem veio ao encontro dele? A Dileusa. Parece que a morena conseguiu finalmente
o que sempre desejou, pois os dois subiram de mãos dadas, para os lados da
pracinha. Ele não vai embora sozinho,
pode crer.
Judite,
então, abandonou a postura de expectativa. Recostou-se no sofá, pernas e braços estendidos, relaxada.
-
Bem que lhe falei que isso iria acontecer
quando, um ano atrás, você parou de se cuidar, começou a engordar, não
tratou mais dos cabelos, das unhas, não colocou mais a prótese dentária. Virou
essa coisa feia que está aí.
Acácia
sempre a alertara sobre a obsessão de Maninho por sua beleza, uma obsessão que
poderia levar a uma tragédia se ela resolvesse romper com ele.
Mas
agora, Maninho perdera o interesse por ela. Significava que não mais a controlaria, nem a manteria atrelada à sua vida de marginal. Acabava,
finalmente, aquela tensão permanente
representada pelo medo de deixá-lo e, ao mesmo tempo, de viver com ele.
O plano de sacrificar a própria beleza para
que ele desistisse dela, e não o contrário, dera
certo e era isso que as duas irmãs comemoravam, agora, abraçadas, silenciosamente,
no meio da sala.