segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

AMPLAS POSSIBILIDADES



Poucos metros antes do semáforo, notou a luz vermelha e fechou os vidros do carro. Já conhecia o lugar. Como abelhas atraídas por mel, homens, mulheres, crianças, logo cercariam o veículo, oferecendo desde doces a quinquilharias, sem falar nos que começariam a limpar o para-brisas ou a fazer malabarismos  à sua frente, com laranjas, pedaços de pau, bolas velhas, para depois exigirem trocados pelo show.
Assim que o veículo parou,ouviu a batida no vidro a seu lado. Também era prevista. Havia sempre alguém tentando atrair-lhe a atenção dessa forma. Manteve-se impassível, olhando para frente.
Ocorreu, então, a novidade: novas batidas. Sua impassibilidade, antes, era suficiente para que não repetissem o gesto. Mas este insistia. Virou-se, irritado, disposto a tornar sonora a negativa de que não queria nada, quando  viu o  homem que continuava a bater no vidro, para lhe oferecer doces: um deficiente visual. Com uma das mãos, segurava sua  mercadoria, dropes,  com a outra, a identificadora  bengala branca, cujo punho usava para bater no vidro. Óbvio que não poderia ter notado sua indiferença anterior. Cego, esperava um sim,ou um não,sonoros.
Era jovem , mas o único , pelo menos naquele momento, a seu ver, com justificativa para ter tal alternativa de sobrevivência. 
Arrependeu-se, então, de sua indiferença. Movimentou-se para abrir o vidro e comprar a mercadoria oferecida, mas não teve mais tempo. O sinal abriu e , enquanto arrancava , pôde ver, pelo retrovisor, o homem recuar lentamente , sem dúvida, frustrado, para o meio da calçada.  
A consciência insistiu em incomodá-lo enquanto dirigia-se ao Fórum, onde era promotor público. Afinal, não se deixa de atender um cego. Sempre considerou a cegueira a maior deficiência que a Criação poderia atribuir a um ser humano. Ninguém, acreditava, é mais vulnerável do que um homem que não pode ver. Nem mais desprovido da beleza com que a natureza enfeita a vida.
Pensou em fazer um retorno, passar de novo pela esquina e, desta vez, comprar toda a caixa de dropes que o cego oferecia, mas já estava em cima da hora. Sua primeira de uma série de audiências começaria em menos de 15 minutos. Outra hora repararia sua falha.

A rotina agitada do Fórum fez com que não voltasse a pensar no episódio por todo o dia. Atuando também na Vara  de Menores, na Justiça  Eleitoral, era um dos promotores mais envolvidos em audiências. Além disso, como dirigente da  entidade do Ministério Público voltada para assistência social  tinha, pelo menos por três dias durante a semana, de dispor maior parcela de seu tempo.
Não à toa era membro de prestígio no Judiciário local e, não por coincidência, referência em jornais .
Alguém certa vez insinuara a possibilidade de que entrasse para a política, o que repudiou até com veemência. Primeiro, por razões profissionais: pretendia seguir carreira no Ministério Público. Depois, a política não combinava com seu jeito  retraído, mais propenso à reclusão do que à exposição aos holofotes, tão cara aos  homens públicos.
Ao final do dia, assim que entrou no carro, recordou o episódio da manhã. Decidiu , ao ir para casa, seguir pela mesma avenida, embora tivesse pouca esperança de que o homem ainda estaria naquela esquina.
 Apesar do horário de verão, as sombras da noite já se faziam presentes. Calculou que o vendedor, a esta hora, já teria ido embora,  abrigar-se, sem dúvida, em moradia modesta da periferia. 
Não errou a previsão. A esquina já estava vazia dos pedintes de sempre.

No dia seguinte, sábado, saiu cedo. Havia planejado deixar o carro em um lava-rápido e cortar o cabelo, ações com que preencheria a manhã. Uma vez no trânsito, ocorreu-lhe , em  impulso repentino, usar a mesma avenida, passar pela mesma esquina.
E o homem estava lá. Como fizera com ele, também aproximava-se dos carros e procurava chamar a atenção dos motoristas batendo levemente com o cabo da bengala no vidro lateral.
Antes de chegar ao semáforo, entrou em uma rua transversal e estacionou. Conversaria com o homem na calçada e assim teria tempo para redimir-se da falha do dia anterior.
O vendedor surpreendeu-se com seu toque,no braço.
- Não deve estar lembrado, mas sou o motorista que, ontem de manhã, acelerou quando você procurava chamar-lhe a atenção. Não foi por maldade. É que o sinal abriu de repente . Peço que me desculpe.
-Não precisa. Isso acontece com freqüência. Muitas vezes eu nem noto quando o carro sai. Vai levar uns dropes hoje?
- É essa a minha intenção,além de lhe pedir desculpas. E quero toda a caixa. Assim, você vai para casa mais cedo. Afinal, hoje é sábado.
- Se é só pelo que aconteceu ontem, não precisa fazer isso.
- É também. Mas vou  aproveitar e dar uma de Papai Noel para a garotada que brinca na garagem do meu prédio.
E, enquanto o homem procurava desvencilhar-se da mercadoria para lhe entregar, ele o analisou detidamente. Como notara na primeira vez em que o vira, era jovem,deveria ter no máximo uns 25 anos.A camiseta e a calça de lycra, um pouco justas, realçavam-lhe  músculos do peito , braços e coxas. Sem dúvida, não fosse a deficiência visual, poderia ter um alternativa de sobrevivência mais digna e mais produtiva,para ele e a sociedade. Ser um operário,por exemplo. 
O homem agradeceu. Ele pensou em oferecer-lhe uma carona, mas desistiu da idéia. Havia se redimido, sentia-se bem, e isso era tudo.

Durante a semana que se seguiu, passou todos os dias pela esquina, onde comprou  pacotinhos de dropes e trocou palavras com o vendedor toda vez que o tempo do semáforo o permitiu.
Criou-se uma nova rotina na vida deste homem de  35 anos,  figura de destaque da comunidade; respeitado pelos seus pares do Judiciário,pelas autoridades municipais e vizinhos; motivo de orgulho dos amigos e da família e de inveja de inimigos e estranhos; bem sucedido financeiramente, com cargo vitalício, salários muito acima da média; realizador dos  sonhos e anseios da mãe e do pai, ele,  conceituado advogado ; ela, professora de música e benemérita social.
Tudo isso, entretanto,teve por preço a sublimação, o recalque, a autorepressão e, por fim, a solidão.
É considerado , hoje,mais do que nunca, um bom partido.Advogadas e funcionárias forenses estão entre  as mulheres que mais   tentaram chamar-lhe a atenção. Mas há também as insinuações casuais de rua;  afinal, pode não ser um galã de telenovelas, mas é um homem de boa aparência, com seus 1,80 metro de altura, cabelos e olhos negros, corpo longilíneo.  
A questão é que não são as mulheres o objeto de seu interesse sexual.Mas a questão, também,é que o objeto de seu interesse sexual o é apenas platonicamente. Jamais envolveu-se com nenhum homem. O medo da revelação sobre sua sexualidade ocupou todos os espaços de sua vontade física, de suas carências afetivas.
Inimaginável sequer pensar que algum dia seu pai tivesse disso conhecimento. Preferia que eles atribuíssem seu pouco interesse por mulheres ao muito interesse pelos  estudos,pelo trabalho,pela carreira. E, à medida em que o tempo foi passando,  o medo de ser exposto estendeu-se à sociedade como um todo, impermeável a qualquer tipo de homoafetividade e, sem dúvida, implacável se ela envolvesse um promotor de Justiça.
Não, não poderia arriscar-se nunca; jamais ceder às exigências do corpo. Sexo completo exige mais de um; segredos completos requerem apenas um. Relações afetivas envolvem conflitos. Como evitar possíveis inconfidências de um amante contrariado? Mesmo a impessoalidade do amor pago traz riscos maiores: que garantias tem de que jamais seria chantageado por um garoto de programa?
O preço do medo foi, assim, a renúncia à sexualidade, preço cada vez mais caro com o passar dos anos. Como não sentir-se um ser humano incompleto? Como não ceder às neuroses?
E então aparece aquele homem cego; e então ocorre-lhe  a idéia, o plano.

- A venda destes doces é sua única fonte de  renda ?
- É.
- Quanto você ganha?
- Em  mês bom,dá para faturar um salário mínimo e meio.
- Deve ser difícil viver com tão ´pouco.
- Fácil não é. Tem mês que , depois de pagar o aluguel do quarto onde moro, sobra quase nada para o resto.Ainda bem que sou sozinho.
Agora ele teria de fazer a proposta. A mais estranha de toda a sua vida e, sem dúvida, a  mais estranha jamais apresentada   ao homem à sua frente. Achou despropositado certo nervosismo que começava a sentir antes de fazê-la. Afinal, seu plano não oferecia o menor risco. Analisara todas as possibilidades e, sem dúvida, o momento da proposta era o que menor perigo oferecia.
Se o deficiente ficasse indignado, só poderia demonstrá-lo verbalmente. Jamais saberia com quem conversara. Ele tivera o cuidado de  promover o encontro em  uma pequena lanchonete, distante da esquina, discreta, para que ninguém os  visse e o identificasse futuramente   como acompanhante do cego em determinado dia e determinada hora.Ficar incógnito, essa era a condição básica dessa relação, em todas as suas circunstâncias, atuais e futuras.
Então falou.   
Confessou-se homossexual e queria, do cego, que fosse seu amante. Pagar-lhe-ia uma quantia mensal, maior do que sua renda com a venda de doces, atividade que ele não precisaria abandonar. Aliás, a condição era que não a abandonasse. Nos dias em que quisesse sua companhia, ele avisaria meia hora antes, por um telefone celular , cujo número não seria identificado no aparelho que ele lhe daria. Na mesma ocasião, diria o ponto, a cada vez  diferente, para onde deveria dirigir-se, onde o pegaria , de carro .O local onde ficariam, é claro,jamais seria revelado. Era uma pequena  casa que  alugara, em um bairro da periferia. Evitou apartamentos e seus abelhudos vizinhos, zeladores e funcionários. Evitou bairros centrais, ou da orla, onde pudesse ser  conhecido. E , de tempos em tempos, mudaria de endereço.
O plano fora pensado meticulosamente, até mesmo para não dar  margem a  que o cego pudesse utilizar algum subterfúgio que o levasse à sua identificação. O homem poderia, por exemplo,combinar com alguém que os vigiasse à distância e depois lhe passasse as informações. Por isso,nada de rotinas. O local para onde o cego deveria dirigir-se poderia ser mudado de repente; o convite poderia ser cancelado minutos depois.  Ele também deixara bem claro que apareceria sempre com disfarces que impediriam sua identificação, a qual tornar-se-ia mais difícil,ainda pelo fato de os encontros serem  sempre à noite. 
Fez questão de apresentar todos estes detalhes .Era bom que o cego soubesse que estaria sendo vigiado todo o tempo e que , ao menor  motivo para  desconfiança , ele simplesmente desapareceria de sua vida.E, com ele, a generosa quantia que lhe seria paga mensalmente, cujo valor deixou, de propósito,para revelar ao final da proposta.
- Você não precisa me dar nenhuma resposta agora. Ficará com este  celular, para o qual vou lhe ligar amanhã,neste mesmo horário. Se  aceitar a proposta, ótimo; se não, pode ficar com o aparelho de  presente.Nunca mais o procurarei.
Acabou de falar e esperou a reação do cego. Claro que sua expressão, como a de toda pessoa com tal  deficiência,nada revelou.Ainda mais com a habitual camuflagem dos óculos escuros. Mas deu para observar, por outros detalhes,que o impacto  não fora pequeno. O homem apertava com força, com as duas mãos sobrepostas,  o apoio da bengala. A perna direita balançava nervosamente.
A voz, porém, ao responder,não refletia  a mesma agitação:
- Isso foi uma grande surpresa para mim- disse,pausadamente, a cabeça baixa, como se estivesse a olhar  para o chão.
- A quantia que o senhor me oferece realmente é tentadora e vai me aliviar de muito sofrimento. Mas isso não deixa de ser uma prostituição, coisa que não me agrada.  Estou balançado. Vou pensar e deixar para responder depois.

Era uma dessas tardes ensolaradas de abril, de muito sol , temperatura amena, céu azul, sem nuvens. Dirigindo o carro pela alameda arborizada que o levaria ao prédio de apartamentos de classe média alta onde residia, o promotor refletia sobre o início da alternativa que acabara de propiciar à sua vida.. O primeiro passo fora dado  com segurança, o que garantiria, acreditava, que o resto da caminhada, rumo ao prazer e à completude de sua, até então angustiada existência,  ocorreria sem tropeço algum.
Na estreita viela,entre barracos,que o conduzia ao pequeno quarto onde morava, o deficiente visual também  refletia. Até agora, desde que se conhecia como gente,fora um pária.Nem tanto por ser pobre,porque esta não era sua origem. Os pais, se não eram ricos, pelo menos podiam dar-lhe, na infância e adolescência, uma existência digna , além de lhe propiciar  oportunidade de estudo. Ele jogara tudo fora , levando, desde a adolescência, vida de irresponsabilidade. Foi expulso de todas as escolas em que o matricularam, por  faltas que iam desde a violência contra colegas e professores, até o consumo de drogas..
Tinha pouco mais de 18 anos quando saiu de casa e ganhou o mundo,  atrás,segundo aspirava, de um jeito de viver bem,sem depender de ninguém ,muito menos do trabalho. Furtou, traficou,mentiu. Precisou mudar-se da cidade em que residiu desde criança porquie vivia perseguido, tanto pela polícia, como por companheiros de crime  a quem enganara.

Agora, ansiava por melhores chances.Sem perigo,mas sem trabalho. Jamais  imaginou, porém, que suas possibilidades pudessem ser  ampliadas tão rapidamente. Afinal, não fazem nem três meses que decidiu fingir-se de cego para despertar piedade e, mais facilmente, vender doces pela cidade.