sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

NINGUÉM GOSTARIA DE ESTAR ALI



Ema não gostaria de estar ali. Saíra da cidade havia mais de 10 anos e sabe ter sido este tempo insuficiente para que fossem esquecidas as mágoas de certas pessoas, principalmente dos parentes do ex-marido Jadiel.
Quando ela pediu o divórcio, a recepção já não fora das mais agradáveis. A sogra e as duas cunhadas romperam completamente as relações , o que significou sequer cumprimentá-la ou conviver com seu casal de filhos, sobrinhos e netos delas.
A situação tornou-se insustentável quando, três anos depois, casou-se novamente. A indiferença transformou-se em hostilidade, nem tanto por parte da sogra. Mas não foram poucas as vezes  em que ouviu desaforos das cunhadas, mesmo em locais públicos.
Não foi à toa, portanto, que resolveu  mudar-se para outra cidade, decisão que exigiu a venda da casa em que residira desde o primeiro casamento. Quando se separaram, Jadiel concordou em que ficasse morando ali, com os filhos. Ele não quis a partilha imediata do bem, o que exigiria a sua venda e divisão do dinheiro. Propôs a permanência dela na casa até que surgissem condições mais favoráveis para o negócio. O mercado imobiliário estava em recessão e, além disso, a casa, inacabada ( faltava concluir o segundo pavimento), não teria bom preço, caso decidissem vendê-la na época.
Ocorre que a decisão dela de casar-se de novo, sem dúvida, acrescentara um ingrediente maior ao estado de beligerância permanente em que vivia com os parentes do marido, refletindo negativamente na vida dela e dos filhos. Jadiel já superara os traumas do  divórcio e passara a cuidar da própria vida, com pouca interferência na  da ex-esposa. Mudara-se para outro bairro, convivia regularmente com os filhos, dentro dos limites permitidos pelas regras da separação legal, e mantinha com a ex-companheira uma convivência tranquila.
Quando ela lhe falara da venda da casa – a assinatura dele era imprescindível para a transação- e lhe dissera o principal motivo, não opôs obstáculos. Ema chegou a observar , nele,certo alívio com a decisão e não foi difícil concluir porquê. Jadiel sofreria ao ver a  ex-mulher coabitar com outro companheiro no imóvel que construíra com tanta tenacidade e sacrifícios .  
Paradoxal que a moradia ficasse sendo, após o divórcio e até sua venda, uma espécie de elo entre Ema e Jadiel. Porque fora o imóvel uma das fortes razões do desgaste do relacionamento entre os dois e posterior separação. Construí-la fora uma obsessão de Jadiel, que não suportava a idéia de morar em uma edícula nos fundos da casa dos sogros, sua primeira residência logo após o casamento.
Desde solteiro era proprietário de  um terreno e foi nele que decidiu edificar a casa própria.  E não seria uma casa qualquer. Projetou um sobrado, dois dormitórios por andar, quarto de empregada, várias salas e saletas, cozinha ampla, despensa, varandas, garagem, além de outras dependências menores.
Para realizar seu sonho, passou a fazer horas extras e a trabalhar aos domingos e feriados na indústria, onde era chefe do setor de operações. Não tirava férias, preferia recebê-las em dinheiro. Por quatro longos anos não se soube, naquele lar, o que era um passeio, uma sobra de dinheiro para uma pequena extravagância . Tudo era investido na casa.
Concluídas as obras estruturais dos dois pavimentos, Jadiel concentrou esforços no acabamento do térreo, para onde se mudaram tempos depois. Concretizava-se, assim, seu primeiro propósito: deixar de morar de favor na edícula dos sogros. O sonho da casa completa demoraria um pouco mais.
Seria exagero, contudo, dizer que o longo período de sacrifícios em função da casa nova fora o único fator de desgaste do casamento entre Ema e Jadiel. Anos atrás, mesmo antes de começar  o projeto imobiliário,intensificara-se nele um hábito que trazia desde os tempos de solteiro: após o trabalho, parar em um bar, com os colegas da firma, antes de ir para casa. 
O que eram poucos minutos, o suficiente para um trago de cachaça e um copo de cerveja,destinados a, como dizia, relaxar e, de quebra, abrir o apetite para o jantar, foi aumentando ,chegando a virar horas. E o estado de Jadiel, ao voltar para casa, deixou de ser, na maioria dos dias, de relaxamento,  para  transformar-se em embriaguez.
Não, ele não era violento. Embriagado, apenas punha-se a  falar mais do que o habitual.Mas, é claro, nem de longe eram imperceptíveis o cheiro de álcool, tampouco irrelevantes a gradativa  pouca preocupação com a própria aparência, a falta de asseio pessoal e a quase nenhuma importância que passou a dar à rotina da casa.Chegar,jantar, dormir: essas foram suas únicas preocupações por anos, nos fins dos  dias.
As implicações de tudo isso na vida conjugal levaram inevitavelmente às discussões, ao desgaste pleno e a decisão dela de pedir o divórcio, o que o surpreendeu. Quando Ema fez a primeira menção neste sentido,não deu muita importância, talvez por estar meio “alto” quando a ouviu.Em uma segunda oportunidade, irritou-se e não quis falar no assunto. Na terceira, desculpou-se, disse que ira mudar de comportamento,mas nada aconteceu além da promessa.
Uma noite, ao chegar em casa, não encontrou ninguém. Ema deixara um recado, escrito, no qual comunicava sua ida, com as crianças, para a casa da mãe e que, dali em diante, seus contatos seriam por meio de um advogado.
Nas semanas que se seguiram, Jadiel  tentou a reconciliação, diretamente ou mediante  a interferência de amigos em comum,mas nada a  demoveu.Até que, por fim, conformou-se e a separação foi formalizada.
Tudo isso, para Ema, parecia ter-se esvanecido como neblina ao nascer  do sol, dez anos depois e com sua mudança para outra  cidade. Mas agora ela estava de volta. Contra a sua vontade, pois sabia que antigas feridas seriam reabertas. No mínimo, passaria por situações de constrangimento.  Decididamente, não gostaria de estar ali. Mas precisava estar. Por causa do ex-marido Jadiel.

Dona Edite não gostaria de estar ali. Aliás, Dona Edite não gostaria de estar em lugar nenhum que não fosse sua casa. Sempre fora assim e depois que o marido morreu, havia 30 anos, ficou pior, fazendo dos muros do quintal os limites do seu mundo.
Ela sabia que, de um jeito ou de outra, cruzaria com aquela mulher ( ela nunca pronunciava o nome de Ema) que tanto fizera infeliz o filho Jadiel. Que nunca dera valor para o homem trabalhador e responsável  que ele era, ligado sempre ao bem estar da família.
Dona Ester não conseguia imaginar que outra coisa mais uma mulher poderia querer de um marido, principalmente nestes tempos difíceis, em que todo mundo anseia por segurança na luta pela sobrevivência. E, afinal,  o que ela vira no homem, com quem se casou depois,  que era tão melhor do que em seu Jadiel?
Ela sofreu vendo o filho sofrer. Conhecia-o bem; sabia o quanto tinha o coração mole, era frágil nestas coisas sentimentais.Viu Jadiel, nos primeiros tempos após a separação,perder aquela energia,aquela disposição,  que o fazia lembrar o falecido pai. Não deixava de ir trabalhar, mas o fazia mecanicamente. Ausentava-se por longos períodos, coisa incomum antes, quando tinha o hábito de visitar a mãe pelo menos umas duas vezes por semana.
Dona Edite não desconhecia a queda de Jadiel por uma cachacinha nos fins do dia de trabalho  e temia que ele se entregasse ao álcool de uma vez,  descontrolando a própria vida. Não por acaso , quando ele desaparecia por períodos prolongados, pedia às duas filhas que fossem ao apartamento, onde o filho  morava sozinho, ver o que estava acontecendo.
 Ficou agradavelmente admirada quando elas informaram  que o irmão praticamente não bebia mais. Menos mal, pensava Dona Edite, que bem lembrava de uns tempos,no início de seu próprio casamento, em que o marido Joel  andara exagerando nos tragos,  exigindo até umas sessões nos Alcoólicos Anônimos para que a situação não se agravasse. A conversão ao evangelismo, tempos depois, assegurou a Joel a sobriedade para o resto da vida.
Ao pedir a separação, aquela mulher trouxera desequilíbrio para a harmonia familiar, tão cara a Dona Edite , visto que muitos projetos acabaram sendo abortados. Os netos passaram a conviver  muito pouco com a avó e as tias e, assim mesmo, quando Jadiel encontrava alguma disposição para levá-los à casa delas.
 Quando aquela mulher casou-se de novo, suas duas filhas impregnaram-se de tal raiva que passaram a hostilizar abertamente a ex-cunhada, provocando  um rompimento total de relações e o afastamento maior das crianças, que tornou-se definitivo quando  a ex-nora e seu  novo marido mudaram-se para outra cidade.
Ela não aprovava as hostilidades das filhas, que chegavam a xingar a ex-cunhada quando cruzavam com ela nas ruas,mas, como não compreender a revolta das irmãs ?
Sentia saudade dos netos, principalmente da menina Liane, tão bonita, tão inteligente, tão carinhosa. Dalto, o menino, bem mais novo que a irmã, era pequeno na época em que ainda moravam na cidade e um pouco arredio.  Liane já estaria uma moça hoje.
Dona Edite tirava, de  todas essas reflexões, apenas uma certeza: não gostaria de estar ali. Mas teria de estar. Por causa do filho Jadiel.

Liane não gostaria de estar ali. Isto não tinha relação com o pai, ou os parentes dele, com os quais nunca se importou muito. O problema era um possível reencontro com a mãe, a quem não via há anos.
Tinha 12 anos quando Ema e Jadiel divorciaram-se e a separação teve um impacto forte em seu comportamento. Até então, pré-adolescente, não prestara muita atenção no desgaste gradativo que a relação entre os pais sofria. A vida deles, afinal,  não diferia muito das de outros casais da vizinhança: homens trabalhando, as mulheres cuidando das coisas da casa e do controle direto dos filhos.
Consumada a separação,quando o pai teve de sair de casa e ela passou a ouvir da mãe que Jadiel fora o culpado por tudo,  Liane, de início , ficou confusa. Se o pai trabalhava; sustentava a família,  estava sempre por perto, não agredia a mulher, dava-se bem com a vizinhança, com os colegas de trabalho,  era culpado de quê? 
Sim, ela tinha consciência de que a mãe também era mulher de méritos,discreta, caseira,sempre trabalhando duro, cozinhando,  mantendo a casa limpa, filhos o marido asseados, o que fortalecia a questão: se ambos honravam seus deveres familiares e para com a sociedade, porque tiveram de se separar? 
 Nas visitas semanais do pai, nunca tivera a oportunidade de falar sobre isso. A postura de Jadiel, jamais tocando no assunto, impedia tal diálogo. Era como se ele admitisse a versão da ex-mulher  .
Passados dois anos, os conflitos da adolescência fizeram-se presentes , tornando-a mais rebelde. Nos atritos com a mãe, ela não perdia a oportunidade de evocar a figura do pai. Sempre que o fazia, sentia  que Ema ficava vulnerável. Eliane tornava-se, então, implacável: ameaçava fugir de casa, ir morar com Jadiel e acusava a mãe de ter sido a causadora da dissolução do lar.
E quando Ema revelou a existência de um novo homem em sua vida, a revolta de Liane exacerbou-se.   Não o tratava mal,mas fazia questão de demonstrar desagrado durante  sua presença ocasional na residência. Não o cumprimentava e, com frequência, assim que ele aparecia,saia de casa, batendo portas.
Quando a mãe comunicou-lhe a decisão de se casar novamente,explodiu. Como? Não tinha vergonha de colocar outro homem naquela casa, que seu pai construíra com tanto sacrifício? E ela e o irmão? Teriam de engolir  um novo pai? Gritou, xingou, trancou-se no quarto, imune aos apelos da mãe para que se acalmasse e a ouvisse.
Não lhe passou pela cabeça, então, ir à casa de Jadiel. Há muito tempo desistira de fazer do pai  aliado nas divergências com a mãe.Sua postura sempre neutra, apaziguadora, dava-lhe a certeza de que jamais poderia contar com ele.
Viu, então,só uma escolha: ir embora. E o fez, no dia de seu aniversário de 18 anos, dois meses após a discussão causada pela anúncio do casamento.
Foi morar na capital,  na casa de uma amiga, que, também por divergências com os pais,decidira emancipar-se um ano antes. Arranjou, de início, emprego em uma lanchonete; depois em uma loja, fez cursos e agora estava estabilizada como secretária de uma construtora, onde conheceu o companheiro, pondo fim a um período de relacionamentos efêmeros.
Nunca mais vira a mãe, o pai, nem o irmão.Amadurecera estes anos todos. Já entendia as motivações da Ema para separar-se de Jadiel. Aprendera que a vida de uma mulher não pode resumir-se a cuidar de filhos e marido, a não ser que ela opte por isso,o que não pareceu ser  o caso da mãe.Mas não condenava o pai que, a seu ver,  equivocou-se ao concentrar, na busca pela estabilidade material da família a condição para a estabilidade conjugal.  Não sentia mais, portanto, a intensa revolta anterior contra a mãe, nem a desilusão com o pai, que, na época, achava complacente demais.
 E por que não retomara suas relações com a família? Nem ela sabia responder. As  exigências  da sobrevivência absorveram-lhe as atenções e energias no início da vida independente. As demandas afetivas fizeram o mesmo a seguir. E o tempo encarregou-se de aumentar as distâncias.
Agora, Liane prevê  um reencontro inevitável e constrangedor com a mãe, a parte mais difícil do retorno à sua terra de origem.  E não sabe como reagirá . Por isso, não gostaria de estar ali. Só o fará por causa de seu pai, Jadiel.

Jadiel não gostaria de estar ali. Não por causa da ex-mulher, com quem as coisas já estavam bem resolvidas há tempos. Não era segredo para ninguém que ele, a não ser por alguma relutância no começo,o que, nestes casos é até comum, não criou maiores problemas para o processo do divórcio. E que fora além de suas responsabilidades legais, cedendo mais do que exigindo.
Quem o conhecia, sabia que muitas decisões dele levaram em conta o bem estar dos filhos, o que teria de passar, necessariamente, pelo bem estar de Ema.
A questão da casa, por exemplo. Se insistisse na partilha,o imóvel teria de ser vendido e a parte que caberia à mulher em dinheiro muito provavelmente  não seria suficiente para assegurar-lhe, e aos filhos, e mesmo padrão de moradia.Que eles ficassem na casa, até a situação do mercado imobiliário melhorar. 
Houve quem achasse que a transigência dele devia-se a um sentimento de culpa pela separação. Mas isto era algo que não o afligia. Não fizera , a seu ver, nada de tão grave que justificasse o fim do casamento. Aprendera, desde criança, que um homem casado deve ser trabalhador, prover o lar, ser fiel, tratar bem a mulher , dando segurança no presente e preparando o melhor  futuro para eles. Não considerara exagerado, portanto, sua obsessão pela construção da casa, mesmo considerando-se que isso o afastava do convívio familiar.Mas sendo um assalariado, como ganhar mais sem fazer horas extras e trabalhar em fins de semana e feriados? 
O que o fez  complacente para  com as justificativas de Ema para a  separação foi  o reconhecimento de que cometera erros de avaliação sobre o que uma mulher espera de um casamento. Deveria ter previsto que, para ser feliz com um homem, não bastam a uma mulher  casa,comida e roupa para vestir. Como atenuante para seus  equívoco, contudo, recordava-se sempre de que nunca fora sua intenção manter mulher e filhos  indefinidamente em regime de sacrifícios. Mas tinha por convicção que um homem deve pensar, antes de mais nada, em garantir um abrigo seguro para si e sua família. De nada adianta viajar, vestir-se bem, comer lautamente, vivendo na casa dos outros.
A  questão da bebida também era debitada por Jadiel em sua conta de equívocos. Mas abrandava sua consciência lembrar que os goles depois dos dias de trabalho não o faziam perder dia de serviço, nem o tornavam um homem agressivo em casa.
A filha também não seria razão para Jadiel sentir desprazer em estar ali. Sabia das mágoas dela por não tê-la apoiado ostensivamente  em suas desavenças com a mãe, nem quando ela decidira sair de casa. Justificara sua neutralidade no fato de que a rebeldia da filha era decorrência da instabilidade psicológica típica de adolescentes..Preferiu dar tempo ao tempo e fora surpreendido com sua fuga de casa.
Todas essas pessoas, ex-mulher, sogra, filha e outras mais, tinham seus motivos para não gostarem da idéia de estar ali. Ele também. Mas, entre todos,  era o único que não poderia evitá-lo. Afinal, era seu próprio velório.








segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

AMPLAS POSSIBILIDADES



Poucos metros antes do semáforo, notou a luz vermelha e fechou os vidros do carro. Já conhecia o lugar. Como abelhas atraídas por mel, homens, mulheres, crianças, logo cercariam o veículo, oferecendo desde doces a quinquilharias, sem falar nos que começariam a limpar o para-brisas ou a fazer malabarismos  à sua frente, com laranjas, pedaços de pau, bolas velhas, para depois exigirem trocados pelo show.
Assim que o veículo parou,ouviu a batida no vidro a seu lado. Também era prevista. Havia sempre alguém tentando atrair-lhe a atenção dessa forma. Manteve-se impassível, olhando para frente.
Ocorreu, então, a novidade: novas batidas. Sua impassibilidade, antes, era suficiente para que não repetissem o gesto. Mas este insistia. Virou-se, irritado, disposto a tornar sonora a negativa de que não queria nada, quando  viu o  homem que continuava a bater no vidro, para lhe oferecer doces: um deficiente visual. Com uma das mãos, segurava sua  mercadoria, dropes,  com a outra, a identificadora  bengala branca, cujo punho usava para bater no vidro. Óbvio que não poderia ter notado sua indiferença anterior. Cego, esperava um sim,ou um não,sonoros.
Era jovem , mas o único , pelo menos naquele momento, a seu ver, com justificativa para ter tal alternativa de sobrevivência. 
Arrependeu-se, então, de sua indiferença. Movimentou-se para abrir o vidro e comprar a mercadoria oferecida, mas não teve mais tempo. O sinal abriu e , enquanto arrancava , pôde ver, pelo retrovisor, o homem recuar lentamente , sem dúvida, frustrado, para o meio da calçada.  
A consciência insistiu em incomodá-lo enquanto dirigia-se ao Fórum, onde era promotor público. Afinal, não se deixa de atender um cego. Sempre considerou a cegueira a maior deficiência que a Criação poderia atribuir a um ser humano. Ninguém, acreditava, é mais vulnerável do que um homem que não pode ver. Nem mais desprovido da beleza com que a natureza enfeita a vida.
Pensou em fazer um retorno, passar de novo pela esquina e, desta vez, comprar toda a caixa de dropes que o cego oferecia, mas já estava em cima da hora. Sua primeira de uma série de audiências começaria em menos de 15 minutos. Outra hora repararia sua falha.

A rotina agitada do Fórum fez com que não voltasse a pensar no episódio por todo o dia. Atuando também na Vara  de Menores, na Justiça  Eleitoral, era um dos promotores mais envolvidos em audiências. Além disso, como dirigente da  entidade do Ministério Público voltada para assistência social  tinha, pelo menos por três dias durante a semana, de dispor maior parcela de seu tempo.
Não à toa era membro de prestígio no Judiciário local e, não por coincidência, referência em jornais .
Alguém certa vez insinuara a possibilidade de que entrasse para a política, o que repudiou até com veemência. Primeiro, por razões profissionais: pretendia seguir carreira no Ministério Público. Depois, a política não combinava com seu jeito  retraído, mais propenso à reclusão do que à exposição aos holofotes, tão cara aos  homens públicos.
Ao final do dia, assim que entrou no carro, recordou o episódio da manhã. Decidiu , ao ir para casa, seguir pela mesma avenida, embora tivesse pouca esperança de que o homem ainda estaria naquela esquina.
 Apesar do horário de verão, as sombras da noite já se faziam presentes. Calculou que o vendedor, a esta hora, já teria ido embora,  abrigar-se, sem dúvida, em moradia modesta da periferia. 
Não errou a previsão. A esquina já estava vazia dos pedintes de sempre.

No dia seguinte, sábado, saiu cedo. Havia planejado deixar o carro em um lava-rápido e cortar o cabelo, ações com que preencheria a manhã. Uma vez no trânsito, ocorreu-lhe , em  impulso repentino, usar a mesma avenida, passar pela mesma esquina.
E o homem estava lá. Como fizera com ele, também aproximava-se dos carros e procurava chamar a atenção dos motoristas batendo levemente com o cabo da bengala no vidro lateral.
Antes de chegar ao semáforo, entrou em uma rua transversal e estacionou. Conversaria com o homem na calçada e assim teria tempo para redimir-se da falha do dia anterior.
O vendedor surpreendeu-se com seu toque,no braço.
- Não deve estar lembrado, mas sou o motorista que, ontem de manhã, acelerou quando você procurava chamar-lhe a atenção. Não foi por maldade. É que o sinal abriu de repente . Peço que me desculpe.
-Não precisa. Isso acontece com freqüência. Muitas vezes eu nem noto quando o carro sai. Vai levar uns dropes hoje?
- É essa a minha intenção,além de lhe pedir desculpas. E quero toda a caixa. Assim, você vai para casa mais cedo. Afinal, hoje é sábado.
- Se é só pelo que aconteceu ontem, não precisa fazer isso.
- É também. Mas vou  aproveitar e dar uma de Papai Noel para a garotada que brinca na garagem do meu prédio.
E, enquanto o homem procurava desvencilhar-se da mercadoria para lhe entregar, ele o analisou detidamente. Como notara na primeira vez em que o vira, era jovem,deveria ter no máximo uns 25 anos.A camiseta e a calça de lycra, um pouco justas, realçavam-lhe  músculos do peito , braços e coxas. Sem dúvida, não fosse a deficiência visual, poderia ter um alternativa de sobrevivência mais digna e mais produtiva,para ele e a sociedade. Ser um operário,por exemplo. 
O homem agradeceu. Ele pensou em oferecer-lhe uma carona, mas desistiu da idéia. Havia se redimido, sentia-se bem, e isso era tudo.

Durante a semana que se seguiu, passou todos os dias pela esquina, onde comprou  pacotinhos de dropes e trocou palavras com o vendedor toda vez que o tempo do semáforo o permitiu.
Criou-se uma nova rotina na vida deste homem de  35 anos,  figura de destaque da comunidade; respeitado pelos seus pares do Judiciário,pelas autoridades municipais e vizinhos; motivo de orgulho dos amigos e da família e de inveja de inimigos e estranhos; bem sucedido financeiramente, com cargo vitalício, salários muito acima da média; realizador dos  sonhos e anseios da mãe e do pai, ele,  conceituado advogado ; ela, professora de música e benemérita social.
Tudo isso, entretanto,teve por preço a sublimação, o recalque, a autorepressão e, por fim, a solidão.
É considerado , hoje,mais do que nunca, um bom partido.Advogadas e funcionárias forenses estão entre  as mulheres que mais   tentaram chamar-lhe a atenção. Mas há também as insinuações casuais de rua;  afinal, pode não ser um galã de telenovelas, mas é um homem de boa aparência, com seus 1,80 metro de altura, cabelos e olhos negros, corpo longilíneo.  
A questão é que não são as mulheres o objeto de seu interesse sexual.Mas a questão, também,é que o objeto de seu interesse sexual o é apenas platonicamente. Jamais envolveu-se com nenhum homem. O medo da revelação sobre sua sexualidade ocupou todos os espaços de sua vontade física, de suas carências afetivas.
Inimaginável sequer pensar que algum dia seu pai tivesse disso conhecimento. Preferia que eles atribuíssem seu pouco interesse por mulheres ao muito interesse pelos  estudos,pelo trabalho,pela carreira. E, à medida em que o tempo foi passando,  o medo de ser exposto estendeu-se à sociedade como um todo, impermeável a qualquer tipo de homoafetividade e, sem dúvida, implacável se ela envolvesse um promotor de Justiça.
Não, não poderia arriscar-se nunca; jamais ceder às exigências do corpo. Sexo completo exige mais de um; segredos completos requerem apenas um. Relações afetivas envolvem conflitos. Como evitar possíveis inconfidências de um amante contrariado? Mesmo a impessoalidade do amor pago traz riscos maiores: que garantias tem de que jamais seria chantageado por um garoto de programa?
O preço do medo foi, assim, a renúncia à sexualidade, preço cada vez mais caro com o passar dos anos. Como não sentir-se um ser humano incompleto? Como não ceder às neuroses?
E então aparece aquele homem cego; e então ocorre-lhe  a idéia, o plano.

- A venda destes doces é sua única fonte de  renda ?
- É.
- Quanto você ganha?
- Em  mês bom,dá para faturar um salário mínimo e meio.
- Deve ser difícil viver com tão ´pouco.
- Fácil não é. Tem mês que , depois de pagar o aluguel do quarto onde moro, sobra quase nada para o resto.Ainda bem que sou sozinho.
Agora ele teria de fazer a proposta. A mais estranha de toda a sua vida e, sem dúvida, a  mais estranha jamais apresentada   ao homem à sua frente. Achou despropositado certo nervosismo que começava a sentir antes de fazê-la. Afinal, seu plano não oferecia o menor risco. Analisara todas as possibilidades e, sem dúvida, o momento da proposta era o que menor perigo oferecia.
Se o deficiente ficasse indignado, só poderia demonstrá-lo verbalmente. Jamais saberia com quem conversara. Ele tivera o cuidado de  promover o encontro em  uma pequena lanchonete, distante da esquina, discreta, para que ninguém os  visse e o identificasse futuramente   como acompanhante do cego em determinado dia e determinada hora.Ficar incógnito, essa era a condição básica dessa relação, em todas as suas circunstâncias, atuais e futuras.
Então falou.   
Confessou-se homossexual e queria, do cego, que fosse seu amante. Pagar-lhe-ia uma quantia mensal, maior do que sua renda com a venda de doces, atividade que ele não precisaria abandonar. Aliás, a condição era que não a abandonasse. Nos dias em que quisesse sua companhia, ele avisaria meia hora antes, por um telefone celular , cujo número não seria identificado no aparelho que ele lhe daria. Na mesma ocasião, diria o ponto, a cada vez  diferente, para onde deveria dirigir-se, onde o pegaria , de carro .O local onde ficariam, é claro,jamais seria revelado. Era uma pequena  casa que  alugara, em um bairro da periferia. Evitou apartamentos e seus abelhudos vizinhos, zeladores e funcionários. Evitou bairros centrais, ou da orla, onde pudesse ser  conhecido. E , de tempos em tempos, mudaria de endereço.
O plano fora pensado meticulosamente, até mesmo para não dar  margem a  que o cego pudesse utilizar algum subterfúgio que o levasse à sua identificação. O homem poderia, por exemplo,combinar com alguém que os vigiasse à distância e depois lhe passasse as informações. Por isso,nada de rotinas. O local para onde o cego deveria dirigir-se poderia ser mudado de repente; o convite poderia ser cancelado minutos depois.  Ele também deixara bem claro que apareceria sempre com disfarces que impediriam sua identificação, a qual tornar-se-ia mais difícil,ainda pelo fato de os encontros serem  sempre à noite. 
Fez questão de apresentar todos estes detalhes .Era bom que o cego soubesse que estaria sendo vigiado todo o tempo e que , ao menor  motivo para  desconfiança , ele simplesmente desapareceria de sua vida.E, com ele, a generosa quantia que lhe seria paga mensalmente, cujo valor deixou, de propósito,para revelar ao final da proposta.
- Você não precisa me dar nenhuma resposta agora. Ficará com este  celular, para o qual vou lhe ligar amanhã,neste mesmo horário. Se  aceitar a proposta, ótimo; se não, pode ficar com o aparelho de  presente.Nunca mais o procurarei.
Acabou de falar e esperou a reação do cego. Claro que sua expressão, como a de toda pessoa com tal  deficiência,nada revelou.Ainda mais com a habitual camuflagem dos óculos escuros. Mas deu para observar, por outros detalhes,que o impacto  não fora pequeno. O homem apertava com força, com as duas mãos sobrepostas,  o apoio da bengala. A perna direita balançava nervosamente.
A voz, porém, ao responder,não refletia  a mesma agitação:
- Isso foi uma grande surpresa para mim- disse,pausadamente, a cabeça baixa, como se estivesse a olhar  para o chão.
- A quantia que o senhor me oferece realmente é tentadora e vai me aliviar de muito sofrimento. Mas isso não deixa de ser uma prostituição, coisa que não me agrada.  Estou balançado. Vou pensar e deixar para responder depois.

Era uma dessas tardes ensolaradas de abril, de muito sol , temperatura amena, céu azul, sem nuvens. Dirigindo o carro pela alameda arborizada que o levaria ao prédio de apartamentos de classe média alta onde residia, o promotor refletia sobre o início da alternativa que acabara de propiciar à sua vida.. O primeiro passo fora dado  com segurança, o que garantiria, acreditava, que o resto da caminhada, rumo ao prazer e à completude de sua, até então angustiada existência,  ocorreria sem tropeço algum.
Na estreita viela,entre barracos,que o conduzia ao pequeno quarto onde morava, o deficiente visual também  refletia. Até agora, desde que se conhecia como gente,fora um pária.Nem tanto por ser pobre,porque esta não era sua origem. Os pais, se não eram ricos, pelo menos podiam dar-lhe, na infância e adolescência, uma existência digna , além de lhe propiciar  oportunidade de estudo. Ele jogara tudo fora , levando, desde a adolescência, vida de irresponsabilidade. Foi expulso de todas as escolas em que o matricularam, por  faltas que iam desde a violência contra colegas e professores, até o consumo de drogas..
Tinha pouco mais de 18 anos quando saiu de casa e ganhou o mundo,  atrás,segundo aspirava, de um jeito de viver bem,sem depender de ninguém ,muito menos do trabalho. Furtou, traficou,mentiu. Precisou mudar-se da cidade em que residiu desde criança porquie vivia perseguido, tanto pela polícia, como por companheiros de crime  a quem enganara.

Agora, ansiava por melhores chances.Sem perigo,mas sem trabalho. Jamais  imaginou, porém, que suas possibilidades pudessem ser  ampliadas tão rapidamente. Afinal, não fazem nem três meses que decidiu fingir-se de cego para despertar piedade e, mais facilmente, vender doces pela cidade. 

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

BELA JUDITE




 Naquele dia, Maninho,  soldado do tráfico de drogas ,voltava para casa, após cinco anos preso. Era  a segunda vez que fazia este tipo de retorno. Já cumprira, antes, três anos de pena. Fora encarcerado pela primeira vez aos 18 anos , retornou às celas  aos 22. Seu intervalo de liberdade, após chegar à maioridade, fora de apenas um ano.
 Mas este segundo  retorno não seria  igual. Pelo  menos ele se esforçaria para que não fosse. Poderiam ser iguais  a longa avenida por onde o transportara o ônibus ou  as escadarias, que o levariam ao alto do morro da Vila Cearense  ; mas  diferentes eram seu estado de espírito e disposição para o futuro.
A segunda temporada na cadeia tivera influência na mudança radical que pretendia operar em sua vida. Para isso contribuíra a amizade com Arcano, veterano presidiário ,cumprindo   pena de 25 anos, por uma verdadeira coleção de crimes. 
Arcano vivia o conformismo, última fase psicológica dos encarcerados de longa data. Sabedor da importância da manter a esperteza e valentia, necessárias à sobrevivência no ambiente carcerário, adquirira, entretanto, a serenidade de quem aprendeu o que, a seu ver, valia pena na vida: a  liberdade e  o amor de uma mulher.
E fora Arcano quem  convencera Maninho a mudar de comportamento para que pudesse manter seu casamento com Judite,  assunto de centenas de conversas entre os dois homens,durante  anos.  Judite, a bela Judite, como a chamava Maninho, era a razão de viver do jovem apenado, e o veterano sabia que nada o desviaria daquele foco obsessivo.
- Resolva seu problema com a Judite e tudo será  resolvido na vida -aconselhou o velho.
Mas qual era o problema de Maninho com a Judite? A rigor, nenhum. Deram-se bem todo o tempo em que puderam ficar juntos. A questão não era de relacionamento, mas de tempo de convivência. Do dia em que optaram por uma vida em comum, apenas recém-saídos da adolescência, até a data da primeira prisão dele, transcorreram apenas seis meses. Saiu da cadeia e, um ano depois, estava preso de novo. Em nove anos e meio, ficaram somente 18 meses juntos.
Arcano estava convicto de seu diagnóstico e conselho: se Maninho pretendia ter Judite para si, como companheira permanente, deveria, de fato, compartilhar a vida com ela. 
- Mulher nenhuma, em sã consciência, consegue viver como viúva de marido vivo- lembrava-lhe o velho presidiário.
Essa frase ficou martelando a cabeça de Maninho. Controlar Judite à distância era inevitável, pela razão óbvia de que, presidiário, não podia estar sempre com ela.  Isso todos os detentos faziam com suas companheiras.
Mas isso é convivência que se tenha com a mulher amada? Maninho convenceu-se de que não. Errara da primeira vez, quando achou que poderia conciliar a vida de traficante com a conjugal. Fora preso apenas seis meses depois que passaram a morar juntos. Três anos cumpridos, livre e de volta à casa, repetiu o erro, sendo preso apenas um ano depois.
Também na segunda detenção, obteve de Judite a garantia de que aguardaria seu retorno. Assegurou-se de que a mulher cumpriria a promessa pelos meios já conhecidos da vigilância externa, feita por companheiros de crime ainda soltos.
Agora, seria tudo diferente. De novo livre, deixaria definitivamente a criminalidade. Arranjaria um emprego. Comunicara sua decisão a Arcano, que a aprovou, assegurando-lhe que era isso que sempre pretendia dele.  E aconselhou-o a se mudar, ir para outra cidade ou até outro estado pois, permanecendo na comunidade, seria sempre assediado pelos antigos cúmplices, impedindo-lhe que mantivesse, em paz, uma vida honesta.
- Fazendo tudo  isso, terá as duas coisas mais importantes para o homem:  liberdade e o amor da mulher amada.
Tudo isso passava pela cabeça de Maninho,enquanto ia para a casa da irmã de Judite,com quem ela  voltara  a morar, depois que ele fora preso.Inácia era casada, tinha um filho e Judite residia com ela quando a conheceu. Acácia nunca lhe demonstrara muita afeição ( e ele entendia os motivos), mas nunca lhe fora hostil. Davam-se bem. Baixinha e com tendência para engordar, era, fisicamente, o oposto da irmã.
A beleza de Judite,que tanto  fascinava Maninho,  não era em nada semelhante às das demais jovens da comunidade, mesmo as mais bonitas.Não era feita de exuberâncias de seios, coxas e bundas, tampouco de roupas coloridas, justas, curtas;  nem de cabelos coloridos e faces idem. Magra, sem ser esquálida; tinha altura mediana , cabelos na cor castanho ( a mesma dos olhos), lisos e caídos naturalmente, em cachos, sobre os ombros. O rosto, de linhas suaves, lembrava, a Maninho, os daquelas gravuras de santas que via, quando garoto, nas revistas religiosas de sua avó. Católica fervorosa,  a mulher o criara, desde que fora abandonado, ainda bebê,  pela mãe, solteira.
Judite falava baixo, jamais dizia palavrões e seus gestos eram suaves. Amigos mais próximos, aqueles de quem Maninho tolerava algumas brincadeiras, referiam-se a ela como a “ Irmã Judite”.
- Como é que uma mulher dessas foi gostar de um perdido na vida como você? dizia-lhe, sempre, Arcano, que a conhecia das visitas semanais ao presídio.
 Após a decisão de mudar de vida, que não comunicara à mulher,por achar que ela não acreditaria, determinara, também, que não mais o visitasse. Na próxima vez em que se encontrassem, seria fora do presídio. Não a obrigaria mais a ir àquele ambiente desagradável.
No dia em que fora solto, transcorrera mais de um ano após a última vez em que a vira,  o que aumentava mais ainda sua ansiedade pelo reencontro. Não avisou previamente  a hora de  sua chegada . Por isso, Acácia  mostrou  a surpresa ao vê-lo á porta.
- Nossa! É você?
- Com todos os ossos!
Sorria, um sorriso que não aliviava a tensão interior.
- Sua irmã está?
- Claro. Entra. Senta. Vou chamá-la.
Sentou. Na ponta do sofá, mãos cruzadas entre as pernas,  o que sentia agora assemelhava-se ao que sentira mais de uma década atrás,naquela mesma sala, quando fora propor a Judite que fossem morar juntos: um misto de nervosismo,ansiedade e alegria contida.
 Então entrou na sala a mulher. Sim, era Judite, claro,mas não era Judite. Não aquela gorducha, de cabelos opacos,amarrados em rabo-de-cavalo, olhar medroso, mãos para trás, como que algemadas. Não aquela mulher que, ao esboçar um sorriso, mostrou a ausência de um dente frontal superior.
- Não esperava que você chegasse agora, só de noite.
Claro, sua voz era a mesma, mas tinha algo de estalado e insegurança na entonação. Onde estava a suavidade ,que antes ele sentia  nos ouvidos  como se fosse carícia?
Vestia um conjunto de moletom, desbotado, calça ligeiramente apertada,  realçando, principalmente na cintura, gorduras  a mais.
- Livre de novo. E dessa vez, juro: nunca mais volto para aquele inferno. 
A voz lhe saíra sem convicção; priorizara mais comunicar a satisfação com a reconquista da liberdade do que comemorar o  reencontro com a mulher.Abraçou-a; sentiu que ela aconchegou-se a ele, mas não a estreitou fortemente, como tanto sonhou que faria quando a encontrasse . Omitiu também o beijo, que ela tampouco cobrou.
-E você, como tem passado?  
A pergunta soou burocrática, depois de acomodaram-se no sofá .  Acácia,  após anunciar que iria fazer um café, retirou-se da sala.
- Vou levando. As coisas não têm sido muito fáceis, pois meu cunhado está desempregado faz tempo e eu peguei umas faxinas em casas do bairro para ajudar nas despesas.E este ano inteiro sem ver você  só tornou as coisas mais sofridas.
Enquanto ela continuava a falar sobre sua rotina sofrida, bem que ele gostaria de prestar atenção no relato  , consolá-la , revelar-lhe sua disposição de mudar de conduta,  acenar-lhe com melhores dias.. Não conseguia. Difícil afastar a sensação de que não era Judite quem se dirigia a ele . Pelo menos, não a bela Judite. 
- Olha, preciso ir agora. Vim direto do presídio para cá e lembrei que preciso resolver uns assuntos. Depois volto para a gente conversar mais e acertar melhor as coisas. Avisa à Acácia que o café fica para outro dia.
Falava  gaguejando, ao mesmo tempo em que se levantava. Judite permaneceu sentada enquanto ele dirigia-se à porta, abriu-a e saia.

Quinze dias passaram, sem notícias dele,  até que Acácia chegasse com a novidade:
- Encontrei Maninho hoje, no mercado. Não o tinha visto, ele que me chamou. E conversamos sobre a situação de vocês dois.
Judite aproximou-se, lentamente, mas ansiosa. Desde aquele último reencontro após a saída dele da prisão,  nunca mais vira Maninho,ou soubera qualquer notícia dele. Estes quinze dias de silêncio foram mais angustiantes do que o ano todo em que ficaram sem qualquer contato, devido à proibição dele de que o fosse ver na cadeia.
Estes novos tempos, ela sabia, eram de definição. O clima estranho do último encontro; o comportamento de Maninho no curto diálogo , a maneira como saíra da casa, a falta de notícias, nada disso passou-lhe despercebido. Principalmente pelo contraste entre aquele dia e o dia em que ele chegara em casa, após cumprir sua primeira pena de prisão, anos atrás.Maninho, então, a abraçara  e beijara apaixonadamente, demonstrara em gestos e palavras o quanto ficara feliz em voltar a vê-la, em voltar a conviver com ela.
A irmã interrompeu suas reflexões.
- Ele disse que não tem aparecido, nem dado notícias, porque tinha muitas coisas para fazer. Pensou que ia resolver os problemas pendentes em poucos dias, mas não deu. Depois, à medida em que o tempo foi passando, ele  começou a se sentir constrangido de vir aqui pessoalmente dizer o que ele pretendia dizer. Então, resolveu transmitir por mim.
Judite abandonou a atitude passiva recostada no sofá e reclinou-se em direção à irmã, sem a menor preocupação em esconder a ansiedade.
- E o que ele disse?
- Que não vai mais viver com você. Pensou bem e , como acha que só lhe trouxe problemas este tempo todo, não vai mais atrapalhar sua vida. Vai embora. Viaja na segunda-feira. Deseja-lhe muita sorte e tem certeza de que você terá no futuro a felicidade  que  merece.
- Então , resumindo, ele acabou nosso casamento?
- E bem acabado , minha irmã. Depois que nos despedimos, atravessou a rua e sabe quem veio ao encontro dele? A Dileusa. Parece que a morena conseguiu finalmente o que sempre desejou, pois os dois subiram de mãos dadas, para os lados da pracinha.  Ele não vai embora sozinho, pode crer.
Judite, então, abandonou a postura de expectativa. Recostou-se  no sofá, pernas e braços estendidos, relaxada.
- Bem que lhe falei que isso iria acontecer  quando, um ano atrás, você parou de se cuidar, começou a engordar, não tratou mais dos cabelos, das unhas, não colocou mais a prótese dentária. Virou essa coisa feia que está aí.
Acácia sempre a alertara sobre a obsessão de Maninho por sua beleza, uma obsessão que poderia levar a uma tragédia se ela resolvesse romper com ele.
Mas agora, Maninho perdera o interesse por ela. Significava que não mais a  controlaria, nem  a  manteria atrelada à sua vida de marginal. Acabava, finalmente,  aquela tensão permanente representada pelo medo de deixá-lo e, ao mesmo tempo, de viver com ele.
 O plano de sacrificar a própria beleza para que ele desistisse dela, e não o contrário,   dera certo e era isso que as duas irmãs comemoravam, agora, abraçadas, silenciosamente, no meio da sala.




   

sexta-feira, 19 de agosto de 2016

INVISÍVEL





Se você tivesse vivido o que ele viveu, talvez fizesse  o que ele  fez. Comecemos dizendo que ele saiu  da prisão por volta de  seis horas desta manhã. Mania de madrugada da polícia, pois, quando o prenderam, 15 dias atrás, o sol também mal havia surgido.
Pelo menos chegará  em casa sem que  ninguém  o veja. Nem seus pais que, desde o dia em que o encarceraram, saíram do bairro e foram morar com  parentes, em uma região mais distante da cidade.
Sabe como entrar na casa, abrindo aquela janelinha da área de serviço .  Tomará um banho e trocará de roupa.
O que  viveu para justificar o que  fez?
Sua família é composta pelos pais, irmã e  irmão. O irmão tem 26 anos, 10 a mais do que ele; a irmã , 12.
O irmão  não mora com eles . Vive e trabalha  em uma cidade vizinha, uns 20 quilômetros dali. Mas, para a mãe, é como se morasse em outro país. Vive suspirando de saudade  e, quando ele vem para casa, em alguma folga, é como se chegasse o  rei.
A irmã é  a jóia da família. Muito mimada, principalmente pelo  pai.Presentinhos, carinhos; quando  fica doente, uma gripe que seja, é um Deus  nos acuda.
Não se pode dizer que o tratam mal. Mas vive  sempre com a impressão de que  todo o respeito da família vai para o mais velho,todo o carinho para a mais nova e , para ele , a sobra.
 O pai trabalha o dia todo , a mãe vive atarefada em casa de manhã à noite, e ele sente-se sempre   secundário quando o assunto é atenção para os filhos.   Quem é filho do meio sabe como funciona  isso.
Se  há alguma comemoração  em casa, Natal, aniversário,essas coisas,  e se recebem  o pessoal da família, o que acontece? Elogios à beleza , às boas notas , à boa educação da irmã; demonstrações  de saudade, orgulho pelo trabalho e  responsabilidade do  irmão; quanto a ele, vai bem, obrigado.
Quando  era mais novo, ainda procurava atrair a atenção, mas agora não .  Nestas ocasiões, quando possível, escapa para o quintal ou para seu quarto ( sim,  um quarto só dele, o que dividia antes com o irmão).
Ano passado,  ,  aniversário  da irmã,  estava no quarto, chegou a hora dos  parabéns e esqueceram de chamá-lo. Teve a impressão de que , se  não tivesse ido para a sala,  alertado pela cantoria e  palmas, esqueceriam,também, de seu pedaço de bolo.
É por causa de tudo isso que é  calado e esquivo . Inclusive na escola. Prefere ficar no seu canto;  quanto menos prestarem atenção nele, melhor. Quando estava no primeiro grau, ficava  no fundo da sala e, como era um dos mais  baixos da classe, os professores viviam ordenando que se sentasse na fila da frente.
Sua vida tem sido de casa para a escola e da escola para casa, e mais alguma coisa que não possa evitar, como visitas a parentes ,ou eventos estudantis.Você pode crer que, se ele tivesse que manifestar  desejos para um gênio da lâmpada, pediria primeiro  para ser invisível. Por enquanto, já se sente  meio invisível,  escondendo-se ou ninguém  prestando  muita atenção nele.
Então, aconteceu de conhecer a Cenira. Foi no começo do  ano; ela, nova na cidade ,  passou a fazer parte da mesma classe escolar.É de família turca e tem aquele jeito meio diferente das mulheres de seu país, os cabelos grandes e negros, os olhos também e bem redondos. Muito simpática, sem ser exibida, logo fez amizades, conversa e brinca  com todo mundo.  Não é preciso de dizer que, no caso dele, não vai além dos cumprimentos. “ Oi!”, “ Alô!”, “ Tchau”!
É bem verdade que ele não dá muita chance para maiores efusões. Sempre no canto, sempre sozinho e  calado, torna difícil  aproximações . Também nunca fez muita questão disso.  Mas com Cenira é diferente. Ela acendeu  sabe Deus, que  chama dentro dele, fazendo-o suspirar por algo mais que “ oi”, “ alô” e “ tchau”.
Mas por que ela se aproximaria dele,  tendo garotos muito mais interessantes com  quem ter amizades? O filho do diretor da escola, por exemplo;  o sobrinho do prefeito , ou o garoto que toca violão e canta?
Deve existir alguma coisa que o faça ser notado também. E foi da incessante busca a uma resposta para tal questão que surgiu o plano.   Que, até agora, no momento em que se dirige para casa, após aquela temporada na  prisão,  transcorre conforme o previsto.

É preciso apressar o passo e  chegar nas residência antes das seis,sem que ninguém na rua o veja. Poderá tomar um banho,descansar  e, perto do maior intervalo entre as aulas, fazer a grande   reaparição na escola .Será memorável, acredita, porque, depois de sua façanha,  já não é mais invisível.É alguém com quem todo mundo vai querer conversar, fazer perguntas.Aquelas meninas que quase nunca prestam atenção nele e vivem suspirando pelos bacanas da classe; os professores; até mesmo, e principalmente , Cenira.
O que ele fez não é algo que se faça de uma hora para outra. Exigiu inteligência , paciência e planejamento. Tudo pensado, em detalhes, coisa  não tão difícil para quem na vida sempre teve  pouco com que dividir sua atenção.
A idéia surgiu com a notícia  de que 10 brasileiros haviam sido presos acusados de fazerem parte do Estado Islâmico, o grupo terrorista que quer transformar o mundo em um califado . A Polícia Federal  os descobriu monitorando as redes sociais.Os investigadores tornaram-se mais atentos e precavidos com a proximidade das Olimpíadas do Rio de Janeiro por causa da  possibilidade de brasileiros, recrutados pela grupo, realizarem   massacres durante os jogos . A polícia agiu rápido: identificou trocas de mensagens suspeitas e prendeu os seus autores. 
Estado islâmico nunca foi um assunto que lhe interessou muito, nem mesmo a possibilidade do grupo ter representantes no Brasil causa-lhe   espanto. O que chamou sua atenção,mesmo, foi a fama súbita dos brasileiros presos. Era gente comum, absolutamente anônima e,de repente,tiveram seus nomes e fotos estampadas nos programas  de TV,  jornais e  revistas de todo o mundo.Três deles não eram conhecidos, antes, nem por seus vizinhos.
Claro que nem de longe passou-lhe pela cabeça virar terrorista para deixar de ser invisível. Não quer fazer mal a ninguém. Gostaria de usufruir unicamente da fama que um episódio destes pode dar a seus protagonistas.  Mas, como ganhar notoriedade como  jovem terrorista brasileiro e  internacional, sem matar ninguém, explodir nada, cair na clandestinidade e, menos ainda, ser morto ou preso pelo resto da vida??
Sua inteligência, aguçada por horas e horas recluso  no quarto, diante do computador, trouxe-lhe, rápida, a resposta. Se as investigações estavam sendo feitas na internet, principalmente nas redes sociais,  seria ali o palco de sua atuação.
Três meses depois, seis horas de certa manhã, o primeiro sinal de que o plano daria certo:homens estranhos apresentaram-se à sua casa como agentes da Polícia Federal. 
Assustou-se um pouco com o aparato da captura.Ante o olhar atônito dos pais,  agentes mal encarados e silenciosos algemaram-no e conduziram-no , sem truculência, mas de maneira firme, para um camburão.Minutos depois , o veículo, escoltado por outro, logo atrás, entrava no subsolo de um prédio antigo . Saíram do carro, entraram  em um elevador.  Silêncio  quebrado apenas pelos ruídos de portas fechando e abrindo. Deixaram-no só em uma cela.
 Pôde, então, analisar melhor a situação.Logo , os jornais noticiariam a prisão de mais um terrorista brasileiro.Sua foto e  nome, sem dúvida, já estariam rolando nas redes sociais. O mundo, então,  tomaria conhecimento de sua existência. Não que o mundo lhe importasse. Deliciava-se em imaginar as reações entre seus colegas de escola.Os bacanas estariam escondendo sua inveja sob observações sarcásticas a seu respeito, do tipo:“ Sempre desconfiei daquele maluco”.
Mas haveria, também, reações de medo, talvez até de  alguma histeria: “ Meu Deus,um  terrorista entre nós!” exclamar-se-ia na sala dos professores.
E quem poderia negar  o fascínio entre as meninas? “ O esquisitão, quem diria, heim”?

Tiraram-no da cela no outro dia, bem cedo ( a mania policial da madrugada mostrava-lhe seus primeiros sinais), para o primeiro interrogatório. Não sentia mêdo, afora inusitada sensação de  desamparo ao  percorrer longos, escuros e úmidos corredores, até uma sala pequena, mas não  menos escura e úmida.  A meticulosidade de seu plano lhe garantiria  o controle da situação.

terça-feira, 5 de julho de 2016

TEATRO DE COINCIDÊNCIAS





Não se viam há cinco anos, desde os tempos da faculdade e, agora, encontraram-se naquela lanchonete no final do expediente.
-  Como estão as coisas? Quais as novidades?]
- Estou aí, na luta. E você?
E começaram a falar dos rumos que suas vidas tomaram, após se formarem; lembraram coisas e pessoas  da época estudantil, riram; emocionaram-se.
- Incrível coincidência encontrá-lo.  É a primeira vez que entro neste bar.
- De vez em quando passo por aqui, para tomar um café, comer alguma coisa rápida.
- Mesmo assim , acho uma tremenda  coincidência.
- Se você acha isso coincidência, o que dizer, então dos ganhadores da megasena,que acertam aqueles seis números, quando as chances de isso ocorrer são de uma em 52 milhões?
-  Pensando assim,você tem razão.
- É por isso que não me surpreendo muito com as coincidências da vida. Presenciei uma aparentemente incrível no dia do fumacê.   
- Dia do fumacê?
- É. Quando aquela nuvem tóxica cobriu todo o centro comercial. Lembra?
-  É mesmo. Parecia coisa de ficção científica. Só faltou aparecerem zumbis canibais. Felizmente, eu estava na orla.
- Pois eu estava aqui no centro,  olho do furacão.Mal tive tempo de me abrigar, antes que a fumaça me envolvesse.Em menos de dez minutos, tudo ficou coberto pela neblina.
- E a coisa era mesmo tão perigosa assim?
-  Ninguém morreu, mas quem esteve exposto à nuvem ficou com olhos ardendo, ânsia de vômito, dor de cabeça,  de barriga. Quem viu de longe, pensou que era algum incêndio, pois a fumaça começou a aparecer  pelos  lados do porto.
-  Um primo meu, que também estava no centro, disse que foi uma loucura. Em pouco tempo, tudo começou a escurecer e a correria foi geral. Meio cegos, a garganta queimando,  as pessoas  procuravam qualquer local onde se abrigar.Lojas e recepções de prédios logo ficaram lotadas e começaram a fechar as portas.
-  Eu e mais dois senhores, já idosos, tivemos sorte de entrar em uma pequena lanchonete.
- Ainda bem.
- Aí aconteceu a primeira coincidência. A lanchonete não atenderia o público naquele dia por causa de reforma no equipamento de refrigeração. Mas, justo naquele momento, a porta estava aberta pela metade porque o gerente esperava os técnicos que fariam os reparos. Por isso, eu e os dois senhores  pudemos entrar. Alertei o gerente   sobre a nuvem de fumaça e ele, imediatamente, baixou a porta.
“ Ficamos, então, nós quatro, estranhos entre si, confinados na lanchonete, que é dessas pequenas, parecendo mais um corredor. Um balcão comprido; uma fileira de mesas e cadeiras, em resumo”.
“ Pedi ao gerente para ligar a TV, a fim de  sabermos o que estava acontecendo lá fora. Se não eram apavorantes, as notícias também não tranqüilizavam  ninguém.O gás não era mortal para quem se expusesse a ele em áreas livres e por pouco tempo.Mas não estava se espalhando rapidamente devido à falta de ventos. Por isso as autoridades não sabiam quando as pessoas poderiam sair de seus abrigos. Sorte que vivemos a era do celular e  quase todo mundo pôde avisar os parentes e amigos sobre o que estava acontecendo”.
- E vocês quatro tiveram que se enturmar, mesmo sendo estanhos.
- No começo, os dois senhores ficaram calados. Até compreensível. Estavam mais preocupados em ligar para os parentes. O diálogo inicial foi entre eu e o gerente. Claro que o assunto era a nuvem tóxica..
“Procuramos notícias atualizadas na TV. Uma delas teve especial importância: a de que a fumaça tóxica foi causada pela reação química entre a água da chuva e uma substância estocada  em um contêiner no porto. A água entrou por um buraco na caixa de aço. Quando a fumaça saiu, em grandes rolos, a reação aumentou pelo contato dela com a chuva”.
“Por isso, as autoridades pediam para que as pessoas evitassem colocar lenços umedecidos na boca ou nariz; ou vedar aberturas das moradias ou lojas com panos molhados, ao contrário do que se costuma fazer   em situações semelhantes  . Para garantir melhor o cumprimento dessas  recomendações, cortou-se o abastecimento de água para toda a área coberta pela fumaça .”
- E em caso de  sede?
- Bem, no nosso caso, havia água no reservatório do prédio.Isso não seria problema.
- De qualquer maneira, se faltasse água, podiam contar com os refrigerantes da lanchonete, né?
- Não.O comerciante tinha esvaziado o refrigerador e levado todo o estoque de bebidas para casa, a fim de dar espaço para os técnicos fazerem os reparos. Mas havia em uma prateleira, em frente  do balcão, algumas garrafas de vinho tinto. Depois  de algum tempo conversando bobagens com o gerente e trocando apenas monossílabos com os dois senhores,que continuavam caladões, sentados cada um a uma mesa,  pedi uma garrafa . Convidei todos a compartilhar a bebida comigo , mas, de imediato, só o gerente concordou em beber um cálice”.
“ Uns 20 minutos depois, um dos senhores resolveu tomar um gole. O outro acompanhou-o e, passada uma hora, o conteúdo de dois litros já tinha ido embora.”
“ Os dois senhores bebiam pouco, o consumo maior era meu e do gerente Via-se que não eram pessoas acostumadas à bebida alcoólica .Logo, estavam meio vermelhos, mais agitados e com a língua solta”.
Primeiro começaram a falar sobre o acidente , apresentar  teses sobre causas e consequências.  Depois, o diálogo ficou mais pessoal. Foi quando nos apresentamos uns aos outros.
Um dos senhores, calvo e magro, era jornalista,aposentado  ; o outro, de mesma altura, porém mais forte e com cabelos completo,era engenheiro.À proporção que o tempo ia passando,talvez pela identificação inicial da idade,  passaram a ocupar a mesma mesa e conversar entre si.Tendo o gerente se afastado por uns instantes para se concentrar no seu refrigerador quebrado,fiquei só e virei  assistente e ouvinte  de um diálogo que só posso chamar de “ teatro de coincidências”. 
JORNALISTA
E pensar que eu não vinha para o centro hoje. Vim só para comprar um presente para meu neto,que faz aniversário.
ENGENHEIRO
Você é avô?Também sou.Meu neto tem quatro anos,  e o seu?
JORNALISTA
Seis. E pediu uma camisa do Santos FC de presente. O que a gente não faz por um neto, heim? Eu,corintiano, entrei em uma loja e comprei uma camisa do Santos.
ENGENHEIRO
Também sou assim. Para o neto, tudo. Dizem que sou o avô mais babão da Cidade. E olha que ele nem é meu neto biológico. É filho da minha enteada,que é filha de minha segunda mulher. 
JORNALISTA
É o meu caso.Sou casado pela segunda vez e este meu neto é filho de minha enteada.Mas tenho um neto de verdade, filho de minha filha biológica, de meu primeiro casamento.
ENGENHEIRO
Eu também.Quando me separei de minha primeira esposa, meu filho,  que na época tinha quatro anos, ficou com ela.Hoje,casado, tem um filho de três anos.Mas minha  relação maior é com meu neto “postiço”.
JORNALISTA
É o que acontece comigo.O filho de minha enteada é como se fosse meu neto de verdade. Com o outro, não tenho nenhuma convivência.
ENGENHEIRO
Não sei quanto a você,mas, no meu caso,isso acontece porque meu filho, depois de meu divórcio, nunca mais conviveu comigo. Minha ex-mulher casou de novo, saiu da cidade e o padrasto acabou me substituindo no lugar de pai.
JORNALISTA
Vivi situação parecida. Mas minha ex-mulher, depois do seu segundo casamento, continuou vivendo por aqui, mesmo. Como nossa separação foi muito conflituosa, ela criou muitas dificuldades para minha convivência com minha filha, que acabou se apegando ao padrasto.
ENGENHEIRO 
Ou seja: nós dois acabamos sendo substituídos como pais e avôs.

- Pararam de falar por  instantes, interrompidos pelo aviso de edição extra, na TV,sobre o acidente.A informação era de que os bombeiros, impossibilitados de retirar o produto químico do contêiner,decidiram jogar água nele. Procuravam, assim, acelerar a reação química e acabar com o estoque do produto, dando fim rápido à neblina tóxica..
  “A notícia não me interessou muito. Significava, apenas,que iríamos ficar por mais algum tempo confinados.O que me impressionava mesmo era o conjunto de coincidências envolvendo a vida daqueles meus dois momentâneos companheiros. Os dois estavam em seus segundos casamentos; tinham filhos das primeiras uniões. Separaram-se e casaram-se de novo com mulheres que também tinham filhos de casamentos anteriores.  Seus filhos cresceram, casaram e tiveram filhos. As enteadas, também.Em conseqüência, tanto um, como o outro, tinham filhos e netos postiços e filhos e netos biológicos.Mas relacionavam-se melhor com os netos postiços porque conviveram pouco com os filhos legítimos, após os respectivos divórcios. Estes, por sua vez, apegaram-se mais aos padrastos, que acabaram ocupando os lugares de pais e avôs.Confuso de explicar, mas nem por isso incrível, por ser história comum de dois homens unidos por acaso naquele mesmo lugar”.
“Encerrado o flash extraordinário de notícias, reataram o diálogo. Aos  vapores do vinho, somava-se, agora, como motivador de mais conversa, a descoberta de tantas coisas em comum em suas vidas.Que mais coincidências estariam por vir?”
JORNALISTA
 Nas poucas vezes em que mantive contato com minha filha, depois dela adulta, ela disse que fui omisso como pai e que o padrasto foi sua referência masculina, por isso  ela o tinha como verdadeiro pai.
ENGENHEIRO-
E você não tentou explicar as dificuldades criadas pela mãe dela  para relacionar-se normalmente com ela?
JORNALISTA
 Para falar a verdade, nem tentei muito. Acho que por um certo sentimento de culpa, por não ter lutado com mais contundência por minha filha, quando houve o divórcio e ela ainda era pequena. Sei lá. Mesmon quando já era adolescente, eu achava que não adiantaria, porque ela, a meu ver, não entenderia nada e ainda estava sobre forte influência da mãe. Acreditava que,quando  ficasse adulta, poderíamos nos entender melhor. Mas parece que a coisa desandou e, agora, ficou irreversível. Nunca tivermos essa conversa.
ENGENHEIRO
  Isso é duro. Mas, caso sirva de consolo, acho que minha situação foi pior.Porque nunca mais falei ou o vi meu filho desde que ele era pequeno. É constrangedor dizer, mas  se ele passar por aqui, agora, eu não o reconheceria. Nem ele a mim.E pelo que soube,  ele não tem o menor interesse de conhecer o pai.Como sua filha, ele considera seu verdadeiro pai  o padrasto.Como conseqüência disso tudo,também não conheço meu neto.
JORNALISTA-
Pelo menos conheço a Belina e ela a mim.
- Fez-se curto silêncio entre os dois. Do lugar em que me encontrava, no extremo do balcão, não pude ter certeza, mas parecia-me que ambos tinham os olhos marejados.O engenheiro baixou por instantes a cabeça, a mão direita na fronte, mas levantou-a rapidamente,  e, como que tendo uma lembrança súbita, perguntou, em voz alta:
ENGENHEIRO
 Belina? Você disse Belina?
JORNALISTA-
É. Belina. Este é o nome de minha filha. Foi escolhido pela minha ex-mulher.
ENGENHEIRO
 Mas este é o nome  de minha enteada.
JORNALISTA
 Vai me dizer que o nome de sua mulher é Lena?
ENGENHEIRO
 Isso mesmo!
JORNALISTA
 Este é o nome de minha ex-mulher.

- Você entende, agora, porque lhe disse que essa era uma história de incríveis coincidências?
- É mesmo. O engenheiro, então, era o padrasto da filha do jornalista. Só falta, agora, você me dizer que o jornalista era o padrasto do filho do engenheiro.
- Não. Não chegamos a tanto. Mas você há de convir que é muita coincidência, não?
- E após a revelação, o que aconteceu?
- Você não vai acreditar, mas ficaram meio catatônicos. Não sei se foi a revelação; ou efeitos do vinho, mas calaram-se e evitavam fitar-se. Cada um olhou para um lado, como se, agora, tivessem que medir as próximas palavras. Foi quando a  vinheta anunciando notícia extraordinária se fez ouvir de novo  e nossas atenções voltaram-se  para a TV. Informava-se que a fumaça havia se dispersado e as pessoas já podiam retornar às suas casas.
“ Atraído pelo diálogo entre os dois homens, eu tinha até esquecido do motivo que levaram  nós quatro a ficarmos confinados naquela lanchonete. E lamentava,  intimamente, que a conversa fosse interrompida após a importante revelação.
 Os dois homens demonstravam não querer continuá-la. Levantaram-se, fazendo menção para sair. Não esboçavam qualquer intenção de despedir-se de mim e do gerente do bar, o que,além de tudo,revelava ingratidão pela acolhida que ele nos dera.
“ Não me contive. Mesmo que me considerassem um intrometido,eu precisava  opinar sobre o que ouvira.
- Desculpem-me, mas acompanhei toda a conversa de vocês dois.Acho que, além de ter servido como desabafo, ela pode ter maior utilidade para os dois.
Viraram-se para mim, interrogações nos olhares, resumindo uma só pergunta: “ Como assim?”
-   Sua filha, senhor, jornalista, despreza-o porque o considera omisso. Ama o padrasto porque ele foi sempre presente na vida dela. Entretanto, ela não sabe que o filho do padrasto dela faz a mesma acusação ao pai. Ou seja: o senhor é um mito para sua enteada,, mas é desprezível para seu filho.
Continuaram olhando-me com  expressão de “E dai?” Continuei:
- Então,o senhor engenheiro poderia explicar à sua enteada que o pai dela fora vítima das mesmas restrições que ele. Ambos podiam até ter sua parcela de culpa- falta de brios para reivindicar direitos de pai; excesso de cuidados para não melindrar os filhos ainda pequenos- mas não podiam ser os principais responsáveis pelo afastamento deles. Essa culpa teria de ser dividida com as respectivas mães.
Calei-me e os observei-os por alguns segundos. Olhavam-me, demonstrando compreensão do que eu havia dito, mas portavam-se como se não tivessem  nenhuma energia para tomar alguma atitude a respeito. Continuei:
- E você, senhor jornalista, poderia, em contrapartida, procurar o filho do engenheiro e contar a mesma história.Fazer a comparação entre os dois casos.Mostrar que se ele foi um excelente padrasto, poderia ser, também, um excelente pai se lhes fossem dadas as oportunidades de convivência.
“ Timidamente, parecendo mais querer uma orientação do quer uma resposta, o jornalista rompeu o silêncio:
- E você acha que,nesta altura da vida, isso vai resolver alguma coisa? Vai nos tornar  amados por nossos filhos como somos amados por nossos enteados? Sermos amados por nossos netos biológicos, como somos amados por nossos netos adotados?
- Não posso dar certeza quanto a isso- respondi-  mas pelo menos seus filhos terão novas versões sobre as quais refletir, além daquela que ouviram a vida toda de suas mães.Claro que não deixarão de amar seus padrastos, mas terão a chance de retomada de um diálogo que poderá fazer com que possam abrir seus corações também para vocês.
“ O  vazamento de gás, a convivência  temporária naquele salão com desconhecidos; a revelação sobre a proximidade de suas famílias e, não mais importante, a quantidade incomum de vinho que tomaram, sem dúvida explicam a reação, pelo menos para mim inesperada, que tiveram a seguir.
ENGENHEIRO
 Obrigado.
JORNALISTA
A gente se vê por aí.
 E, lentamente, meio cambaleantes, sem mesmo olhar um para o outro, saíram do salão. Uma vez na calçada, dirigiram-se paras lados opostos. A mim restou agradecer ao gerente da lanchonete  a acolhida, tentar pagar pelo vinho consumido ( o que ele recusou) e ir embora, também.
- Será que eles voltaram a se encontrar? Que colocaram em prática suas sugestões?
-  Como saber? Mas esta cidade é pequena e qualquer dia vão tropeçar um no outro, por aí..E, sem os vapores do vinho, a conversa poderá ter  rumo diferente.
- Bem, hora de ir embora. Meu carro está na praça.
- O meu está em um estacionamento
- Sem coincidência, portanto.

- Tchau.
- Tchau.